Literatura: Apesar das dificuldades, HQ “O Tesouro” comprova grande fase dos quadrinhos independentes do Brasil

entrevista por Leonardo Tissot

A cena nacional de quadrinhos indies vive uma fase efervescente, com uma gama variada de escritores e artistas dedicados a uma produção constante e de qualidade — publicações como a revista “Japy — Heroísmo” (Coletivo Jund Comics), “Um Lugar do Caralho” (editora hipotética) e “Guitar City, Underground” (Editora Draco) são exemplos de iniciativas lançadas neste ano que tiveram cobertura do Scream & Yell.

“O Tesouro”, HQ que chegou ao público em outubro, criada pelo roteirista Mauricio Oliveira Dias (de “O Grande Xaram”) e pelos ilustradores Alex Genaro (de “Valkíria — A Fonte da Juventude”) e Pedro Okuyama (de “Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca”), é mais um belo exemplo da nova safra de lançamentos no país.

A história se passa em um subúrbio do Rio de Janeiro nos anos 1990. Logo nas primeiras páginas, dois irmãos adolescentes encontram uma grande quantia em um carro que dois ladrões em fuga acabaram de bater contra uma árvore. O que vemos nas páginas seguintes é o que acontece quando os dois resolvem se apossar do dinheiro — com grande foco no irmão mais velho, Carlos.

Para ser mais preciso, os acontecimentos de “O Tesouro” ocorrem em 1992, um ano difícil para os brasileiros, com início de processo de impeachment presidencial (e as consequentes renúncia e cassação de Fernando Collor), inflação galopante (beirando os 1.000% naquele ano) e o assassinato chocante da atriz Daniella Perez, entre outros acontecimentos.

“A história foi tirada de um roteiro para cinema que eu escrevi na época em que fazia faculdade, em meados dos anos 1990. Na época, se passava ‘no presente’”, esclarece o escritor Mauricio Oliveira Dias. Decorridos tantos anos desde o início do trabalho — e sua adaptação para os quadrinhos —, foi necessário manter o enredo naquela época, já que a existência de celulares hoje em dia inviabilizaria parte da trama.

Ainda assim, não dá para dizer que “O Tesouro” parece deslocado no tempo. A cidade do Rio de Janeiro segue, em grande parte, dominada pelo crime — talvez até mais do que nos anos 90, quando as milícias ainda não haviam avançado com tanta força na capital carioca. Além disso, a religião também tem um papel importante na HQ.

“Além da igreja católica, diferentes cultos evangélicos têm grande penetração nas camadas populares. Já era assim nos anos 1990”, argumenta Mauricio. “Muitas famílias que moram em locais onde há um poder paralelo optam por inserir seus filhos desde pequenos em um culto evangélico, para ingressar em uma sociedade de auxílio mútuo com regras claras, e também como forma de mantê-los longe da tentação de entrar nesse poder paralelo”, complementa.

Grande parte dos méritos da HQ — que tem um ritmo ágil e puxa o leitor para dentro da ação — vem da escolha dos artistas que ilustram a história. Mais do que um traço elegante, Alex Genaro demonstra toda sua habilidade narrativa com enquadramentos criativos e referências que contextualizam bem a época — os dizeres “Fora Collor” e os telefones públicos da Telerj são apenas dois exemplos.

Já Pedro Okuyama ajuda a dar o clima onírico necessário a um trecho em que Carlos aparece sonhando — inclusive com um easter egg para admiradores de uma popular série de quadrinhos recentemente adaptada pela Netflix. “Achei que valeria a pena que o sonho fosse desenhado por um ilustrador com um traço diferente do resto da HQ. Encontrei o Pedro, um artista jovem de São Paulo com grande potencial”, destaca Mauricio.

Ao final das 40 páginas do gibi, fica a pergunta: será que a história de Carlos acabou por aqui? “Há espaço para muitos desdobramentos. A questão é haver um interesse de público que justifique a produção de novas HQs com este universo”, pondera o escritor. Outro ponto importante é a viabilidade financeira do projeto, já que o investimento de tempo e talento dos artistas envolvidos precisa ser remunerado, uma dificuldade ainda grande no mercado de quadrinhos independentes no Brasil.

“Mesmo com todo o amor que nós temos por quadrinhos, um profissional desta qualidade tem que ser pago. Não temos patrocínio, há uma grande oferta de títulos estrangeiros, quadrinhos online, então a questão econômica da produção de uma HQ independente é muito delicada. Em São Paulo há o PROAC, um prêmio estadual de fomento à produção de quadrinhos. No resto do país, a realidade é muito dura”, lamenta Mauricio.

“O Tesouro” está disponível para venda na Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Submarino e outras lojas do ramo. Para quem quiser sentir um gostinho antes, as 10 primeiras páginas da HQ estão disponíveis gratuitamente neste link.

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo

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