texto por João Paulo Barreto
Em “Corra!”, melhor filme de 2017 na votação do Scream & Yell, a evidente, mas não menos ácida, crítica social inserida em relação ao racismo, fez dele o filme mais inventivo e inteligente em sua construção a adentrar pelo terreno do cinema de gênero no século XXI. Em “Nós” (2019), a mesma crítica, porém acrescida de um estudo da violência brutal que um país como os Estados Unidos possuí por essência, e inserida ali em um contexto mais alegórico e desafiador no seu decifrar, analisou o mal contido em cada ser humano em seu conceito de duplicidade mental ou “doppelgänger”, para usar o termo apropriado. Como um dos principais nomes do cinema recente a nos convidar a pensar e a nos desafiar como espectadores dentro de sua criatividade, o diretor e roteirista Jordan Peele lança, agora, seu terceiro trabalho: “Nope” (no Brasil, “Não! Não Olhe!”), um mergulho ainda mais profundo nas alegorias da crítica social que seu poderoso texto pode alcançar.
Seu foco, dessa vez, é direcionado para questões que vão além da violência como uma resposta ao meio onde habitam os indivíduos de sua trama. Mas engana-se quem achar que o simbolismo atrelado a essa violência não se faz presente. Do mesmo modo, está ali a pontiaguda crítica à sociedade do espetáculo, que faz de tudo por um clique e almeja de todo modo alçar-se à fama instantânea e às suas recompensas. E é justamente por esse viés que Jordan Peele, em seu roteiro, se aventura com “Nope”. O enredo conta a história de uma família de domadores de cavalos usados em sets de filmagem que tenta captar em câmeras imagens de um OVNI, após o rancho em que vivem ter sido alvo de um ataque alienígena, visando alcançar a “tomada Oprah”. A percepção das citadas alegorias à simples construção narrativa é o que nos empolga diante da noção de que, para além daquele jogo de caça e presa, há bem mais do que o roteiro entrega de modo “fácil”.
Daniel Kaluuya vive Otis Junior, ou OJ (em uma direta referência a um dos mais notórios exemplos de sensacionalismo midiático do século XX), um domador de cavalos que assume o rancho do pai após sua morte inesperada. Ao notar que a partida brutal do seu velho possui mais do que o inexplicável acaso da coincidência de uma moeda fatal que, supostamente, cai de um avião junto com outros pequenos destroços pontiagudos, OJ, ao lado de sua irmã, percebe que o céu acima do seu rancho possui um segredo horripilante. Peele, aqui, insere sua ambientação de ficção científica como o mais perfeito simbolismo para ilustrar o citado perfil alegórico de sua obra.
Perante o objeto alado a sobrevoar e a devorar pessoas, o “não, não olhe” do seu título nacional ganha um significado potente diante da aparência do tal “OVNI”, que remete claramente a uma lente de câmera e engloba gritos de dor e desespero, além de se abrir em enquadramentos (quase como um zoom) quando diante de uma potencial vítima. Junto a isso, o alerta do personagem de Kaluuya para a segurança encontrada quando não se faz contato visual com seu algoz desenha do modo cirúrgico a discussão que Peele traz a seus filmes no que tange a abordagens policiais no racista Estados Unidos.
E se a proposta aqui é analisar a febre midiática de uma sociedade que vive por “views” e “likes” em redes sociais, nada mais apropriado para Peele do que inserir um trágico repórter do TMZ, inescrupuloso e sensacionalista veículo conhecido da imprensa dos Estados Unidos. Em busca, também, de imagens do OVNI, ele surge em cena de modo apropriado e profundo usando um capacete espelhado que reflete a face de cada personagem com quem cruza. A ideia de termos nesses rostos refletidos o mesmo comportamento doentio de arriscar a vida por uma imagem mostra bem a consciência de Jordan Peele para o fato de que tal mal abraça a sociedade moderna como um todo.
Mas não somente em sua abordagem alegórica na criação de diversos símbolos que reverberam em uma mordaz crítica social se faz valer a construção do texto de Jordan Peele. Muito direto em sua mensagem afirmativa para um cinema que seja protagonizado por pessoas negras, ele apresenta seus personagens principais como descendentes daquela que foi a primeira pessoa a ser enquadrada por uma câmera, no caso, um homem negro a cavalgar. E ao vermos tanto Daniel Kaluuya quanto Keith David (um ator cuja imagem tão fortemente ligada aos cinema de ficção científica dos anos 1980 já desenha as influências de Peele para “Nope”), como cowboys negros em um filme que os destaca como tais figuras míticas do cinema estadunidense, fica evidente a mensagem que o cineasta traz. Isso, principalmente, no último momento de OJ, quando a silhueta clássica do homem sobre o cavalo surge junto ao lado de uma trilha que remete a Enio Morricone.
E na rede de influências e homenagens ao cinema de ficção científica que se mistura ao gênero clássico do terror, Peele encontra espaço para inserir, em um personagem a usar uma câmera de manivela e captação em película, uma bela declaração ao cinema. Junto a ela, também, Peele traz aquela que é a sua principal protagonista: a heróica Emerald Haywood, a irmã de OJ, vivida por Keke Palmer. Se o primeiro homem a ser captado por uma câmera foi um cavaleiro negro, nada mais apropriado que a primeira pessoa a captar um alienígena real com uma câmera seja uma mulher negra a pilotar uma moto cujo enquadramento mais radical em cena é feito por Jordan Peele como uma homenagem ao clássico “Akira”.
Pensar nisso como uma possível porta de entrada para o cineasta se enveredar ainda mais pelos campos da ficção científica empolga tanto quanto as sessões de suas três obras lançadas nos últimos cinco anos.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.