texto por João Paulo Barreto
Durante a semana que precedeu a estreia no Brasil de “A Mulher Rei” (“The Woman King”, 2022), novo filme de Gina Prince-Bythewood (do tocante “A Vida Secreta das Abelhas”, 2008), alguns comentários na terra quase sem lei chamada internet tentavam menosprezar a importância da obra, muitos deles criando a falsa ideia de que seria improvável que, nos vigilantes tempos atuais, alguém ousasse falar mal de um filme estrelado por um elenco majoritariamente formado por mulheres, sendo todas elas negras, tendo Viola Davis como protagonista, e abordando a luta pela posição feminina na sociedade patriarcal na, explorada pelo tráfico de escravos, África do século XVII.
A leitura desses comentários antes da sessão poderia levar a uma ideia pré-estabelecida seguindo essa presunção absurda de que uma obra de arte não pode ser julgada pelos seus méritos e defeitos nos anos em que o a “cultura do cancelamento” se tornou o novo fator de ameaça a reputações. Felizmente, “A Mulher Rei” é um filme que fica acima desse tipo de ameaça frívola. O documento histórico que esse trabalho representa vai além disso. Trata-se, precisamente, de um marco para o cinema e delineia o norte que ele precisa seguir em termos tanto de oportunidades quanto de foco na real História que necessita estar distante de negacionistas que tentam reescrevê-la à sua conveniência.
Dito isso, o adentrar no longa que representa o papel da vida de Davis nos traz uma constatação de que é possível unir a um drama histórico com reflexões reais que reverberam nos dias atuais, sequências de violência gráfica em lutas coreografadas de modo preciso, além de uma estrutura de roteiro que abrange bem o desenvolvimento de seus personagens centrais, criando empatia, mas trazendo uma análise crítica de suas atitudes. Na história, a general Nanisca (Davis), líder da unidade Agojie, formada por guerreiras que protegiam o reino africano de Dahomey, tem sua autoridade e equilíbrio como líder questionados por si mesma quando seu exército inicia uma nova leva de treinamentos de promissoras guerreiras, dentre elas, Nawi (Thuso Mbedu), jovem que se recusa a aceitar preceitos machistas em sua família e é entregue pelo pai às Forças Reais. Em paralelo, em risco de ver o reino que protege se ameaçado por guerreiros rivais, Nanisca mantém a ofensiva de sua unidade. Porém, o reconhecimento de um passado de brutalidade volta para assombrá-la.
Como retrato histórico, “A Mulher Rei” não esconde o fato de que o próprio reino de Daomé era conivente com o tráfico de escravos, uma vez que o filme traz momentos nos quais vemos a general, em reunião com o Rei Ghezo (John Boyega, vivendo um personagem que nos faz lembrar da cultura patriarcal ainda evidente ali), citar que eles mesmos venderam prisioneiros como escravos. A discussão da obra segue por esse reconhecimento do erro, mantendo para seu desfecho a previsível, mas não menos emocionante, constatação da necessidade de mudança. Mas é culturalmente em seu foco voltado para aspectos da raiz africana de seu povo que os pequenos detalhes da história escrita pela atriz Maria Bello (de “Marcas da Violência”, 2005, jovem clássico de Cronenberg) e Dana Stevens (roteirista de “Cidade dos Anjos”, 1997) saltam aos olhos do espectador, como quando vemos citados termos como Ogun e Ifá, conhecidos na religião de matriz africana e que se relacionam ao deus protetor daqueles que vão à guerra e ao oráculo divinatório, respectivamente.
“A primeira vez que eu ouvi falar das Agojie foi quando eu comecei a estudar o filme, na verdade. Eu sempre ouvi falar sobre as amazonas. Mas esse é um nome vindo de colonizadores. Eu sabia sobre elas, mas bem vagamente”, explicou Viola Davis, que esteve no Brasil para divulgar o filme ao lado do seu marido, Julius Tennon, com quem produziu a obra. “Eu venho tentando com tanta vontade e de forma tão consciente não usar a palavra ‘amazonas’, mas dar a elas seu nome real, que é Agojie. E só houve um único livro que encontramos e que as citam, que é ‘The Amazons of Black Sparta’ (escrito pelo historiador Stanley Bernard Alpern), que se tornou nosso livro de referência em pesquisa”, relembra a atriz ao constatar o modo como a história por parte do colonizador sobrepõe de maneira agressiva a do colonizado.
“A Mulher Rei”, do mesmo modo como fez o fenômeno “Pantera Negra” (2018) há quatro anos, ao dar protagonismo a um elenco majoritariamente formado por atores e atrizes afrodescendentes, se torna uma obra que crava sua importância dentro do entretenimento, principalmente se levarmos em consideração o sucesso de público que a primeira semana em cartaz demonstrou – o filme custou US$ 50 milhões e faturou até agora US$ 38 milhões, tendo estreado no topo do ranking nos EUA no fim de semana de seu lançamento (de 16 a 18 de setembro). Em aspectos críticos do filme, essa informação voltada à bilheteria se torna desnecessária a esse texto. No entanto, levando-se em consideração o que foi pontuado em sua abertura, é importante que esse fato seja trazido aqui. Principalmente pela questão de que, como entretenimento e aspectos técnicos, o filme dirigido por Gina Prince-Bythewood é de um impacto visual impressionante, mesmo possuindo uma estrutura narrativa tradicional e conhecida. E ao fazer-se valer da voz feminina contra aspectos como negligência afetiva e cultura do estupro, pontos trazidos de modo pungente em seu roteiro, sua força se faz ainda maior.
No aspecto de importância da obra para as atrizes negras que a protagonizam, Davis traz opinião bem contundente sobre o papel do filme nessa luta que visa dar oportunidades iguais a atrizes em Hollywood. “Elas têm uma chance de serem vistas de uma maneira que não nos víamos antes. Não temos presença alguma em alguns dos maiores filmes. Não estou apenas falando sobre ser vista nas telas, estou falando sobre serem vistas na vida. Há muitas ocasiões que o nosso poder não é visto. Nossa beleza não é vista. Nossas complexidades não são vistas. Eu acho que essa é uma das razões por que você tem tantas questões que afetam mulheres negras. Porque não somos vistas de modo valoroso. Com as Agojie, elas se vêm de modo valoroso. E esperançosamente, de certa maneira, esse filme vai levar mulheres negras a encontrar aquele espírito guerreiro que elas têm dentro de si. “, acredita Viola Davis.
No que se refere à citada questão financeira de seu retorno como produção cinematográfica, Viola Davis salienta que “A Mulher Rei” pontua: “É muito importante para mulheres negras verem que elas podem liderar as bilheterias mundiais. Que não se faz necessário existir uma presença masculina. Que nem mesmo se faz necessário existir uma presença branca. São apenas elas mesmas. Elas são as únicas. Elas são o foco”, finaliza a atriz. Como cinéfilo, testemunhar esses ventos da mudança de uma indústria notoriamente racista é muito recompensador.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.