entrevista por João Pedro Ramos
Há 13 anos a voz grave e rasgada de Mário Mariones ecoa nas músicas da banda de punk rock de Rio Claro Garrafa Vazia, que acaba de lançar “Flores Sangrentas”. A música mostra uma face mais madura do trio interiorano, mas sem deixar de lado as raízes da banda, fincadas no punk 77 de bandas como Ramones e The Clash.
Além de músicas que focam mais no punk rock divertido, como “Incurável Coriza”, “Aracy Com Y É Bem Mais Legal”, “Artista Visionário” e “Back To Bacana”, o Garrafa Vazia também tem letras políticas como todo punk deve ter, como em “Autonomia”, “Hipócrita”, “Luta Antirracista”, “Autoexposição Vazia”, “Coração Envenenado” e “Insubordinação”.
Conversei com o guitarrista, vocalista e fundador da banda Mariones sobre sua trajetória, a cena independente do interior de São Paulo, música em streaming e o punk rock em 2022:
Como você diria que o Garrava Vazia se desenvolveu do começo da banda até agora?
Ah, começamos como um power trio ali no final dos anos 90. Lembro que o nome era Bad Bad Trip. O Ricardo Drago ouviu uma (fita) cassete da gente e começamos a tocar no início dos 2000 em lugares muito bacanas, como o Bar do Zé, antes da reforma, ali tocando no chão. Aí eu dei um tempo pra literatura, estava escrevendo bastante, os blogs fervilhavam, o Marcelino Freire uma vez “postou” um texto e elogiou minha linguagem sonora, arisca, rasteira, cheia de veneno. Lembro que o Mário Bortolotto (antes dos tiros que levou) vivia republicando textos meus, me elogiando. Então fui pra literatura. Até que em 2009, juntei uma graninha como locutor das Lojas Cem e gravamos a primeira demo, agora como Garrafa Vazia. Quatro canções em português. Em 2010, fomos selecionados entre centenas de bandas pra tocar no Araraquara Rock, com o Cólera abrindo o show com “Águia Filhote” e com os nova-iorquinos do Biohazard. Isso trouxe muita visibilidade pra banda.
Nós fazíamos um som irreverente, e claro que a tríade Ramones – Clash – Sex Pistols e o punk 80 do Brasil estavam presentes. Nessa época eu era Educador na Fundação Casa, antiga Febem. Rodamos bastante no período, tocando bastante em SP e cidades vizinhas. Lembro de um show antológico no Porão, em Itapevi, que tinha as paredes forradas de tirinhas do Angeli, imagens do Bukowski. Os punks nos reconheceram logo pelo som “Punk do Mato”, que tem um clipe bacana gravado no Horto Florestal daqui (que tem uma reserva de eucalipto nervosa, além de ser um lugar ótimo pra compor, dar uns berros, visto que ele atravessa cidades, tem várias trilhas). Fomos até uma rádio lá na Brasilândia e o Ariel Invasor (o poeta das ruas, do Inocentes, Restos de Nada, Invasores) ouviu o programa e ao vivo nos elogiou, lembro até que falou que minha voz era parecida com a do Tom Waits!
A gente fazia vários shows, gravava muito, tocamos em festivais importantes. Teve uma vez que tocamos em um de dois dias no ABC com as bandas punks mais old school do Brasa, inesquecíveis. Continuamos gravando, com um som com melodias “grudentas” e letras irreverentes, falando do lado prosaico de morar numa cidade do interior. Até que conhecemos uma galera bacana de São Carlos, tivemos a manha de “unir” as tribos de lá e uma nova onda emergiu: gravamos “Back to Bacana” em uma tarde de domingo. “Back to Bacana” é um álbum com oito faixas que tinha músicas como a faixa título, que ao lado de “Corotinho” é um dos grandes hits da banda: uma música que exalta a amizade e a curtição teenager, sabe? Então, 2014 foi um grande divisor de águas, logo estávamos tocando em mais e mais cidades, até que houve um outro divisor de fumaças (risos).
Uma noite eu sonhei com a melodia de “Corotinho”, abri o notebook e gravei no Audacity, era de madrugada, sabe? Foi incrível… Tocamos uma vez em Sumaré e logo de cara pegou. Gravamos um EP com ela e virou um vinil de 7 polegadas, prensado na Europa e totalmente bancado pela Neves Records. Virou “campeão” de vendas. Aí fomos pra vários lugares. Lembro do Ricardo Tibiu publicando no Chiveta, que na época era ligado à MTV, tocamos no Hangar 110, fomos pra Curitiba, eu dei várias entrevistas e a galera pirou, do Fábio Mozine ao Manolo Almeida (do Crise Total, banda de Portugal fundada em 1985). Uma loucura, os shows cheios de gente…
Gozamos de prestígio, continuamos gravando músicas marcantes como “Punk Rock é Liberdade”, cuja letra é bem minimalista e o verso é “faça você mesmo” cantado quatro vezes e o refrão é “punk rock é liberdade, liberdade”. Passamos por uma mudança na formação mas não deixamos a peteca cair.
Fomos gravar outro vinil, de 10 polegadas, com uma produção requintada. A essa altura, Gabriel Thomaz, o Daniel Ete, o Moreno da Lixomania, a galera do Cólera (esqueci de mencionar que o Redson ia produzir nosso primeiro disco pouco antes de seu falecimento). Tocamos bastante, em vários Estados, fomos chamados pro Rebellion na Inglaterra, um dos maiores festivais punks do mundo, mas mudamos novamente de formação e tivemos que adiar. Mas aí gravamos um álbum incendiário “Birinaite Apocalipse”, lançado pela Red Star, selo paulistano que sempre admiramos. Outros selos entraram na jogada também, mas até hoje somos do time da Red Star. Quando fomos elogiados pelas melodias, pela minha voz pela turma do Agrotóxico, foi demais. O disco leva esse nome porque eu tinha uma música chamada “Birinaite”, e o Daniel Ete, numa gig, falou “já sei: o próximo disco de vocês vai chamar ‘Birinaite Apocalipse’”. Aí, dei aquela “arrumada” no refrão” e pronto, o disco estava pronto. Gravamos no dia 15 de março, pouco antes da pandemia explodir.
Alcançamos mais ouvintes, participamos como banda tocando na live do Prêmio Gabriel Thomaz (pela quarta vez concorrendo, dessa vez como álbum também, além de hit do ano) e lançamos o ep “Sambarilove” pela Red Star. Agora estamos novamente de nova formação, com o Zé na bateria (um cara que já tocou ao lado do Redson, do Clemente), o Vancil Monstro na guitarra, e eu desenvolvi mais técnica pra cantar. Fui parar no Madrigal daqui da cidade e desenvolvo minha voz de “baixo profundo”. Depois de um ano com essa formação e shows antológicos, gravamos “Flores Sangrentas”, uma faixa mais madura, mais lírica. Vivemos nosso melhor momento.
Me conta mais sobre “Flores Sangrentas”, esse lançamento mais recente!
Pô! Foi incrível. Gravamos aqui em Rio Claro, no Refúgio Cultural e Estúdio Katharsis. O Zé trouxe a batera dele gigantesca bumbão de 24″, e fomos produzindo num esquema “conta gotas”, com as camadas, e fizemos duas versões de mixagem. Eu me casei com a Teté (Stephanie Guardia) e aqui em casa com meu filho Ramone e o Frederico, um cachorrinho salsicha muito gente fina, fiz a música toda no violão…o Zé fez o arranjo pra batera, o Vancil trouxe linhas de guitarra bem elegantes. Ela tem um punch e feeling que impressionou bastante a Red Star, e a capa é da Teté. Logo ela ganhará um clipe, afinal do Katharsis tivemos a produção conjunto da banda com Gordfo Darco e o Bruno Nicoletti, que é um dos sócios do estúdio e é cineasta vai comandar a produção do clipe. A música surgiu numa rajada só, aí nós 3 fomos maturando em cinco, seis dias alternados…
Gravamos mais duas faixas também, “Impávido” sobre a vida simples numa cidade do interior e “Sensoriais”, que é uma homenagem aos replicantes, mais especificamente sobre o filme não o livro, sabe? Urgentes pela vida, como naquela fala do Rutger Hauer improvisada… Não deixamos as raízes 77 de lado, mas bandas como New Model Army, Replacements, o Husker Du não param de tocar aqui na minha cabeça…digo sempre que nosso som é Garrafa Vazia, longe dos rótulos, queremos romper com a ideia de se fechar em nichos para iniciados, saca? A recepção tem sido bem legal, do público, dos nomes da cena alternativa. O Vancil e o Zé se entrosaram logo de cara, e eles são muito profissionais, músicos experientes, e ensaiando bastante estamos tocando nos lugares e conquistando a galera, que geralmente pula e canta junto “Copo Vazio”, “Incurável Coriza” e sempre que postamos algum vídeo é de praxe o comentário “Eu tava lá”. “Flores Sangrentas” celebra essa fase e a letra é bem condizente com a constante reinvenção na vida cotidiana e da banda na estrada…nosso trabalho mais maduro, e como escritor e letrista eu também percebo que atingimos um outro nível…
Como você vê a cena independente do interior de São Paulo hoje em dia?
Ah, vivemos um momento de muita criatividade, expansivo. Surgiram depois do Garrafa ao menos 3, 4 gerações de bandas…é muito legal também que o Dezakato, que é de 89/90 está na ativa. Então, aqui em Rio Claro tem bandas muito legais, na estrada em estúdio, como a rapaziada do Atrito 137 (foi muito legal ver o início deles, tocando “Corotinho”) e a capa do play deles com uma ilustra do ETE com a galera jogando sinuca com a camiseta do Dezakato e do Garrafa Vazia. Eu acho espetacular a cena… tem muita banda boa de vários estilos, tem o Resistentes, o Murilo Birolo é um cara que faz acontecer e toca muito, eles tem uma música “Sem Fronteiras” que é um hino, de arrepiar. O Dezakato soltou novo EP, todos muitos amigos, Netão Lombada que tocou no Garrafa também, tem o maestro Pedro Brochini nas baquetas, com seu estilo único…
Tem o Bong Brigade, I Can’t Stand It, Leptospirose, Alerta Mental, Battra, Sacristia, Footstep, são gerações se unindo, está avassalador… é um grande momento, muitos shows, “o trecho tá de arrepiar”, é uma felicidade porque você vê a chama rock acesa. A galera tá bem unida, tem várias bandas né? Fica difícil citar todas, mas o momento é MUITO prolífico. Dá até choque de datas de tanto rolê legal. Tem um bar novo na vizinha Santa Gertrudes, o Let’s Go, do amigo Piu Meyer, produtor, e que é mais um lugar animal pra tocar. Aqui em Rio Claro a galera está bem unida e estamos na melhor fase em anos! Tem a galera do hip hop como o DirJay que corre junto com a gente, tem a o Estúdio Mutante onde com a Bode Preto fizemos nossa festa de 13 anos de bandas e também aproveitamos pra começar a produzir nosso documentário, que é um trabalho da Bode Preto Produções e a Brazilit Films… destaco também o corre da galera da Submundo e Central do Rock produzindo muitos rolês insanos!
Quais você diria que são as maiores influências do Garrafa Vazia?
O Muzzarelas e o Dezakato nos influenciaram muito, assim como o Cólera, o Restos de Nada, o punk 80. Cada um tem as suas, mas juntando tudo somos The Clash e Ramones até morrer, e eu gosto muito de blues, ali dos anos 20 até os dias atuais, assim como a soul music. Gosto de Adoniran Barbosa, Pena Branca & Xavantinho, Dead Kennedys, Chopin, Black Flag, Paulinho da Viola, Attaque 77, Bob Mould, Guilherme Arantes, Jesus and Mary Chain e Slayer. Gosto de Johnny Thunders e de ouvir “Crucificados pelo Sistema”. Gosto de ver Jim Jarmusch, acho que as influências se mesclam, com Bosch, William Turner, os beats…o Zé se liga muito em jazz e mpb, o Vancil pira em Sonic Youth, Teenage Fanclub…. É difícil não citar Cramps, Sonics, Stooges…amamos o que é feito com entrega, de verdade. O New Model Army é uma banda que nunca deixarei de ouvir… Gosto muito dos poetas malditos…Roberto Piva, Chacal…o próprio Leminski….
Vocês acabam de lançar músicas no formato single. Como você vê essa “queda” dos álbuns como formato utilizado pelas bandas?
Acho que toda mudança gera discussões que tendem a ser férteis. Com a mudança do LP pro CD muita gente reclamou e tal, etc e o rock continua. Hoje, infelizmente a galera tá dispersa com tanta informação né? O álbum virou um single, então acho que é o formato no momento mais “viável” pra chegar de fato nas pessoas. Ainda vamos lançar álbuns. Mas no momento estamos lançando singles…
Já que você falou sobre o rock continuar, como você vê o rock hoje em dia? Muitos dizem que “morreu”, outros que ele foi parar onde fica melhor, no underground… Outros vêem uma volta ao mainstream com artistas como Olivia Rodrigo e Demi Lovato enveredando para esse lado…
O rock está falido e inofensivo, vamos ser realistas. Blogs vivem de fofocas de famosos. Vez ou outra alguma banda ou artista faz algo, mas não me convence. É inofensivo. Por mais foda que uma banda seja, ela se rende a concessões, conveniências do momento, e nunca agride nem de viés as engrenagens do poder. No entanto, eu acho que é cíclico. Só não sei quantos anos vai demorar. Quando for seguro investir bilhões num artista ou determinado “estilo, as grandes corporações vão “empurrar” o estilo sem medo de arriscar. É um pouco como a crítica do Scorcese aos filmes da Marvel. Onde está a sabedoria? Onde está um Lou Reed, Dylan, Lennon?
A indústria do entretenimento, baseada em grande parte nessas enfadonhas pesquisas de opinião quantitativa, vai mesmo é tornar o consumidor produto cada vez mais nulo, idiotizado, infantilizado. Ele acha que participa e tem voz, mas é um iludido. Ansiedade, depressão, autoexposição vazia, linguagem rasa relatando parcos estados anímicos são sintomas dos tempos que exigem determinação pra que .
Escrevi um som que ainda não gravamos, “A música morreu” com caráter nitidamente de atentar que a música enquanto contemplação-felicidade tá morta, a música como ritual de uma alteridade realmente comovente, como celebração e de como a canção incorporar a narrativa de cada pessoa já não ocupa mais o espaço de outras décadas, assim como a literatura. Hoje, pra muitos, não importa quem toca, importante é a baladinha. Se trocarem a banda, nem percebem. Então, o rock é descartável? Eu amo o rock e pra mim ele é combustível, sempre será. O outro lado, da volta e as artistas citadas, me lembrou uma situação. Dia desses, trampando como locutor no Magazine Luiza, o gerente viu a mesma perspectiva, de um retorno do estilo. Por que não? As novas gerações nunca podem ser subestimadas. Meu filho tem 11 anos e já tem uma consciência abrangente em várias questões sociais e tem muita empatia, vejo um futuro reluzente na molecada!
Em 2022, as pessoas já não são mais presas em ouvir apenas um gênero musical. Isso também acaba facilitando também que gêneros se misturem, com misturar de trap com rock, sertanejo com pop e etc. Como você vê o punk no meio de tudo isso?
Eu sempre achei a mistura, o crossover muito saudável, movimento criativo. É difícil inventar a roda né? Como diria Voltaire “a originalidade nada mais é do que uma imitação criteriosa”. O Charley Patton no início do século passado já fazia a base rock and roll que o Chuck Berry junto com seus double stops fez, aí você tem o Ramones deixando isso mais rápido, misturado com as girl groups, surf music, sem contar com a relação com as outras artes, sempre achei fundamental a linguagem heterodoxa pra anarquizar o óbvio, que o óbvio é um estraga prazer na fruição da arte, né? Eu acho que o punk tem que misturar. O Garrafa Vazia já fez marchinha de carnaval, tem música mais experimental garage rock. O punk dialogando com o rap é fodão quando autêntico. Eu acho que quanto mais visceral a entrega a urgência somado ao repertório cultural e as vivências absorvidas na temperatura das ruas, mais substância tem a poética. Legal essa mistura, uma telepatia com salada de ritmos texturas anímicas, acho fodão. Nós caminhamos pra deixar as composições mais cinematográficas sem perder o minimalismo e a essência faça você mesmo da banda. Eu quero ser surpreendido e surpreender, quero alteridade, epifania, quero arrepiar ao ouvir um som que na hora você não consegue definir tamanha a gama de caminhos que ele te conduz, sabe?
O que podemos esperar para o futuro do Garrafa Vazia?
Rupturas na estética cheias de identidade “Garrafa Vazia”. Venho estudando mais o canto, me aperfeiçoando enquanto músico, o Vancil, com sua Les Paul cheia de elegância, que tem sua banda Garagem Clandestina, é uma usina de riffs sonic youthianos, o Zé, que além de batera tem o seu trabalho como Zezagerado, também está empolgadaço e feliz. Ano que vem já temos dois grandes festivais confirmados, no primeiro semestre, além do documentário, vamos gravar uma session no Estúdio Mutante do grande Ricardo Drago. Parece que a banda tá naquele lance virada de página cheia de estilo pique “London Calling”, naquele lance “Out of Time”, saca? Estamos bem entrosados, então vamos fazer barulho e nos shows levar sempre nossa verdade, personalidade, que é tocar até sangrar, com muita energia e entrega, sempre! É muito legal depois ver os comentários da galera, sempre tem o “tava lá” nos nossos vídeos. Estamos mais maduros mas sem perder o charme teenager que sustenta a “sustância” cujo lema é “Garrafa Vazia, chefia!” E viva a amizade, a anarquia e a diversidade! Esse será sempre nosso espírito! Zé, Mariones e Vancil: Garrafa Vazia, el power trio! E claro: cada vez uma maior consistência no lirismo aqui da vida na roça, no interior, onde você toma injeção na farmácia da Cida, compra botijão do Agenor e compra rifa do Biluca na praça.
– João Pedro Ramos é jornalista, redator, social media, colecJionador de vinis, CDs e música em geral. E é um dos responsáveis pelo podcast Troca Fitas! Ouça aqui.
Linguagem imaginativa é o ponto forte do Garrafa Vazia. É uma das maiores bandas independentes, banda com identidade, repertório ótimo; pura criatividade. E a nova formação impressiona.