texto por Dri Cruxen
Quatro anos se passaram desde que Chico Buarque excursionou pelo Brasil com a turnê “Caravanas”. Foram anos de horror e retrocesso, como o próprio lembrou em trecho de “Que Tal Um Samba?”, sua composição mais recente: “Depois de tanta derrota, depois de tanta demência e uma dor filha da puta”(…) lançada em junho deste ano. A canção é sua 373ª obra musicada e dá nome a essa nova turnê.
O Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa, local escolhido para a estreia, esteve praticamente lotado na véspera do feriado de 7 de setembro. Quase 3000 pessoas ovacionaram Mônica Salmaso, Chico e sua experiente banda formada pelo maestro Luiz Claudio Ramos (arranjos, guitarra e violão), Bia Paes Leme (teclados e vocais), João Rebouças (piano), Chico Batera (percussão), Jurim Moreira (bateria), Jorge Helder (contrabaixo) e Marcelo Bernardes (sopros). Em duas horas de espetáculo foram executadas 33 músicas da vasta discografia dos 58 anos da exitosa carreira de Chico Buarque de Hollanda.
O protagonismo da noite foi a voz meso-soprano da cantora paulistana Mônica Salmaso, também conhecida por suas interpretações de tirar o fôlego das canções de Chico. Em 2006 ela já havia lançado “Noites De Gala, Samba Na Rua”, disco dedicado à obra dele. A cantora abriu o show com “Todos Juntos”, da peça infantil “Os Saltimbancos”, música que deu tom alegre e esperançoso para todo o espetáculo, intuindo que dias melhores virão. “Todos juntos somos fortes, não há nada pra temer”. Com “Passaredo”, fez alusão à Lula: “O homem vem aí”.
Ao contrário do que muitos concluíram precipitadamente, Salmaso não foi apenas cantora de abertura. Ela participou da apresentação por completo. No início, como solista, e após, intercalando duetos com Buarque. Fez até backing vocal na minha preferida, “O Meu Guri”. A interpretação mais emocionante, porém, veio com “Beatriz”, e levou às lágrimas a moça que estava sentada ao meu lado e metade da fileira da frente. Em “Paratodos”, a sexta canção do set, Chico deu o ar da graça, entrou no palco e os dois cantaram juntos pela primeira vez na noite, fazendo a plateia vibrar.
Com a sutileza de sua guitarra dedilhada e fala humilde, Chico brincou que era difícil acompanhar músicos tão competentes, enaltecendo sua banda e Salmaso. Falou que as vezes erra, mas não coloca teleprompter com as letras nos shows porque tem gente assumindo autoria das suas composições na internet. “Tô acostumado, me chamam de mortadela, esquerda caviar, mamífero das tetas do governo, podem me chamar até de tchutchuca*, eu não me importo mais, mas comprador de música? Aí não”, disse rindo e arrancando gargalhadas do público. *Entendedores entenderão
A cada música do cancioneiro, o cenário belíssimo do show (assinado por Daniela Thomas com iluminação de Maneco Quinderé) se imiscuía aos temas musicados, projeções com fotos de pessoas pretas, sertanejos, famílias sem-teto, figuras femininas, cores quentes, ares bucólicos e praianos.
À la “um banquinho, um violão”, Chico canta à meia-luz, sem esforço, passeando pelo set list escolhido. A gente nem sente a hora passar. Hinos atemporais como “Futuros Amantes”, “Sabiá”, “Samba do Grande Amor” e “Deus Lhe Pague” são acompanhados pelos fãs, cantados baixinho, para não abafar a voz do protagonista. Com obra que tem olhar poético para questões político-sociais e temas cotidianos de amor, Chico consegue ser lírico sem soar piegas a cada música tocada.
Às vésperas das eleições mais importantes dos últimos 30 anos, há quem esperasse um repertório mais politizado, vindo do amigo de longa data do presidente Luiz Inácio. Automaticamente lembrei de “Cálice”, ao tentar decifrar qual era o líquido presente na taça da bebida do cantor, que não era vinho tinto e nem água. Uma fã chegou a gritar o nome da música, mas ele não tocou. Outra que ficou de fora foi a inigualável “Apesar De Você”, que ironiza a ditadura militar como se fosse um relacionamento tóxico, e ilustra bem o momento inóspito que ainda estamos vivenciando.
Já no bis, com as quase 3000 pessoas de pé e perto do palco, Buarque e Salmaso cantaram “Maninha”, dedicado à Miúcha (e o que dizer do verso “um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar”?) , a marchinha carnavalesca “Noite Dos Mascarados”, e fecharam o concerto com a ótima “João e Maria”, cantada a plenos pulmões pelos presentes, abafando a voz dos cantores (finalmente).
Nesse finalzinho do show, Chico levantou a bandeira com o rosto de Lula e fez o “L”. 02 de outubro tá logo ali, já sabem, né? Nesse momento, uma fã corajosa vestindo vermelho invadiu o palco e lhe roubou um beijo, iniciando o 7 de setembro com chave de ouro! As cortinas se fecharam e mesmo assim todo mundo continuou aplaudindo.
Depois dessa estreia em João Pessoa nos dias 6 e 7 de setembro, a turnê passará ainda por 11 capitais brasileiras até março do ano que vem: Natal, Curitiba, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador, Brasília, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Setlist:
01. Todos juntos (Luís Enríquez Bacalov e Sergio Bardotti em versão de Chico Buarque, 1977) – Mônica Salmaso
02. Mar e lua (Chico Buarque, 1980) – Mônica Salmaso
03. Passaredo (Francis Hime e Chico Buarque, 1977) – Mônica Salmaso
04. Bom tempo (Chico Buarque, 1968) – Mônica Salmaso
05. Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque, 1983) – Mônica Salmaso
06. Paratodos (Chico Buarque, 1993) – Mônica Salmaso
07. O velho Francisco (Chico Buarque, 1987) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
08. Sinhá (João Bosco e Chico Buarque, 2011) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
09. Sem fantasia (Chico Buarque, 1968) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
10. Biscate (Chico Buarque, 1993) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
11. Imagina (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1983) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
12. Choro bandido (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985) – Chico Buarque
13. Desalento (Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1970) – Chico Buarque
14. Sob medida (Chico Buarque, 1979) – Chico Buarque
15. Nina (Chico Buarque, 2011) – Chico Buarque
16. Blues pra Bia (Chico Buarque, 2017) – Chico Buarque
17. Samba do grande amor (Chico Buarque, 1984) – Chico Buarque
18. Injuriado (Chico Buarque, 1998) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
19. Tipo um baião (Chico Buarque, 2011) – Chico Buarque
20. As minhas meninas (Chico Buarque, 1987) – Chico Buarque
21. Uma canção desnaturada (Chico Buarque, 1978) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
22. Morro Dois Irmãos (Chico Buarque, 1989) – Chico Buarque
23. Futuros amantes (Chico Buarque, 1983) – Chico Buarque
24. Assentamento (Chico Buarque, 1998) – Chico Buarque
25. Bancarrota blues (Edu Lobo e Chico Buarque, 1985) – Chico Buarque
26. Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque, 2017) – Chico Buarque
27. Sabiá (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1968) – Chico Buarque
28. O meu guri (Chico Buarque, 1977) – Chico Buarque
29. As caravanas (Chico Buarque, 2017) com citação de Deus lhe pague (Chico Buarque, 1971) – Chico Buarque
30. Que tal um samba? (Chico Buarque, 2022) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
Bis:
31. Maninha (Chico Buarque, 1977) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
32. Noite dos mascarados (Chico Buarque, 1967) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
33. João e Maria (Sivuca e Chico Buarque, 1977) – Chico Buarque e Mônica Salmaso
– Dri Cruxen é uma jornalista nômade digital, que desde 2011 viaja pelo país em busca de vivenciar um pouco da cultura brasileira. Acumula festivais de música na bagagem desde o SWU e ama comer em restaurantes veganos. As fotos são de Leo Aversa / Divulgação