A Capa do Disco: “Three Imaginary Boys” e a tentativa de acentuar as raízes suburbunas do The Cure com… eletrodomésticos

texto por Luciano Ferreira

“Sou o aspirador de pó, Robert é a luminária e Michael é a geladeira” é o veredito do baterista Lawrence ‘Lol’ Tolhurst sobre a capa de “Three Imaginary Boys”, álbum de estreia dos então novatos The Cure. Robert é o vocalista e guitarrista Robert Smith (que nesse álbum ainda toca harmônica em uma faixa) e Michael é o então baixista do grupo, Michael Dempsey. Em seu livro “Cured: The Story of Two Imaginary Boys” (2016), Tolhurst comenta ainda que “ninguém queria ser a geladeira”.

Lançado em maio de 1979, “Three Imaginary Boys” gerou opiniões divididas dentro da emergente banda de Crawley devido as escolhas, à cargo do dono da gravadora Fiction Records, Chris Parry. Mas Robert Smith foi quem mais se chateou com tudo.

Smith odiou a escolha não só da arte da capa como também a seleção das faixas que entraram no álbum, ambas à cargo de Parry, que também foi o produtor do disco. “Foi totalmente ideia do Parry. Ele teve essa ideia sobre a banda, que aceitei com resistência. Chris nos disse para gravar todas as músicas que tínhamos e trabalharíamos no que iria para o álbum depois. Confiei nele, mas, no final das contas, só ele escolheu o que entrou no LP”, afirmaria um Smith ainda revoltado com o resultado final anos depois: “O primeiro disco é o que menos gosto da banda”. Já Lol tem uma outra visão. Em 2005, ele comentou sobre a reação da banda na época: “Falamos ‘OK’. Não sabíamos de nada, então fomos com a maré”.

Picture disc de “Three Imaginary Boys”, do Cure

A capa de “Three Imaginary Boys” é minimalista e retrô. Apresenta três utensílios domésticos sob um fundo rosa, e é uma criação do designer e fotógrafo britânico Bill Smith. Bill colocou apenas os três objetos: a luminária acesa, a geladeira com a porta aberta e o aspirador de pó Hoover, e mais o logotipo do The Cure à época, com a letra “C” levemente caída. No rótulo do disco, ao invés do nome das canções, símbolos representando cada uma delas. Na parte interna, fotos diversas, incluindo de autoria de Porl Thompson, membro ocasional da banda à época, que seria efetivado nos anos seguintes.

A carreira de Bill Smith teve início como diretor de arte na editora Octopus Books e, posteriormente na gravadora Polydor Records. Em 1978, ele fundou seu próprio estúdio de criação, o Bill Smith Studio (BSS). Dentre os inúmeros trabalhos de sua autoria na década de 70, estão as artes das capas dos discos de Rory Gallagher, The Who, The Jam (quase todos os álbuns), The Hollies, e o single “You Can’t Put Your Arms Around a Memory”, de Johnny Thunders. Indispensável citar esse último porque compartilha com a capa do The Cure a mesma tonalidade rosada, só que nas bordas laterais.

Bill era conhecido do The Cure, ele havia trabalhado com a parte gráfica do polêmico primeiro single da banda, “Killing an Arab”, lançado em dezembro de 1978, que Robert também não havia gostado da capa. Detalhe: a faixa não apareceu entre as escolhidas por Parry para entrar em “Three Imaginary Boys” e só seria lançada posteriormente em “Boys Don’t Cry” (1980), espécie de compilação lançada para o mercado estadunidense, contendo boa parte das faixas do álbum de estreia, mas com uma seleção diferente, ordem diferente e capa diferente – “Killing an Arab” iria abrir também uma das mais famosas coletâneas da banda, “Standing on a Beach”, de 1986.

Michael Dempsey, Robert Smith e Lol Tolhurst

Artista requisitado, principalmente na década de 80, quando foi responsável, por exemplo, pelas capas dos álbuns de Kate Bush, Bill Smith comentou numa entrevista ter criado cerca de 3 mil capas, e citou a ideia que permeou a de “Three Imaginary Boys” (citada entre as suas preferidas): “A imagem dos três eletrodomésticos era para parecer uma foto tirada da revista Ideal Home por volta de 1967 e Robert era realmente uma luminária”.

Na mesma entrevista, quando perguntado sobre as maiores capas de todos os tempos, ele cita “Closer” (Joy Division), “Revolver” (Beatles), “Parklife” (Blur), “Stick Fingers” (Rolling Stones), “Atom Heart Mother” (Pink Floyd), “50,000,000 Fans Can’t Be Wrong” (Elvis), a do disco de estreia do The Velvet Underground, e acrescenta apenas uma de sua autoria: “Three Imaginary Boys”. “Acho que acertei com essa”, ele resume. Bill lançou em 2021 o livro “Cover Stories: 5 Decades of Album Art”, onde comenta sobre a criação da arte da capa de mais de setenta álbuns, com comentários de artistas, fotógrafos e pintores.

Se o Smith (Bill) artista gráfico tem tanta estima pela capa de “Three Imaginary Boys”, o mesmo não pode ser dito pelo Smith (Robert) músico, que por muitos anos criticou a escolha, algo que ele não teve como contornar, pois todo o disco já estava pronto quando lhe foi apresentado por Parry. A definição de Robert para a arte da capa não é nada lisonjeira (“Um saco de merda”, ele define), mas para o produtor e empresário da banda, eles não tinham uma imagem, então a ideia foi fazer algo totalmente desprovido disso, além disso “era tarde demais para mudar qualquer coisa”.

Martyn Goddard, o responsável pela foto, relembra a escolha da imagem da capa: “A natureza morta na capa do álbum de estreia do The Cure foi concebida pelo designer de capas da Polydor, Bill Smith. Eu tinha trabalhado com Bill no álbum ‘In the City’, do The Jam, e o The Cure era outro novo artista que a gravadora estava prestes a promover. No entanto, havia um problema; a banda não queria sua foto na capa. Nós utilizamos os utensílios domésticos comuns para representar os membros da banda. O título do disco focando em ‘Imaginary’ ajudou no nosso conceito final. Eu queria usar o fundo rosa brilhante, pois ele se destacaria nas prateleiras de discos do ponto de venda e aconteceu de eu ter um rolo de papel colorama rosa no estúdio”.

Em uma reportagem de 2021 sobre a arte da capa, Bill também comentou sobre a escolha: “Achei Robert um pouco distante e pouco comunicativo, mas quando ele disse algo foi muito articulado, mas ele não me deu nenhuma pista real sobre o que eles queriam na capa. Parece que Robert não estava particularmente feliz com a música do álbum e, no final das contas, também não estava muito feliz com os elementos visuais… Eu estava olhando para artistas modernos como Jeff Koons e o artista pop Richard Hamilton, onde eles usaram eletrodomésticos em suas colagens/instalações. Eu também queria fazer a foto parecer uma página de uma revista Ideal Home por volta de 1965, talvez para acentuar as raízes suburbanas da banda”.

O episódio com seu álbum de estreia serviu como alerta para Robert Smith. A partir dali ele passaria a se envolver em todo o processo relacionado aos álbuns do The Cure, desde a produção até a criação gráfica. Mas a ligação da banda com Bill não se encerrou após o álbum de estreia: ele trabalharia na criação da capa de “Boys Don’t Cry” (1980) e também “Seventeen Seconds”, segundo álbum do Cure. Ele também criaria a capa de álbuns de outros dois artistas da Fiction Records: “The Affectionate Punch”, dos escoceses The Associates (banda que Dempsey se juntaria após sair do The Cure) e “Michael & Miranda”, da banda pós-punk inglesa The Passions, ambos produzidos por Parry.

A foto de Martyn Goddard

“Three Imaginary Boys” tem treze faixas, abrindo com “10:15 Saturday Night”, lado B do single “Killing an Arab”, e “fechando” com a faixa título – seguida pela instrumental “Wendy Burton”. A primeira, um hit que a banda tocou por muito tempo durante os shows; e a última, a canção mais densa do disco, como que antecipando o que viria no álbum seguinte. Há ainda uma versão crua para “Foxy Lady”, de Jimi Hendrix, cantada por Dempsey, e que Robert Smith odiou que tivesse entrado no disco, assim como “The Object”, consideradas descartáveis. Tanto Smith quanto os outros membros da banda também não gostaram da sonoridade do álbum, a cargo de Parry (produção) e Mike Hedges (Engenheiro de Som).

Apesar da chateação de Robert Smith, na época de seu lançamento, “Three Imaginary Boys”, a despeito de algumas críticas negativas, teve boa recepção de forma geral – a de Paul Morley, do NME, foi a mais incisiva: “O The Cure está tentando nos dizer algo, estão tentando dizer que eles não existem. Estão tentando dizer que tudo é vazio. Estão fazendo papel de bobos”. A banda ficou tão irritada que fez uma versão para “Grinding Halt” com o título “Desperate Journalist In Ongoing Meaningful Review Situation” durante uma sessão para o programa de John Peel em 1979.

Em 2004, “Three Imaginary Boys” ganhou uma edição dupla remasterizada (relançada em 2012), trazendo várias faixas bônus: demos, out-takes e versões ao vivo.

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 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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