texto por Leonardo Tissot
fotos de Fabio Shiraga
“Esse som é de 1980… De lá pra cá, o Brasil encaretou, né?”, provoca Arrigo Barnabé, lá pela metade de seu show ao lado da banda Sabor de Veneno, no último dia 14 de outubro. Foi mais que o suficiente para o público presente ao Sesc Campinas, já hipnotizado pelas canções do disco “Clara Crocodilo” (1980), homenageado da noite, transformasse a celebração de um dos álbuns brasileiros mais emblemáticos dos últimos 50 anos em (mais) um ato de resistência à necropolítica de Jair Bolsonaro.
“O Sesc é fundamental e esperamos que continue sendo”, emenda o músico, o que dá a senha para que os cânticos de “Fora Bolsonaro” e “Olê olê olê olá, Lula, Lula” dominassem o ambiente — que reuniu, em noite de ingressos esgotados, fãs das antigas e gente que nem era nascida quando o disco foi lançado.
Mas deixemos a política de lado por um instante. Não bastasse estarem do lado certo da história, os 13 (ops!) músicos da banda — que ainda inclui Vânia Bastos, Ana Amélia (substituindo Tetê Espíndola, vocalista original do disco), Suzana Salles, Paulo Barnabé, Bozzo Barretti, Paulo Braga, Mário Manga, Ronei Stella, Xico Guedes, Cláudio Faria e Mané Silveira — fizeram o que deles mais se esperava: esbanjaram todo seu talento e virtuosismo nas clássicas faixas de “Clara Crocodilo”.
O disco, você sabe, é uma espécie de ópera-rock (embora tenha elementos de música clássica, jazz e outros estilos) lançada há 42 anos, que mistura música atonal e dissonâncias com letras sobre as neuroses contemporâneas e tem forte inspiração nas histórias em quadrinhos. A obra é conhecida por integrar o movimento que ficou conhecido como “vanguarda paulista”.
Com arranjos muito próximos aos da gravação em estúdio, o time reunido por Barnabé na apresentação destila uma categoria absurda em teclados, piano acústico, metais (um quarteto espetacular), baixo, guitarra, bateria (a cargo de Paulo, irmão de Arrigo) e o trio feminino de vocalistas que, assim como no LP, assume a linha de frente e conduz a história ao longo do show.
Embora algumas letras soem um tanto anacrônicas em 2022 — coisas como fliperamas, telefones públicos e balcões de bar de fórmica vermelha ficaram essencialmente no passado —, as canções de “Clara Crocodilo” ainda impressionam pela técnica apurada de todos os músicos da banda Sabor de Veneno (muitos dos que estavam no palco também tocaram no disco), pela imaginação e criatividade pulsantes de Barnabé quando as escreveu e pelo vigor com que são apresentadas ao vivo.
Mais do que tocar teclado e cantar, Arrigo caminha pelo palco, rege a banda, provoca a plateia, ajoelha-se e se levanta novamente como se ainda fosse o jovem de 20 e poucos anos que esculpiu aquelas canções, e não como o homem de 71 anos que continua tendo que explicar por que votar em um candidato de tendências fascistoides não é uma boa ideia…
Lá pelas tantas, chama a plateia — até então sentada comportadamente nas arquibancadas do Galpão Multiuso do Sesc Campinas — para que se aproxime da banda. E, de repente, é 1980 de novo.
No bis, com o povo pertinho e cantando junto, a banda repete as irresistíveis “Acapulco Drive-In” e “Diversões Eletrônicas” — mas agora, com o clima de celebração devidamente estabelecido, tudo faz mais sentido. E nem parece que mais de quatro décadas se passaram. “40 anos… deu pro gasto, né?”, brinca Arrigo, com a irreverência habitual. Ô, se deu.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo