Nota do editor
O primeiro envolvimento de Erasmo Carlos com a música data de 1957. Foi com o The Sputniks, banda formada por Tim Maia que ainda contava com Roberto Carlos. O grupo não foi pra frente, mas Erasmo estaria junto com Roberto em um novo projeto, o The Snakes, que chegou a ser banda de apoio para uma versão roqueira de Cauby Peixoto, no single “Rock and Roll em Copacabana”, de 1957, e no filme “Minha Sogra é da Polícia” (1958). Corta para mais de 50 anos e, em 2011, Erasmo estava encerrando a turnê “Sexo & Rock ‘n’ Roll” (respectivamente seus discos de 2011 e 2009) quando surgiu a oportunidade do último show contecer no mítico Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Roberto foi convidado para participar, Marisa Monte também, e assim nascia o registro “50 Anos de Estrada – Ao Vivo no Theatro Municipal”, lançado em 2012. Chico Castro Jr. conversou com Erasmo e a reportagem foi publicada no Caderno 2+ do jornal baiano A Tarde em 30 de maio de 2012 – e posteriormente em seu blog pessoal, Rock Loco. Como uma forma de homenagear o Gigante Gentil, que nos deixou aos 81 anos em 22 de novembro, republicamos essa entrevista no Scream & Yell.
entrevista por Chico Castro Jr.
Uma trajetória tão espetacular quanto a de Erasmo Carlos merece uma comemoração à altura. O CD duplo / DVD “50 Anos de Estrada – Ao Vivo no Theatro Municipal” (2012) cumpre a missão com louvor, sem ceder à nostalgia ou emoções baratas.
Gravado no suntuoso palco do Rio de Janeiro, o show traz o Tremendão em uma bela revisão de carreira, acompanhado de banda enxuta, porém afiadíssima, que inclui o power trio Filhos da Judith (Luiz Lopez, Pedro Dias e Alan Fontenele), Dadi Carvalho (na guitarra, uma raridade), Billy Brandão (guitarra), José Lourenço (maestro e teclados) e, em algumas faixas, a Orquestra de Cordas do Municipal.
Mesmo que às vezes pareça meio tímido no palco, Erasmo esbanja seu carisma natural e está com a voz em forma. Os convidados são uma atração à parte: Marisa Monte (com quem canta “Mais Um na Multidão”, faixa que compuseram juntos) e claro, um Roberto Carlos mais solto e à vontade do que em 30 e tantos anos de especiais na Globo, cantando “Parei na Contramão” e “É Preciso Saber Viver.”
Desnecessário dizer que é o momento mais emocionante e especial do show, até porque, como Erasmo confirma nesta entrevista, não houve roteiro, o que gerou um ou dois divertidos momentos de desconcerto entre os velhos amigos. Uma linda coleção de sucessos e o testemunho definitivo de um gênio da música popular.
O senhor ficou satisfeito com o resultado? Com o show em si, com a direção do DVD?
Senhor está no céu! (risos). Senhor é o Papai Noel, Dom Pedro II. Mas, sim, fiquei satisfeito. Ficou bonito pra caramba! Um dos dias mais felizes da minha vida.
Logo no início você diz à plateia que “nunca antes vocês viram um compositor mais feliz no palco”. Você se sente mais compositor do que performer?
Eu sou compositor, é minha profissão mesmo. Não sou cantor. Canto por consequência de minhas composições, mas me considero mesmo é compositor. O que eu sei fazer é música. Tudo o que gira em torno disso – show, cantar, gravar, dar entrevista – tudo é em função de eu ser compositor.
A coisa toda de ser um show comemorativo de 50 anos de estrada, de ser no Municipal etc. – tudo isso chegou a te intimidar em algum momento? Você ainda fica nervoso antes de subir no palco?
Nervoso a gente fica sempre. Em qualquer show. Mesmo sabendo tudo, tendo feito milhares de shows pela vida, cada dia é uma emoção diferente. Cada público, cada cidade é diferente. Então, dá vontade que saia tudo perfeito, que não tenha problema nenhum no som, que o show ocorra tranquilo, que as pessoas entendam o amor que a gente quer transmitir, que a gente consiga receber também o amor que as pessoas querem devolver, se não vai pifar nada, o instrumental… Então, essa preocupação toda gera uma tensão muito grande. Dá aquele nervoso na gente, que chamam de friozinho na barriga, que não é friozinho, é dor, mesmo! É dor na barriga mesmo (risos). Mas lá pela terceira música ela passa e o show caminha tranquilo.
É até uma coisa natural, é necessário para se manter atento a tudo, né?
É! Agora respondendo à sua outra pergunta, eu não sei hoje em dia o conceito que as pessoas têm do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas acontece o seguinte: quando comecei minha vida (artística) lá nos anos 1960, lá na Tijuca, menino sonhador, sabe, aventureiro, eu jamais imaginaria um dia poder pisar naquele palco, que é uma coisa tão grande, um templo sagrado que abriga as artes nobres, sabe? Então, eu jamais imaginaria, naquele tempo, pisar um dia no palco do Municipal – ainda mais cantando rock ‘n’ roll! Então, minha alegria, minha felicidade, no dia que fiz isso, foi inexplicável, inenarrável. Inclusive, cantar “Festa de Arromba” no Municipal. Isso, pra mim, foi a maior vitória que já tive na minha vida. Muito significativo. Na minha cabeça, todo mundo que eu falo em “Festa de Arromba” estava ali no palco comigo.
Você retomou a pegada rock ‘n’ roll nos últimos discos. O que motivou isso? Uma necessidade de retorno às origens, ou o senhor achou que estava na hora de mostrar para a molecada como se faz? Por que está faltando rock ‘n’ roll, né?
É um misto disso tudo e mais o seguinte: eu sou um compositor brasileiro. E aqui no Brasil a gente sofre muitas influências, né? Na Inglaterra, o compositor é aquilo só. É só aquilo que tem, aquele negócio deles, lá. Eles não sabem outras coisas. Aqui, não. A gente é muito rico de influências. No Maranhão tem influência, Recife… A Bahia, então, nem se fala. Tem lá no Sul, no Centro-Oeste…
É, cada região tem suas músicas características, né?
É. E tudo isso influencia você. Assim como eu me influenciei na minha vida com todos os ritmos que apareciam… A minha estrada é assim, tão longa, que eu vivenciei o nascer de vários ritmos. Mambo, rumba, cha cha chá… Eu vi o nascer do rock ‘n’ roll e da bossa nova. É diferente de uma pessoa hoje em dia: “Como é que é essa tal de bossa nova?” Aí o menino vai ouvir e “Porra, é isso aí?” Ele ouve por ouvir, com o ouvido “frio” do menino de agora, sabe? Eu não! Eu vi a magia do nascer da coisa. Eu ouvia os comentários nas ruas: “Já ouviu a música tal? Tem um cara aí que canta esquisito, com a voz baixinha, ele é desafinado pra caramba”! (risos) As pessoas nem tinham noção. Eles confundiam a afinação de João Gilberto com desafinação. Então, essa maravilha toda, os comentários nas esquinas, os primeiros acordes novos, ia um ensinando pro outro, sabe? Era a magia do momento. Eu vivi isso tudo, o rock ‘n’ roll, a bossa nova e outras coisas também. Então, hoje em dia, claro, eu sou um compositor brasileiro que sofre essas influências todas e isso me faz, de vez em quando, ir por outros caminhos. Aí, daqui a pouco, eu tô muito emepebista, depois faço um bolero… sei lá o que eu faço. Mas, de repente, me toquei: porra, eu comecei minha vida cantando rock ‘n’ roll. E apesar de nunca ter deixado de fazer rock ‘n’ roll, eu nunca mais tinha assumido mesmo a coisa: eu sou isso. Apareci assim e vou ficar assim. E tem também isso aí que você falou. Porra, tá na hora de ensinar pros meninos o que é rock ‘n’ roll mesmo! Aí voltei, me dei muito bem e vou continuar.
Estava vendo o release do Arnaldo Antunes e ele diz que você surgiu apenas dez anos depois do rock ‘n’ roll em si. Como foi acompanhar o desenvolvimento do rock ao longo dessas décadas?
Eu tive que acompanhar. Fui crescendo junto com ele, mas tenho que confessar que, dos anos 1970 em diante, nada mais me arrepiou, bicho. Eu parei nos anos 70 nesse lance de músicas preferidas, de me arrepiar com as músicas, de chorar pra caramba ouvindo uma música, eu parei ali. Nada me arrepiou nos anos 80, 90, 2000. Hoje, nada me arrepia. Então, meus discos preferidos são esses, meus rocks básicos, a bossa nova básica de João Gilberto, Marcos Valle, Tom Jobim, Vinícius, eu gosto dessas coisas assim.
O arranjo estilo 007 de “Negro Gato” ficou espetacular. Como surgiu?
Os arranjos a gente vai fazendo… O maestro Zé Lourenço toma as iniciativas lá e todo mundo vai criando, bicho. Eu digo como é que eu quero mais ou menos a levada, não abro mão das minhas divisões e eles fazem o arranjo em cima delas. Por isso que é bom você contar com excelentes músicos criativos, sabe? Porque tem músico que não cria, só vai na água com açúcar. Pega a harmonia e pronto, vai tocando com a cifra, vai seguindo e não cria nada. Músicos criativos não, eles enriquem seus arranjos.
O senhor tocou com uma banda compacta, mas muito eficiente, os meninos da Filhos da Judith, Dadi, Billy Brandão…
É mesmo, mas pô! Para de me chamar de senhor!
Ô, desculpe, é o costume!
É respeito demais (risos)!
Aquela canção ecológica (“Panorama Ecológico”) do senhor e do Roberto é antiga? O senhor diz que não ouviram vocês falando de ecologia nos anos 1970 porque vocês falavam em português…
Aquela música é de 1974 ou 1976, se não me engano (Nota do editor: A canção foi lançada no álbum “Pelas Esquinas De Ipanema”, de 1978). Mas aquilo que eu falo é uma ironiazinha, sabe? Daquilo que eu chamo de “complexo de vira-lata”. Eu chamo, não. Acho que foi o Nelson Rodrigues que criou esse termo. É esse eterno complexo que brasileiro tem de achar que tudo que é (norte) americano é melhor. De seguir os americanos em tudo. Logicamente que é um povo espetacular, defensor de uma liberdade legal pra caramba, mas também é um povo prepotente e arrogante. E o Brasil tem essa mania de achar que tudo que é americano é lindo e maravilhoso, ao ponto de dar um valor exagerado, eu acho, às coisas americanas, em desprestígio das nossas. Isso me causa uma certa chateação. Então, aquilo que eu falo é um pouco de ironia em cima disso. Quando o cara fala em português, ninguém presta atenção, pensa que é besteira, “o cara tá maluco” (risos). Aí o outro fala em inglês, tem outra seriedade.
A participação da Marisa Monte ficou maravilhosa. Vocês gravaram aquela música juntos, né?
Fizemos e gravamos juntos. Aí era óbvio que a gente cantasse, porque nunca tínhamos cantado ela juntos ao vivo. Foi bonito, um momento marcante e registrou pra sempre nós dois cantando nossa música juntos.
Como todo grande artista o senhor tem várias facetas: tem o Erasmo roqueiro, o Erasmo romântico, o Erasmo comentarista social – em qual pele o senhor se sente mais confortável, mais Erasmo?
Olha, acho que, desde que eu goste do tema, acho que eu sou eu, sempre. Quando calha um tema que possa fazer ele com humor, ih, eu fico muito feliz, eu gosto muito de usar a ironia, o humor, de deixar alguma coisa no ar para as pessoas pensarem, sabe? Por exemplo: “Dizem que a mulher é o sexo frágil”. Não sou eu que estou dizendo – “dizem”. Então já bota a responsabilidade para o outro… Eu gosto muito desse jogo, do comentário. Eu sou cronista. Me considero um contista, eu conto coisas da vida, vistas pelo meu foco.
Aquela introdução com o senhor falando disfarçado, como nos jornais da TV, foi uma sacada muito inteligente que fala do preconceito contra os roqueiros aqui no Brasil, uma coisa que até eu, que só tenho 40 anos, sofri nos tempos da escola, já nos anos 80. O senhor sofreu muito com isso?
Claro, sofri muito preconceito! Era terrível, rapaz! Contando assim, nem dá pra transmitir o que era. Por que no início, tinha a religião contra (o rock). Chamava de coisa do diabo (risos), dizia que o demônio entrava nas pessoas, eram contra a dança, contra a música, o ritmo… Então, tinha movimentos. Aí na Bahia, por exemplo, eu fui com Renato & Seus Blue Caps, quando eu era da banda, a gente foi em Itabuna. Fizemos uma excursão por Itabuna, Feira de Santana e Salvador. A gente cantou no (Clube) Baiano de Tênis e, porra, não teve um aplauso, cara!
Foi mermo?
Imagine você, uma banda acaba de tocar e ninguém aplaude. A juventude queria dançar: as meninas, os rapazes. Mas os pais estavam junto e eles tinham medo. Era muito preconceito sobre tudo, os costumes. E o gênero (rock ‘n’ roll) libertou essas pessoas. O rock ‘n’ roll libertou a juventude toda, porque era uma juventude presa, escravizada aos gostos dos pais. Até no modo de se vestir, o comportamento… e claro que a música também, ouviam o que os pais ouviam, os cantores antigos como Silvio Caldas, Orlando Silva e outros. E no Estados Unidos era Sinatra, as big bands, Glen Miller. Antigamente, quando morria uma pessoa do governo, eram três dias de luto, parava de tocar tudo quanto era música nas rádios. Tocava só música clássica (risos). Então, a gente teve essa vivência, o rock ‘n’ roll era completamente marginalizado. Tatuagem, também. Qualquer coisa que exprimisse liberdade era malvista. E começava em casa. Era malvisto pelos pais e pela sociedade em geral. Então, quem vivia daquilo, daquele ritmo que estava surgindo, quem abraçou e se dedicou àquilo, sofreu pra caramba.
Ver o senhor e Roberto Carlos juntos no palco já é emocionante para qualquer brasileiro, imagino como dever ser para vocês dois. Como é para o senhor? Respira fundo, ou tira de letra?
Imagina pra nós! Mas é bonito, respira fundo, engole a lágrima, o abraço é mais forte, porque você vê além da sua alegria. A alegria do outro que também está feliz naquele momento. Roberto foi de uma generosidade, de uma entrega maravilhosa. Foi inesquecível pra mim. E ele estava muito solícito. Olha que a gente já cantou por vários anos nos especiais dele na televisão. Mas ali ele estava diferente comigo, sabe? De repente, era porque era o meu show, minha realização e ele estava apenas participando. A entrega dele foi total. Foi um Roberto como eu nunca tinha visto antes comigo, embora já tivéssemos cantado tantas vezes antes juntos.
É verdade, ele estava mais solto, mais à vontade.
Era como se estivéssemos cantando em casa, e nada foi combinado. Diferente dos textos que a gente recebe nos especiais dele, porque vem o texto antes, sabe? Aí a gente improvisa em cima de um texto. Lá (no Municipal) não teve texto. Foi que vinha na cabeça a gente falava.
Por que o senhor e Roberto não fazem um projeto juntos?
Isso é meio impossível. Muita coisa, muitos interesses paralelos, editoras e gravadoras diferentes. É meio complicado. As pessoas me cobram muito isso. ‘Faz isso’, ‘faz aquilo’, mas tudo o que a pessoa pensa já foi pensado por mim. Eu já pensei em todas as possibilidades possíveis e impossíveis de gravar disco, mas tudo tem sua hora. Se tiver que ser, será. Na minha vida não forço nada. Tudo o que acontece é porque tem que acontecer, mesmo. A vida botou na minha frente, aí cabe a mim dizer sim ou não, com a responsabilidade de, de repente, dizer não a uma coisa que dá certo. Ou dizer sim a uma coisa que não deu certo. Isso é a sorte. Mas eu não procuro nada, não forço barra nenhuma, não pertenço a grupo nenhum, panela nenhuma. Eu sigo simplesmente minha vida fazendo minha música, e o que tem que acontecer, acontece.
Por que Wanderléa não participou?
Por que… ela não… (Para e pensa um pouco) Não fui eu quem fez as escolhas. Seria muito óbvio, sabe? Acho que queriam fugir do óbvio, botar pessoas da Jovem Guarda, fica aquela coisa, DVD da Jovem Guarda. Não é, cara. Também não convidaram um monte de artistas para participar, porque não foi uma coisa feita para o Municipal. Foi o último show da temporada do disco “Rock ‘n’ Roll” (2009). Então, a gente ia fazer o último show aqui no Rio. Poderia ser em qualquer casa de show. Mas, de repente, surgiu o Municipal. Aí fizemos e a coisa cresceu. Aí minha produção convidou o Roberto Carlos e a Marisa Monte. Foi surpresa até pra mim quando me disseram, “Ih, o Roberto vai!”. Eu fiquei “É mesmo?” “A Marisa Monte também!”. “Pô, que genial!”. Quer dizer, não foi uma coisa feita para o Municipal nem para os “50 anos de Estrada”. Foi o último show da temporada “Sexo & Rock ‘n’ Roll”, que calhou de ser no Municipal.
O senhor vai correr pelo Brasil com esse show do DVD?
Já fiz a Bahia, inclusive, uma semana antes do Municipal. Agora devemos voltar, mas não fechamos data ainda. Já fizemos Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Agora vou pro Rock in Rio Lisboa. Na volta, vamos pensar a estrada desse show do DVD. (Fala com alguém ao lado) Hein? Ah, eu fiz um show semana passada na Costa de Sauípe. Foi um evento fechado para uma firma lá, no Hotel Ibero Star.
O senhor já tem planos para um próximo trabalho?
Não, não tenho nada ainda, bicho. Tô na estrada e devo ficar nela por mais um ano, pelo menos. Depois penso em coisa nova.
A Coqueiro Verde está botando muita coisa nova bacana no mercado. O que senhor tem ouvido?
Cara, não tenho mais muito tempo. É muita música, muita gente, muita informação. Se eu parar para ouvir todo mundo, não faço mais nada. Na Coqueiro é meu filho, Leo Esteves, quem comanda. Ele me manda uns suplementos, mas nem dá pra ouvir todo mundo.
Erasmo, é sempre um prazer falar com você.
Pô, pra mim, também, que eu posso falar um monte de mentira e você acredita. (risos)
Espero ouvir muito mais mentira do senhor, ainda.
Tá bom, bicho! Obrigado por tudo e fica com Deus.