texto por Paolo Bardelli
A liberdade do início dos anos noventa
“Fiquei muito feliz que o disco do Nirvana (‘Nevermind’) tenha vendido mais que Michael Jackson; de repente, as pessoas não sabem mais o que é preciso para ter um sucesso. Isso abre a possibilidade de que a música surja do nada, e isso me dá esperança”. A declaração é de Mitchell Froom, produtor e tecladista de “99.9 F°”, o quarto álbum de Suzanne Vega, em março de 1993 para a Recording Musician. Era assim naquela época. O ano de 1991 abriu não só uma porta, mas mil portas para quem queria fazer música de uma forma menos convencional, e conseguiu isso porque este método funcionava e os discos assim gravados vendiam. E assim os músicos, e sobretudo os produtores, sentiram-se à vontade para fazer o que realmente queriam. Isso também aconteceu com este álbum maravilhoso que é “99.9 F°”, que completou 30 anos em 2022.
Quando o folk de Suzanne Vega conheceu a casa
Suzanne Vega vinha de três álbuns de sucesso, ainda que mais ou menos estáticos sonoramente, com aquele clássico folk rock acústico que abriu caminho para a composição feminina em meados dos anos 1980, particularmente Tracy Chapman e Tanita Tikaram. “Suzanne Vega” e “Solitude Standing”, seus dois primeiros álbuns são de 1985 e 1987 respectivamente, enquanto as estreias das outras duas cantoras folk mencionadas são de 1988. O terceiro, “Days Of Open Hand” (1990), possuía belas canções, mas do ponto de vista artístico foi uma oportunidade perdida porque Suzanne ainda não havia inserido mudanças sonoras. Mas então aconteceu uma coisa estranha: em 1990, dois garotos ingleses (D.N.A.) fizeram um remix eletrônico de “Tom’s Diner” (faixa de seu segundo disco cantada a cappela) em seu quarto. O remix, que usava um sampler rítmico de Soul II Soul (“Keep On Movin'”), foi um sucesso internacional e, apesar de os pouco mais que adolescentes da cidade de Bath não terem pedido autorização da A&M Records, tudo terminou bem com relativa concordância entre as partes.
O hit fez com que Vega entendesse que sua música poderia ser arranjada de maneira diferente, então – ao escolher o produtor para seu quarto álbum – a gravadora indicou-a para três produtores e Suzanne ficou impressionada com a abordagem de Froom: “Um dos produtores me disse que eu deveria fazer algo completamente diferente e talvez fazer um disco de rap ou algo assim, outro achou a fita ótima do jeito que estava, e Mitchell me disse que gostou das músicas, mas não gostou da produção. Ele pensou que poderia fazer melhor. Era isso que eu queria ouvir, porque tinha curiosidade de trabalhar com alguém que pudesse me ensinar algumas coisas. Mitchell achou que a música deveria ter muito mais vitalidade e soar mais excêntrica. Ele me disse que minha abordagem era muito comum e que era um erro usar baterias comuns de rock ‘n’ roll”. E assim acertaram de trabalhar juntos.
Mitchell Froom, um produtor na crista da onda
Mitchell Froom revolucionou o som de Suzanne ao introduzir elementos de ruído quase industrial, uma base percussiva construída com samples, baixo presente e encorpado e um som que é, em última análise, uma arquitetura estruturada, como aquelas construções do início do século XX que são reformadas com enxertos de vitrais e madeira. Froom era na época o homem que havia produzido os três primeiros álbuns do Crowded House, além do incrível “Mighty Like a Rose”, de Elvis Costello, e algo dos Pretenders, tocando teclado na maioria desses álbuns, além de tocar ao vivo com Costello, Tom Waits e Crowded House. Mas, acima de tudo, ele foi o homem que devolveu a sorte aos Los Lobos ao produzir “Kiko” (1992): a grande banda de Los Angeles vinha num momento sem brilho e refez um visual sonoro com “Kiko”, inserido então pela revista Q entre os 50 melhores discos de 1992. Em suma, era um jovem produtor na crista da onda, com muitas ideias em mente.
Uma banda matadora
Froom reuniu para “99.9 F°” uma equipe fantástica: ele chamou seu amigo de longa data Tchad Blake, guitarrista, mas também produtor, o guitarrista e líder do Los Lobos, David Hidalgo, o baixista de Elvis Costello, Bruce Thomas, e o baterista de Peter Gabriel, Jerry Marotta. Uma banda incrível. Cada um destes músicos é essencial para o equilíbrio preciso de todos os componentes de “99°9 F”, em particular o trabalho maior é feito pelo baixo de Thomas, que guia todas as canções e cujo som redondo e sem trastes consegue suavizar as arestas que introduzem os samples de Froom, e os elementos percussivos são o trabalho combinado de Marotta, Froom e Blake: “Todas as faixas de percussão são uma combinação de Mitchell e Jerry enlouquecendo. Às vezes havia elementos sampleados e sequenciados, mas a maior parte era tocada ao vivo”, explica Suzanne Vega. “Todos os dias montávamos um kit diferente de bateria e percussão para cada música. Jerry tocou uma variedade muito peculiar de coisas em posições bizarras. Foi realmente divertido. Algumas coisas eram muito simples, como ele batendo na perna com a mão e Tchad pegando e distorcendo. O dia mais bobo foi aquele em que colocaram um saco plástico no microfone e tentaram bater com uma das baquetas para ver como soava. O som era horrível. Outro momento estranho foi quando toda a banda tocou bateria. Isso soou terrível também, então nós o deletamos”. Essa técnica é interessante porque denota que o álbum é resultado de uma subtração, de testes gravados e apagados com um verdadeiro objetivo experimental. Froom também não usou os teclados que estavam sendo produzidos na época, e que ele sentia que soavam “como variações do mesmo chip defeituoso”, mas sim seus teclados “vintage”, como um Chamberlain, um Mellotron, vários Hammond órgãos, um piano elétrico Wurlitzer da década de 1950, um Optigon, um Clavinet e assim por diante, o que deu ao álbum um som menos datável. Paradigmático é o caso do Wurlitzer que na época estava totalmente fora de moda, e voltou com tudo na década seguinte pelo uso que Thom Yorke faria dele em “Kid A” (2000).
Canções feitas de carne e nervos
“99.9 F°” tem seu próprio fisico, seu próprio corpo: não é acaso que nos deparamos com a palavra sangue contida no título de duas músicas, a tumultuada e mais industrial do lote “Blood Make Noise”, que fala de sons dentro da cabeça de uma pessoa, e “Blood Sings”, uma das duas únicas canções (a outra é “Song of Sand”) arranjadas em uma versão “antiga Vega” apenas com o violão e outro elemento fundador (o piano na primeira faixa e cordas na música que encerra o álbum). E é um sangue que pulsa e que cria um todo formado por “carne e nervos”. Enquanto os estrondos de “Rock in This Pocket (Song of David)” criam o início necessário para se abrir a uma viagem de escuta áspera sem nenhum alívio e, ainda, um pouco perturbadora mesmo que com alguns acenos de suavidade (à alegria “When heroes go down” , quase um “Shiny Happy People” um ano depois) e o estranho dualismo “noise and sweetness” da faixa-título “99.9 F°” define essencialmente a figura estilística definitiva do álbum, é o espanto nostálgico dessa maravilha que é “In Liverpool” que eleva o disco entre os melhores – na minha opinião – de todos os anos noventa: com um texto que mais parece uma pintura, Suzanne Vega relembra um episódio relacionado ao seu primeiro amor já cantado em “Gypsy”, uma menino que ela conheceu na América em um acampamento de verão. Ela foi visitá-lo em Liverpool e a música retrata os momentos antes de conhecê-lo, aquelas horas suspensas em que a gente se pergunta se o outro que não se vê há algum tempo se apaixonou por alguém (“Se você deitar no chão nos braços de alguém”) e em que se consegue concentrar, distrair-se, apenas no toque dos sinos: o sineiro que toca parece sentir falta de “alguém ou alguma coisa”, que era justamente o sentimento de Vega naquele momento .
Except for the boy in the belfry
He’s crazy, he’s throwing himself
Down from the top of the tower
Like a hunchback in heaven
He’s ringing the bells in the church
For the last half an hour
He sounds like he’s missing something
Or someone that he knows he can’t
Have now and if he isn’t
I certainly am
Uma história de família
De “99,9 F°” realmente nasce uma história de amor, entre Vega e Froom. Muito intenso e concreto, já que em 1994 nasceu sua filha Ruby. Em suma, essa colaboração frutífera foi imediatamente explosiva, tanto musical quanto pessoalmente, e não importa que os dois tenham se separado em 1998 porque, de qualquer forma, eles permaneceram em boas relações pelo menos após seu segundo casamento, ocorrido em 2006 quando Froom voltou a acompanhar Suzanne Vega na turnê. Esse álbum, portanto, se encaixou em um ponto de virada na vida pessoal de Vega, como ela declarou ao Los Angeles Times: “De repente, senti essa grande explosão de energia há cerca de um ano e meio. Você passa por certas mudanças em sua vida e tudo fica de cabeça para baixo e você começa a se perguntar para que está na Terra, e talvez isso ajude você a colocar as coisas em perspectiva, e acho que passei por algo assim há um tempo atrás. Mas não quero ser mais específica do que isso”. A cantora e compositora de fato compensou algumas coisas de seu passado, ela que, criada em uma família européia/porto-riquenha no East Harlem e outros bairros de Manhattan, foi informada aos 9 anos de idade que o homem que ela conhecia como seu pai era na verdade seu padrasto e que ela não era meio porto-riquenha. Alguns anos antes de “99,9 F °”, Vega rastreou seu pai biológico e descobriu que sua avó era baterista de um grupo feminino no circuito de vaudeville. “É uma sensação especial ter escolhido um estilo de vida pensando que você é original e espontâneo, e de repente perceber que sua avó fez a mesma coisa há 50 anos. Sinta seu sangue falando com você. Seu sangue que canta”.
Resumindo, “99°9 F” é realmente uma questão de sangue.
Texto publicado originalmente no site italiano Kalporz, parceiro de conteúdo do Scream & Yell.