textos por Gabriel Pinheiro
“A história invisível”, de Sofia Nestrovski (Fósforo Editora)
Em seu aniversário de sete anos, a pequena Sofia, no soprar das velas, fez um desejo. Tornar-se invisível. Pedido feito, pedido realizado. “Finalmente ela estava invisível e órfã e livre, como todas as crianças do mundo sempre quiseram ser”. “A história invisível” (2022), lançamento da Fósforo Editora, é a estreia de Sofia Nestrovski na ficção. Sofia – ou bisnaguinha ou papoula e ginkgo-biloba ou outro nome que seja bom de falar, ela se apresenta – acorda invisível no mundo visível que habitava até então. O mundo da rotina familiar, o mundo escolar. A escola que a ensinava a “deitar as horas uma em cima da outra e só, um enorme sanduíche de tempo desperdiçado”. Mas, invisível, não é neste mundo onde vivera até então que a pequena quer permanecer. Ela não deseja andar imperceptível entre as demais pessoas. A invisibilidade é a chave para que ela acesse um novo lugar, uma realidade que existe concomitante à nossa, mesmo que não lhe demos a devida atenção. “Agora que Sofia era invisível, era também em parte secreta, como são as aventuras e a vida íntima dos animais que vivem numa casa de humanos”. Misto de fábula e narrativa de aventura, “A história invisível” remete ao clássico “Alice nos país das maravilhas”, em sua protagonista curiosa e corajosa, que parte numa aventura onde até os seres e coisas mais banais ganham características fantásticas. “Arrume uma mochila e saia de casa para sempre, não precisa contar para ninguém. Órfã e livre, agora você é uma de nós”. Um mundo onde pássaros e sapos contam histórias profundas para a menina, sobre, por exemplo, a história das coisas, em um tempo em que nada ainda existia no mundo e tudo deveria ser reinventado a cada novo dia. “As coisas surgiam e desapareciam, para serem inventadas de novo, com outras formas no dia seguinte. Tudo era ainda sem borda nem recheio”. “A história invisível” é uma fábula para todos. Na escrita sensivelmente poética de Sofia Nestrovski, embarcamos numa aventura tanto para os pequenos, quanto para os grandes. Mas, especialmente, para os grandes. Bisnaguinha nos pega pelas mãos e nos leva de volta àquele mundo que a vida adulta insiste em não mais nos deixar acessar. Um mundo enxergado e criado pelo olhar curioso da infância.
“Baldomero”, de Leandro Rafael Perez (Fósforo Editora)
Baldomero é um personagem em desencontro. A começar pelo próprio nome, que vinha da rua onde nasceu e viveu por vinte anos, Baldomero Fernandez. A mãe achara o nome bonito, singular. Singular até que é: difícil encontrar um par no meio da multidão. Mas ele queria mesmo era se chamar Valdomiro em sua certidão. Mais fácil, mais familiar. Aliás, alguns já o chamavam pelo diminutivo Val. Até que um dia, um novo apelido surge repentinamente da boca de um parceiro, durante o sexo, “entre berro e sussurro, no intervalo das mamadas”, Babá. Inflamado pelo desejo por trás dessas duas sílabas simples e repetidas, Baldomero desejará que outros o chamem por este nome. Ele é o protagonista do primeiro romance de Leandro Rafael Perez, “Baldomero (ou Babá, para os íntimos, inexistentes)”, lançado pela Fósforo Editora. “Baldomero” é um livro debochado e desbocado. Do palavrão ao pajubá. Ironia pura. Seu narrador, colado rente à pele do protagonista, acompanha das peripécias sexuais do personagem às suas dificuldades financeiras para se manter numa cidade grande. Na corda bamba entre os desejos e as obrigações, seu inusitado protagonista busca encontrar o equilibro. Escrito com mão leve, tem ritmo e cadência. Daqueles livros para ler numa sentada. “Decidiu agir nosso protagonista, se preservar, juntar o útil ao agradável, pois. Sossegar o facho, dar um descanso à glande esfolada de tanta putaria e arranjar um namoradinho”. Situada num passado indeterminado, sua narrativa traz, ainda, a nostalgia dos scraps do Orkut e da época em que o GPS era feito a mão, desenhando um mapa no papel. Se há momentos em que Leandro nos fisga pelas gargalhadas, o romance caminha de forma muito natural entre o riso e a melancolia. “O peso de morar na zona sul, trabalhar no centro e estudar na zona oeste”, a dificuldade para conciliar o estressante trabalho num call center com o curso universitário e a parca renda para manter um aluguel dividido com uma colega. Leandro ainda olha com muita sensibilidade para a construção social de Babá, da infância até o beco sem saída onde ele parece se encontrar no presente. A ausência paterna quando criança, o entender-se como homem gay e a busca incessante por afeto. “Ainda está para nascer neste mundo quem se autoproclame viado sem ter sido xingado disso antes. Mais pra dentro do século 21, Baldomero sentirá carinho e tristeza frente aos memes de criança viada”. Intenso e frenético, “Baldomero” é um mergulho num personagem em intensa desconstrução e reconstrução. Escrito numa prosa ágil, cabe uma miríade de temas neste breve romance de estreia de Leandro Rafael Perez, uma tragicomédia que arranca lágrimas, ora de riso, ora de tristeza.
“Segunda casa”, de Rachel Cusk (Todavia Livros)
M é uma mulher de meia-idade casada com Tony. Juntos habitam uma casa às margens de um pântano. Escritora e com uma relação próxima ao universo artístico, aquele não é exatamente o espaço onde a mulher um dia se viu: uma vida em isolamento, no contato profundo com a natureza. Num acordo com o marido, eles constroem uma segunda casa na propriedade. Nela, M passa, então, a receber ali artistas para residências temporárias. “Eu precisava de certo grau de relação, ainda que pouca, com os conceitos de arte e com as pessoas que acatam esses conceitos”. “Segunda casa” (2021) é o novo romance de Rachel Cusk, autora inglesa da celebrada trilogia “Esboço”. Com tradução de Mariana Delfini, o livro é lançado pela Todavia Livros. O texto de “Segunda casa” é endereçado a um homem chamado Jeffers. Não temos contato com sua voz narrativa, apenas com a de M. É como se nos colocássemos, como leitores, no papel deste misterioso interlocutor. A conversa tem como assunto principal uma pessoa específica, o artista plástico L, que, em um tempo indeterminado, habitou esta segunda casa por um breve período. Aliás, a indeterminação do tempo é uma marca do texto. Não sabemos muito bem em quando as ações narradas por M aconteceram e em qual momento ela as descreve para Jeffers. A escritora conhece L, primeiramente, por sua obra. Num contato repentino e arrebatador com o trabalho do pintor em Paris no passado, a mulher sofre uma espécie de rompimento consigo mesma, com suas certezas e crenças. “Conheci sua obra quinze anos atrás, quando ela me tirou da rua e me colocou no caminho para outro entendimento da vida”. Muitos anos depois, ela convida L para visitar e habitar sua segunda casa. “Recebemos, um após o outro, uma boa quantidade de hóspedes aqui, que vêm realizar seus próprios tipos de trabalhos. (…) As pessoas dizem muitas vezes que este é um dos últimos lugares”. De comportamento difícil, por vezes, irascível, o contato com L, expõe fraturas latentes na superfície da vida da protagonista. M se vê em queda-livre numa espiral de obsessão por aquele homem que ela quer tanto atingir quanto, sobretudo, por quem quer ser atingida. Ela encara um precipício na tortuosa relação que desenvolve com ele, amarga e dolorosa, marcada ora pelo silêncio, ora pela violência do discurso. “A questão, Jeffers, é que parte de mim queria ser destruída, ainda que eu temesse que toda uma realidade fosse colapsar junto, a realidade compartilha com outras pessoas e coisas”. “Segunda casa” é uma reflexão poderosa sobre a força destrutiva da arte e suas estreitas relações com o mal. O romance dá, ainda, mais um passo no processo de pesquisa e escrita da autora acerca de temas como a maternidade, o casamento, os papéis sociais impostos ao feminino e a liberdade inerente reservada ao masculino em sua literatura.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.