entrevista por Renan Guerra
Surgida em 2011, a Mostra Cantautores nasceu da pulsão dos artistas mineiros Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes, que atualmente assina como Luizga. A ideia era simples e direta: aproximar o público da obra de diversos compositores em seu estado bruto, ou seja, acompanhada apenas de um instrumento. E aí entra a figura desse “cantautor”, palavra considerada um neologismo no português brasileiro, mas que é usada com até certa frequência no português europeu. Cantautor é uma palavra comum no espanhol e que define esse artista que compõe e canta suas próprias canções: a voz, a lírica e um instrumento.
Essa figura do cantautor foi personificada em quase 100 shows que já passaram pela Mostra, indo de nomes consolidados como João Bosco, Zélia Duncan, Ângela Rô Rô, Jards Macalé, Cátia de França, Alzira E, Joyce Moreno e Chico César à contemporâneos como Tim Bernardes – que fez seu primeiro show solo na Mostra –, Zé Manoel, Marcelo Jeneci, Ilessi, Luiza Brina, Juliana Perdigão e tantos outros. Porém, a Mostra entrou em hiato e durante quatro anos não aconteceu. Felizmente, o evento está de volta em 2022 e sua oitava edição contará com oito shows em três dias de programação, ocupando dois espaços culturais de Belo Horizonte.
Com curadoria de Jennifer Souza e Luizga e dividida em três dias, a Mostra Cantautores desse ano traz Josyara (BA), Davi Fonseca (MG), Igor de Carvalho (PE), Jasmin Godoy (HOL/MG), Bruno Berle (AL), Letícia Fialho (DF), Badi Assad (SP) e Maurício Tizumba (MG). Uma leva de artistas que mistura nomes importantes e consolidados como Badi Assad e Maurício Tizumba, mas que também olha para o que há de mais intenso e fresco em nossa canção, como Bruno Berle, Josyara e novíssimos nomes como Jasmin Godoy e Letícia Fialho. Para entender mais sobre as mudanças do evento e as singularidades dessa 8ª edição, Luizga, um dos idealizadores do Mostra, respondeu as três perguntas do Scream & Yell:
Foram quatro anos de hiato da Mostra Cantautores e foram quatro anos marcados por desmontes na Cultura. Nesse sentido, qual é a sensação e as expectativas de poder retornar esse evento?
Pois é, foi muito desafiador para a gente entender como manter e dar continuidade para o projeto depois desse longo período de trevas para a produção de cultura no Brasil. E por isso também a gente teve que reduzir o formato e a duração do festival nesse retorno, mas para nós o que sobressai disso é a alegria e a vontade de que a Mostra Cantautores siga tendo essa continuidade. E manter viva essa vocação de promover encontros e gerar debate, gerar pensamento, gerar reflexão em torno da produção e música popular, especificamente em canção no Brasil. Então a gente está muito feliz de poder reafirmar o festival como uma espécie de pólo central desse debate no país, um lugar que foi construído nesses últimos 10 anos com muita dedicação e muito apoio da classe, além de muita resposta do público também, o que mostra para a gente que esse é um campo muito fértil, e que a gente precisa continuar nutrindo e fomentando, porque faz parte talvez de um dos lugares mais preciosos da nossa identidade como brasileiros: a música popular brasileira.
A curadoria da Mostra sempre se preocupou em trazer artistas que são consagrados com novos nomes, inclusive apresentando artistas estreantes. Nesse ano temos desde Badi Assad e Maurício Tizumba até nomes jovens como Bruno Berle e Jasmin Godoy. Como funciona esse processo de seleção e de criação de diálogos dentro do lineup?
A curadoria do Cantautores sempre teve um traço de pesquisa muito forte e é algo que a gente continua reafirmando nesse festival, que é tentar trazer para o centro do debate, não o hype, os números, o ranqueamento das redes sociais e das visualizações e dos plays, mas muito mais do que isso, a singularidade, a qualidade e pertinência dos trabalhos que são apresentados dentro do nosso momento histórico em diálogo com a tradição, mas apontando também caminhos para o futuro. E nesse sentido, eu acho que a curadoria da Mostra continua sendo uma curadoria muito diferenciada, muito especial, principalmente. Quando comparada com a maioria dos eventos do circuito, né? Que por uma série de questões e necessidades, também não ativa essa postura de pesquisa tão forte e se repete muito. Dependendo da época, repete os mesmos nomes porque tem a sensação de que aquilo ali vai causar engajamento, vai trazer público. Então, no nosso caso, por mais que a gente também queira trazer público, porque também temos essas mesmas necessidades, a gente acredita que o festival é também uma instância de educação, de formação de público, de cartografar, de fazer um mapeamento dessa produção em canção no Brasil a partir de um ponto de vista artístico, estético, político. Por isso a Mostra é um festival que desde a sua gênese, desde a sua origem, trabalha muito com o ponto de vista do artista. Porque nós somos artistas também. A direção artística da Mostra é feita por mim e pela Jennifer Souza. Somos artistas do circuito, somos cantautores também. Então a gente conhece de perto as especificidades desse trabalho e os desafios e as questões todas. E isso, nesse sentido, é uma cultura que a gente tenta fazer geracional, mas também geográfica, para dar conta de uma diversidade que felizmente é muito grande. Obviamente, a gente não faz um recorte definitivo de nada, trazemos uma proposta de um mapa de alguma coisa que a gente considera sólida, inventiva, consistente, pertinente. Arte produzida no Brasil em 2022 e nos momentos históricos, através da melodia, através da palavra, através da harmonia, através da canção.
A Mostra Cantautores sempre teve esse caráter intimista, que busca aproximar o público da obra desses cantores e compositores de forma muito próxima. Como vocês enxergam a importância, cada vez maior, desses espaços que criam conexões entre artista e público ouvinte?
Eu acho que simultaneamente, enquanto existe um desenvolvimento sobrecarregado das grandes estruturas do espetáculo, da música pop, com toda a sua pujança, com toda a sua força de espetáculo visual, sonoro, multimídia, explosões e fogos de artifício, também existe um movimento de procura pelo lado oposto, pelo que é mais cru, pelo que é mais rústico de alguma forma. Nesse sentido, o festival, por ser um festival de atuações a solo, um festival em que você tem sempre um artista sozinho no palco com o seu instrumento, seja qual for o instrumento, eu acho que a gente acaba servindo também a isso, né? Alimentar essa demanda, esse desejo por esse contato com algo mais que seja mais essencial ali, e original na produção, que traga também traços de humanidade. Muitas vezes essa grande indústria da cultura pop não permite que artistas nesse contexto apareçam. Eu acho que a Mostra se posiciona muito no sentido de valorizar essa presença e essa quase vulnerabilidade mesmo do artista no palco ali sozinho, como algo que é essencial para a experiência da fruição estética ali. É muito especial você ter a oportunidade de ver o artista no palco sozinho, contando as suas histórias através da sua música e como que isso é tão potente, muitas vezes mais do que alguma coisa que seja parte de uma estrutura gigantesca de espetáculo. Então essa questão dos concertos serem muito intimistas é um dos poderes, um dos traços diferenciais, e que tem muita força dentro da concepção do festival. A gente atua para construir um ambiente adequado para isso, para que as pessoas estejam ali com a consciência de que o que vai acontecer ali em cima daquele palco é quase como um ritual no qual o artista abre o baú das suas canções e compartilha como elas vieram ao mundo. E eu acho que isso é muito precioso e muito poderoso.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.