texto por Renan Guerra
A regra 34 é uma máxima cohecida em fóruns de internet que diz que para tudo que existe há algum tipo de pornografia, isto é, qualquer coisa pode ser transformada em pornografia na internet. Explicado isso, vamos ao filme: “Regra 34” (2022), de Julia Murat, acompanha a história de Simone, uma jovem advogada negra que pagou sua faculdade de Direito com o dinheiro que recebia através de apresentações sexuais on-line. Simone acabou de passar em um concurso para a defensoria pública e sua ambição é defender mulheres em casos de abuso. Paralelamente ao seu novo trabalho, Simone entra em uma jornada de conhecimento das práticas BDSM e é a partir daí que o filme ganha contornos mais complexos.
Premiado no Festival de Locarno, na Suíça, com o Leopardo de Ouro de melhor filme, “Regra 34” é protagonizado por Sol Miranda, que dá vida a Simone. Sol talvez seja a espinha dorsal do filme, pois é na atuação cativante e sedutora da atriz que somos levados para dentro dos debates e das discussões do roteiro. Simone uma vive espécie de vida dupla e isso se reflete na narrativa do filme: ora acompanhamos o dia a dia da personagem em seu curso de preparação para a defensoria pública e ora acompanhamos suas vivências como cam girl e suas experiências dentro do universo BDSM.
Tudo dentro de “Regra 34” parte desse olhar específico de Simone, suas perspectivas claramente têm recortes de gênero e de raça e isso é importante para delinear as discussões que a trama se propõe. Como corpos negros são lidos pela indústria pornô? Como tensionar seus desejos sexuais em um mundo racista? Como explorar seus desejos sexuais para além das politizações? São tópicos bastante complexos e o filme de Murat felizmente nunca pende para um olhar moralizante ou raso. Ao acompanharmos a jornada de Simone em suas investigações sexuais somos confrontados com as escolhas do outro e isso não é simples, talvez por isso mesmo “Regra 34” seja um filme bastante desconfortável para uma parcela do público, pois movimenta o olhar do espectador para entender o que motiva e o que move o outro.
Liberdade, raça e sexualidade se misturam na história e o BDSM é uma excelente força motriz para isso. Essa prática sexual é erroneamente associada à violência e a sistemas de opressão quase sempre por pessoas que simplesmente a desconhecem, pois, pelo contrário, o BDSM tem uma série de regras e traz como ponto principal a confiança e o consentimento entre os praticantes. E a própria Simone parece não querer entender isso tão bem durante o desenrolar do filme, o que rende as tensões e questões mais interessantes de “Regra 34”. Por outro lado, quando o filme foca nas aulas e nos debates da defensoria pública, o roteiro parece abrir arestas demais, tangenciando discussões que não acabam sendo tão bem desenvolvidas, mesmo que sejam tópicos interessantes e conectados com muitas das questões do filme.
Com roteiro escrito por Julia Murat, Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter, “Regra 34” se mostra mais vívido e interessante quando nos coloca mais próximo das explorações e das tensões de Simone. Sem regras e sem pré-determinações, o sexo no filme é visto como um vetor de complexidades e nada aqui é gratuito, mas sim serve a explorações e discussões mais complexas. Como fica o nosso prazer nesses tempos? Como explorar nossos desejos e pulsões de forma segura? Como se desvencilhar de certas construções sociais? Essas perguntas não são necessariamente respondidas pelo filme, mas sim exploradas, abrindo um leque de questões para o público.
Com trilha de Lucas Marcier e Maria Beraldo, “Regra 34” conta com canções inéditas de Beraldo, um bom uso de canções da nova MPB e uma cena belíssima ao som da versão do Teto Preto para “Já deu pra sentir”, de Itamar Assumpção. Além da já citada Sol Miranda, o filme ainda conta com as participações especiais de Babu Santanna, Simone Mazzer e da funkeira MC Carol e a presença dos atores Lucas Andrade, Lorena Comparato e Isabela Mariotto – esta última é um rosto reconhecível, pois é ela quem serve de corpo para o polêmico “A Vida de Tina” nas redes sociais.
Interessante, tenso e cheio de dubiedades, “Regra 34” é um filme que pulsa o nosso tempo e conversa com o agora de forma interessantíssima e, por isso, pode incomodar muita gente!
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.