texto por Bruno Lisboa
fotos de Flávio Charchar
Historicamente a arte sempre foi usada como instrumento de contestação de duras realidades e, na mesma medida, como meio de sobrevivência e luta diária. Musicalmente falando o rock foi, durante décadas, o mais popular canal utilizado pela classe artística para seduzir as massas e trazer a tona debates sobre questões de suma importância para a sociedade.
Porém, de uns tempos para cá, o gênero tem perdido fôlego, deixando de ser, gradualmente, o meio de expressão que traz os questionamentos necessários para a sociedade, servindo como forma de mobilização. Mas por que isso aconteceu? Em primeiro lugar, é preciso dizer que gênero envelheceu mal, pois deixou de se aproximar dos interesses da juventude. Outro ponto de ruptura se deu no campo ideológico já que o gênero se tornou campo fértil para o reacionarismo.
“O rock errou” (como diz a canção de Lobão) e se acovardou, mas como contraponto o rap soube, desde a sua gênese, estar atento a pautas identitárias e aos interesses das minorias, colocando a frente assuntos que para muitos são ardilosos e evitáveis. Para além da coragem de se posicionar e deixar demarcado de que lado estão, o rap hoje cumpre o fundamental papel de dialogar com o público jovem. E tais fatos puderam ser vislumbrados na Autêntica.
Em noite de casa cheia, o espaço recebeu as apresentações de Iza Sabino, Paige e Don L. A abertura ficou a cargo da nova geração local a qual ambas representam tão bem. Por mais que elas tenham propostas musicais distintas, no palco elas se encontram e geram uma potente relação. Singles como “Criminal”, o hit “Cara, hoje é meu aniversário” (de Paige que versa sobre autoafirmação), o hino antissistema “Vale Grana” (de Iza, Smu, FBC e Djonga, presente no disco coletivo “Best Duo”) e “Você Nunca Saberá” (do EP “Trono de Vidro”) são amostras de como a cena de BH vai bem e merece ser vista ainda mais de perto.
Entre os shows coube a DJ D.A.N.V. e ao rapper local Matéria Prima a árdua missão de manter o público atento. E conseguiram com louvor. O segundo, inclusive, atuou como um autêntico mestre de cerimônias improvisando rimas e contando histórias de sua caminhada no hip hop.
Vivendo grande fase na carreira, Don L retornou a BH três meses após a apresentação realizada no festival Sensacional. Contando com um público devoto a sua disposição (que cantaria em uníssono por toda a noite), Don L presentou os fãs com uma apresentação memorável.
O setlist foi centrado no disco vencedor do APCA de 2021 (“Roteiro para Aïnouz Vol. 2”) trabalho em que, entre beats e rimas, Don L promove o encontro entre a tradição e a modernidade e um discurso potente em prol da justiça social e do poder popular. Acertadamente, ele também selecionou faixas de seus trabalhos anteriores que agradaram em cheio a velha guarda de fãs.
Escudado pelos MCs Alt Niss, Terra Preta e DJ Roger, que ocupam papel de protagonismo na apresentação, o rapper nordestino consegue reproduzir e potencializar ao vivo toda a energia presente em seu trabalho mais recente. Prova disso foi a entrega do público que protagonizou momentos de catarse coletiva através das inúmeras rodas de mosh executadas em diversos momentos da apresentação, como em “Auri Sacra Fames” e “Favela Venceu”.
Para além do repertório com alto teor político, a noite foi marcada pela presença de diversos representantes de organizações político/sociais como os partidos Unidade Popular e PCB (Partido Comunista Brasileiro) como também a UJS (União da Juventude Socialista) que, ao terem suas bandeiras bradadas no palco, foram ovacionados.
Os esperados coros pró-Lula e ao mineiro Léo Péricles (candidato à presidência pela já citada Unidade Popular) deram o tom, demarcando, obviamente, qual o espectro político predominaria na noite.
A sequência final matadora iniciada por “Volta da Vitória” (que cita “us mano e as mina” de Xis), “Aquela Fé”, “Primavera”, “Kelefeeling” e “Morra Bem, Viva Rápido”, que viria no bis, colocaram o ponto final de uma noite onde o rap mostrou sua força nos aspectos político / socais, acedendo novamente a esperança de novos tempos que virão, mas permeado por muitas lutas a serem travadas. E que assim o seja até a vitória.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.