entrevista por Bruno Lisboa
Cantor, guitarrista, jornalista e compositor, o paulistano Raphael Thebas tem seu nome associado ao grupo Kanduras. A banda, formada em 2016, tem em sua discografia dois álbuns de estúdio (“Caminhar”, de 2016 e “Dístico”, de 2020) e uma série de singles lançados ao longo de seis anos de carreira. Porém, foi durante a pandemia que o primeiro registro solo de Thebas começou a tomar forma quando ele começou a escrever novo material a partir de ideias que há algum tempo estavam na gaveta.
Influenciado tanto pela MPB dos anos 70 quanto pelo indie rock, em “Bonança” (2022), seu debute solo, Thebas exalta a beleza do cotidiano mesmo estando em meio ao caos. “O álbum foi escrito neste processo de travessia da pandemia, tem aflição e calma. Por isso o título. O disco foi feito com equipamentos antigos no estúdio do Gabriel (Martini, produtor e multi-instrumentista que trabalha com Guilherme Arantes), com arranjos misturados em influências clássicas da nossa MPB e com loucuras do indie, do rock e até do jazz”, adianta Raphael.
Produzido por Thebas e Gabriel Martini, em “Bonança” o artista conta com uma série de participações especiais como Thais de Souza, Júnior Breed e o colega de Kanduras André Bedurê, que já acompanhou Zeca Baleiro e Luiz Melodia. Em entrevista concedida por e-mail, o músico fala sobre a sua formação musical, o processo de composição e gravação do novo disco, suas intenções para com o público a partir do novo disco e muito mais.
Em “Bonança” você expõe um pouco da sua versatilidade sonora, indo ao encontro tanto do indie quanto da MPB clássica. E pensando nisso gostaria de saber como se deu a sua formação musical e em que momento você percebeu que se tornar um musicista se tornaria algo tangível?
Primeiro quero agradecer pelo espaço aqui no Scream & Yell, um espaço que acompanho e leio há bastante tempo. “Bonança” apresenta mesmo essa diversificação, mas foi algo natural do processo de gravação e produção. Essas mudanças representam um pouco o processo de travessia sobre o qual o disco fala, com sossego, com intensidade, aflição. Coisas que muitas vezes eu vivi. Isso se refletiu não apenas nos arranjos e letras, mas também no modo de produção que desenvolvi com o Gabriel Martini, amigo e produtor do álbum. Sobre a formação, eu sempre tive contato com música, meu pai, Cláudio Thebas, é escritor, palhaço e músico. Minha mãe, Rafaela, é professora e sempre cantarolou muito quando eu era criança. Acho que a música veio inicialmente daí, desde cedo. Minha formação musical é a vontade de aprender os instrumentos. Nunca fiz aula de violão, guitarra, fui aprendendo na medida em que eu ia errando e brincando. Me considero alguém bastante empirista, acredito que nosso aprendizado se dá em grande medida através da prática, do erro. E nesse sentido, é no erro que mora o êxito. Foi assim que comecei a tocar violão. Depois, já mais velho, com a Kanduras (minha banda), comecei a efetivamente estudar a parte mais teórica, que também é muito importante. Não houve um momento em que pensei: pronto, agora serei músico. O processo foi totalmente gradual e natural, quando vi, estava gravando, compondo, tocando, fazendo show, etc.
“Bonança”, seu primeiro disco solo, é um trabalho imersivo, rico em camadas e sonoridades. Como se deu o processo de composição e gravação do disco? Quais as diferenças mais significativas que você citaria ao comparar os formatos banda e solo?
O processo de gravação de “Bonança” foi feito na maior calma possível. Ao final do ano passado, percebi que eu estava com uma quantidade relativamente grande de anotações e principalmente melodias feitas no violão de nylon e aço. Muita coisa que fiz ao longo desses dois anos de pandemia, quando estava impossível fazer shows com a Kanduras. Foi então que durante uma conversa por telefone, o Gabriel Martini me convenceu a iniciar a captação dessas músicas no estúdio que ele tem na casa dele. Foi a primeira vez que eu tive uma ação mais direta na produção musical e fiz da maneira como eu achei interessante fazer, sem amarras e ignorando possíveis ideias pré-concebidas de mercado. Fizemos aos poucos, resolvi gravar instrumento por instrumento, pensamos os arranjos durante vários meses e fomos dando cor ao que queríamos de acordo com nossa vontade. É um disco de muito respiro em alguns momentos e de agitação em outros. A parte alta é realmente alta, enquanto a baixa é realmente baixa, não é um trabalho em que existiu compressão de áudio em excesso, como é quase uma regra atualmente. Fizemos ao nosso gosto. O álbum tem muitas camadas de arranjo, tem violino, tem saxofone, tem violão de nylon antigo. Sei que não é um som pra todo mundo e tudo bem. Aproveitei a sorte da qualidade do Gabriel como produtor e do home estúdio de incrível bom gosto que ele tem, com equipamentos de época (década de 70 e 80) que dão um tom de bonança, de saudade, de travessia que eu estava sentindo quando fiz as músicas. Hoje em dia, com o avanço tecnológico, pode-se simular qualquer instrumento através de feitos nos computadores e é possível chegar a resultados impressionantes com os tais plugins. Mas em “Bonança”, a guitarra é realmente guitarra, e não uma imitação de guitarra; o violino é violino de fato, feito pela Thais, e não uma simulação de violino feito por algum plugin; os violões de nylon e aço são todos de verdade; os teclados, pianos, também são quase todos reais. Isso faz uma diferença enorme. Eu e Gabriel brincamos durante as gravações: não é um disco de suco de polpa, é um disco de suco de fruta, que é sempre mais gostoso, apesar de muita gente não perceber (risos). “Bonança” foi feito sem pensamento na consequência, foi feito como eu achava que deveria ser feito.
E partir dessa guinada sonora quais são as intenções que você alimenta alcançar a partir de “Bonança”?
Eu fiz esse disco ignorando alguns modelos, fiz da maneira como eu me identifico do ponto de vista artístico e estético. Sei que há comercialmente um preço a ser pago, mas não me arrependo, estou orgulhoso do que eu, Gabriel e os amigos músicos fizemos em “Bonança”. Tem muita gente que gosto muito e que admiro no atual cenário da música e acho importante pontuar que o consumo de informação se modificou completamente nos últimos anos. Isso vale pra música, mas é o mesmo raciocínio pra qualquer outro tipo de arte ou até para o jornalismo. Está tudo segmentado. O jeito de ouvir é todo segmentado. O que era pra trazer mais diversidade na verdade trouxe apenas uma reestruturação dos espaços geográficos do cenário da música. Quem tem dinheiro continua mandando no que as pessoas ouvirão. Os algoritmos são moldados de acordo com anúncios pagos e por aí vai. Do ponto de vista estético, é tudo muito parecido. Muitos discos são gravados nos mesmos estúdios, com os mesmos produtores e com já uma intenção de mercado pré-concebida para o lançamento. Por isso que as playlists oficiais que delimitam cada estilo são tão iguais. A chamada ” Nova MPB” é um exemplo excelente do que estou dizendo. Ali nas playlists oficiais tem muita gente que adoro, que amo, que admiro, mas do ponto de vista da estética é tudo muito igual: violão de aço, mundo fofo, som comprimido e feito sob medida pra agradar a todos. Mais ou menos como em propaganda de margarina. A música hoje, como qualquer outro meio, é consumida por segmentação. Então, claro, quero que “Bonança” seja escutado por muita gente, mas resolvi intencionalmente fazer diferente do que é mais usual. Se uma pessoa me disser: “Thebas, eu amei essa música”, pronto, meu objetivo estará cumprido. Tenho consciência de que mercado é uma coisa, arte é outra. E as minorias são cada vez mais numerosas.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Yasmin Kalaf / Divulgação