texto por Gabriel Pinheiro
“É uma questão de dinheiro, tudo é questão de dinheiro. Se a gente tivesse dinheiro, não digo de sobra, mas se tivéssemos algum, nossa vida seria mais simples.”
Neste celebrado primeiro romance de Elena Medel, “As maravilhas” (2020), acompanhamos três gerações de mulheres espanholas. Na verdade, caminhamos – e, por vezes, marchamos – ao lado uma avó e uma neta: vemos a terceira, o elo que liga essas mulheres, sempre mediada pelo olhar e pela memória das duas. “As maravilhas” é um romance sobre relações: de sangue e familiares, de sororidade, de poder, de exploração no trabalho e de dinheiro. Esta última relação, que fundamenta um abismo entre classes, é alvo de uma profunda e sensível reflexão pela autora. O livro chega com tradução de Rubia Goldoni pela Todavia Livros.
“As maravilhas” têm início em 2018. Alicia “vasculha os bolsos e não encontra nada”. Esta frase, que abre o romance, é uma espécie de síntese da discussão que Elena Medel propõe ao longo da narrativa. Como o dinheiro é definidor das nossas relações sociais, o que ele possibilita e, sobretudo, o que a sua ausência impossibilita. A ausência do dinheiro é a causa de outras múltiplas ausências: de conforto, de tranquilidade, de educação, de afeto. A lista continua, talvez, infinitamente. “Por causa do dinheiro teve que sair de casa antes do tempo, recriar no filho de outra o cheiro de sua filha”.
Alicia é neta de Maria, a outra personagem que acompanhamos de maneira mais próxima na prosa de Medel. São duas mulheres que largam, em momentos distintos, a cidade onde vivem e o que as liga àquele espaço. Ambas seguem em direção à capital espanhola, Madri. Os motivos dos caminhos trilhados pelas duas personagens são múltiplos e estão entre a busca por algo e a fuga de algo. O que procuram e o que deixam para trás.
Ambas deixam para trás uma pessoa: Carmen, esta que é uma filha e é uma mãe. María busca em Madri uma oportunidade de trabalho, de fazer dinheiro. A parca renda acumulada na jornada de trabalho, além de dar conta de sua própria sobrevivência na capital, é enviada para a mãe e o irmão que cuidam de Carmen. “A Carmen não sabe quem eu sou e eu não consigo descrevê-la. Quando me perguntam como é o seu rosto, como são seus gestos, conto como é o retrato que tenho na mesinha de cabeceira. Minha filha não se mexe, não fala comigo, não sabe quem eu sou. Está presa na fotografia.”
Os reflexos de uma vida marcada pela ausência materna, marcam a própria relação que Carmen constrói futuramente, então, com a sua própria filha, Alicia. Após uma tragédia familiar e uma reviravolta financeira, Alicia deixa para trás sua mãe, na busca por reescrever sua história, rompendo os laços com o passado. “Alicia achava que Sevilha e Málaga ficavam muito perto, que a obrigariam a viajar para casa todo fim de semana. Escolheu Madri.”
O romance intercala capítulos entre passado e presente de María e Alicia, entre suas vidas em Córdoba e em Madri: de 1969 a 2018, de 1975 a 1984 ou de 1998 a 2015, por exemplo. Enquanto constrói a trajetória de cada mulher, a autora também faz um importante retrato do movimento feminista espanhol ao longo de cinco décadas. Medel expõe as condições trabalhistas e as relações de abuso e de poder, entre mulheres e homens – de chefes a maridos. Especialmente nos momentos em que acompanhamos María, vemos uma sensível construção da consciência política da personagem, a partir de leituras e do convívio com outras mulheres, que se reuniam para tratar de assuntos que pouco importavam aos seus companheiros, “divórcio, aborto, violência, não só física, mas verbal”. Elena Medel diz, também, do silenciamento imposto ao feminino: “Quando Pedro reproduz suas ideias – não as próprias, mas as que ela compartilha com ele – na roda de amigos e nota como são recebidas com respeito, María sente orgulho.”
Elena Medel constrói aqui um pungente romance sobre a emancipação feminina, apesar de todos os obstáculos impostos pelo mundo dos homens e pelo mundo do trabalho, ambos controlados por denominadores comuns: o poder e o dinheiro. “As maravilhas” se interessa por mulheres que “não se chamam pelo nome, e sim pelo apartamento onde limpam”. Mulheres que, muitas vezes, não conseguem integrar o movimento em defesa de seus direitos porque não podem perder um dia de salário. “Até para protestar é preciso ter dinheiro”.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.