texto por Renan Guerra
Uli Decker cresceu em uma cidadezinha bávara, no sudeste da Alemanha, em meio a uma família aparentemente comum. Após seu pai sofrer um acidente, sua mãe reúne Uli e sua irmã para contar um segredo familiar: o pai das garotas, durante toda a sua vida, gostou de vestir-se de mulher. Esse segredo colocado às claras leva Uli a uma série de questionamentos e resgates, uma vez que ela própria se sentia de algum modo distante do pai e dessa normalidade familiar. Essa jornada em torno desse segredo é o ponto de partida de “Anima – Os Vestidos do Meu Pai” (“Anima – My Father’s Dresses”, 2022), documentário em primeira pessoa que mescla entrevistas, técnicas de animação e outras linhas narrativas na hora de contar sua história.
Um segredo familiar guardado há tantos anos pode impactar de diferentes formas uma família, ainda mais quando envolve tópicos complexos, como moralidade, liberdade e sexualidade. Isso tudo poderia render um filme denso e até mesmo sisudo. Considerando então que esse é um documentário filmado em primeira pessoa, poderíamos talvez até pensar nas possibildiades de um trabalho daqueles que se assemelham a uma egotrip, em que o narrador-personagem se delega uma auto-importância demasiada. Uli Decker não faz nada disso em seu filme, pelo contrário, ela busca resgatar essas memórias e remontar esse quebra-cabeça famíliar a partir de um olhar extremamente bem-humorado e cheio de poesia e ternura.
O longa-metragem de Decker começa a partir da revelação do segredo do pai e seu falecimento, a partir daí, retornamos ao passado e somos levados a acompanhar todo o desenvolvimento da própria diretora em meio a essa família – uma família tipicamente alemã. Uli Decker era uma menina que gostava de vestir roupas masculinas, que usava fantasias de homens barbados e que se sentia solitária em suas diferenças. “Anima” acaba sendo uma espécie de investigação sobre essas semelhanças e diferenças que afastavam e, de certo modo, aproximam Uli Decker de seu pai. É um resgate amplo sobre como o silêncio cria barreiras que afetam as pessoas de diferentes formas e, no caso dessa família, acaba gerando afastamentos e incompreensão.
O filme é construído a partir dos relatos de Uli, da leitura de uma série de diários escritos pelo seu pai e por um compilado de fotos, vídeos e imagens da família. Não há registros imagéticos do pai em suas roupas femininas, então o que há é uma reconstrução desse passado a partir de suas próprias palavras, numa tentativa de demonstrar a liberdade que essas roupas traziam a esse homem. É curioso como ela faz isso com escolhas estéticas que são divertidas, leves e que nos levam a algum espaço lúdico. Por exemplo, todo o design de som do filme é pensado para criar ambiências: se vemos uma foto de um jantar na tela, ao fundo ouvimos talheres e tilintar de taças; se uma foto surge na tela com uma garrafa de refrigerante, ouvimos lá no fundo o barulho do borbulhar do gás. São detalhes pequeninos, mas que nos colocam dentro da trama de uma forma muito bela.
No final das contas, este não é um filme que fala de forma detalhada sobre travestilidade e transexualidade, porque o público não tem a total noção das definições que esse homem decidia sobre si mesmo – e o foco aqui é muito mais essa experiência familiar. O que se cria na verdade durante o filme é essa trajetória de alguém que queria existir além dessas barreiras binárias entre o feminino e o masculino e, talvez por isso mesmo, o filme seja tão delicado e terno ao respeitar essa complexidade desse homem de outro tempo, com desejos tão amplos e com medos tão arraigados.
“Anima – Os Vestidos do Meu Pai” é um documentário emocionante pela forma humana com que retrata os medos e as inseguranças de cada um de nós e funciona como um interessante retrato para nos atentarmos mais ao outro e a quem está próximo da gente.
Leia sobre outros filmes do Festival MixBrasil
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.