de Ismael Machado
Era uma festa temática. Anos 90. Pra reunir a antiga turma. Já eram saudosistas, quem diria.
Pensou em não ir. Há uns dez anos perdera o contato com a maior parte do pessoal. Alguns, de amigos se tornaram estranhos. Mas a verdade é que o convite chegou num momento onde sair de casa era a melhor resposta.
A festa era no mesmo local de antes. Agora funcionava como doceria. O pessoal que organizou, a mesma turma de antes, alugou por uma noite. A decoração tentava reproduzir o clima de outrora.
A sensação me fez sentir estranho. Esbarrei em gente que agora parecia tão diferente. Alguns mais pesados, ficando carecas. Homens e mulheres dez anos mais vividos. Em alguns o tempo fez bem. Em outros, nem tanto.
E então, ela surgiu bem na minha frente. Do meio da semiescuridão. Um copo na mão. Sorriu.
Como explicar? Um dia eu dissera a ela ser o amor de minha vida. Não lembro se ela dissera o mesmo. Namoramos. Tivemos nossa montanha-russa de emoções. Casamos com outras pessoas, no entanto.
Parte da turma dançava. Outra fazia pequenos grupos. Havia quem se sentisse deslocado. Conversamos amenidades, tentando elevar a voz além do som do dj. O mesmo dos velhos tempos.
Descobrimos estar na mesma situação. Separados.
Rimos de algumas lembranças. Tentamos uma conexão. Tudo parecia estranho, no entanto.
Foi aí que “Sometimes”, do James, começou a tocar. Ela arregalou os olhos. Antes que abrisse a boca, eu disse não. Ela fez uma expressão de cachorrinho pedindo. Um truque antigo. Sempre funcionava.
Quando dei por mim, estava no meio do salão, imitando a coreografia do vocalista Tim Booth. Meus braços tornaram-se hélices de helicóptero, enquanto cantava cada vez mais alto o refrão ‘Sometimes, when I look deep in your eyes, I swear I can see your soul’.
Na manhã seguinte, todo o meu corpo doía e demorei a sair da cama.
– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.