por Homero Pivotto Jr.
Em meio à uma noite ébria na capital paulista, alguém perguntou quem era parte da nossa equipe durante uma festa punk – dessas com Clash, Undertones e GBH. O interlocutor respondeu:
“É os guri do sul que tão gravando uns vídeos”
“Ah, os guri do surf”, replicou quem fez o questionamento.
Aproveito o entendimento equivocado pra dizer que seguimos na onda das filmagens por SP de uma nova temporada d’O Ben para todo mal. Os episódios resultantes dessas gravações entram na programação do canal Music Box Brazil.
Na segunda-feira não tínhamos entrevistas agendadas, e aproveitamos para registrar aberturas e cenas externas no Beco do Batman. Na terça-feira, trocamos ideia com uma das figuras de referência para o punk brasileiro: o músico Clemente Nascimento, que nos recebeu na própria residência, muito bem decorada com memorabilia rocker. Vocalista e guitarrista dos Inocentes e responsável pelas seis cordas na Plebe Rude, o homem também integrou os lendários Restos de Nada e Condutores de Cadáver. Clemente tem três filhos: Mariana (34) e os gêmeos Iago e Pedro (21). Na conversa, ele nos contou como o punk conquistou sua turma de amigos quando jovens, as responsabilidades que nascem com os filhos e como isso impacta na rotina de artista.
“Aquelas loucuras, elas deixam de existir na sua vida. Se acordava tarde, se enchia a cara, não vai mais, porque no outro dia tem de acordar cedo, já que nenê acorda cedo. E isso é legal, pois te dá um rumo na vida. Uma coisa de quem trabalha com arte, com música, muitas vezes é que no começo de carreira é tudo muito largado, não tem preocupação. E você começa a se preocupar (depois do nascimento dos filhos), porque vive disso. Eu tive de aprender a viver de música fazendo outras coisas que não fossem tocar. Fui trabalhar como produtor, na TV, em gravadora. E tudo é, em parte, por causa dos filhos. Com eles você não consegue mais aquele tempo que se tem quando solteiro e músico”, reflete Clemente.
O gaúcho Beto Bruno, cantor agora em carreira solo e frontman da Cachorro Grande, foi outro que nos acolheu em seu lar (rodeado por vinis e gatos adotados), na quarta-feira. Residindo em São Paulo há 17 anos, o pai da Ana Carolina (32), produtora de cinema – outra arte pela qual Beto se diz apaixonado – falou de como a banda acabou o aproximando da filha após um período de pouco contato, sobre as referências à ela e à família em suas composições, sobre almoços dominicais ao som de David Bowie e de como ver um filme dos Beatles com o pai e a mãe o influenciou na escolha da profissão.
“Minha filha morava em Uberlândia, e fomos nos reencontrar quando a Cachorro Grande passou por lá pela primeira vez, depois de alguns anos sem eu a ver. E a gente começou a manter mais contato. Ela é a luz da minha vida, que me incentivou a ter uma banda, botar a cara a tapa em busca do meu sonho. No Dia das Pais a gente esteve junto, relembramos essas histórias, ela me mostrou os filmes que está fazendo, eu as músicas novas que estou compondo. É uma troca muito massa!”, conta Beto.
Logo depois, no mesmo dia, visitamos Ariel Uliana, pai do Leri (43), do Erick (37) e avô do Julian (9). O veterano da cena chegou para mostrar que punk tem muitos significados, como comportamento, postura, visual e, talvez o mais importante, família. Na sala de casa, em meio a quadros de artistas independentes, imagens de shows antigos em que tocou e uma coleção de bottons de bandas, o músico mostrou-se uma criatura sensível ao falar sobre a prole. Vocalista do Restos de Nada, Invasores de Cérebros e Os Insociáveis, Ariel (que passou ainda pelos Inocentes) recordou sobre a ajuda que recebeu dos companheiros punks para criar os meninos, abordou educação com liberdade e relembrou as alegrias e as agruras de colocar crianças nesse mundo em constante desequilíbrio. Usando óculos escuros em razão de um glaucoma, o músico também ponderou sobre o legado da antiga companheira Tina – inclusive usando camiseta com um desenho em homenagem à ela –, a quem se juntou em 1982 e que faleceu este ano.
“Foi difícil criar os filhos sem a ajuda dos familiares. Então, a gente criou uma família dentro do punk rock. A partir de 1985, quando nasceu o Erick, minha casa parecia um squat, frequentada dia e noite por punks. E eles foram babás dos meus filhos. E os meus filhos viveram no meio de tudo isso. Falam que tem violência, tem droga, e que isso influencia. Pra eles não, meus filhos são praticamente caretas, se formaram em faculdades. Eles aprenderam muito, inclusive, circulando nesse meio”, lembra Ariel.
Fechando o dia, fomos curtir com o entrevistado a Barra Funda, bairro em que a equipe d’O Ben para todo mal está hospedada e onde Ariel circula com frequência. Em meio a cervejas e a fumaça da noite, ouvimos histórias envolvendo nomes conhecidos do cenário rockeiro nacional.
A semana teve ainda, na sexta-feira, papo com Jean Dolabella, músico, educador e produtor. Além de todas as atividades ligadas à música, o multi-instrumentista da Ego Kill Talent e ex-baterista do Sepultura é pai da Amanda (26), do João (14) e do Téo (12). A filmagem rolou no Family Mob Studio, espaço do qual Jean é um dos sócios e por onde já gravaram nomes importantes do som pesado (como Crypta e Ratos de Porão). No papo, ele ponderou sobre os aprendizados que teve ao longo da carreira e da paternidade. Também refletiu sobre ter uma filha quando ainda era adolescente e lembrou momentos marcantes – como levar João na turnê que fez com o Metallica pelo Brasil neste ano.
“Com 17 anos você é uma criança. Isso (o nascimento da filha) foi um choque muito grande porque me colocou num lugar de ter que assumir uma responsabilidade bem cedo. Foi quando eu busquei um emprego. Lembro que tive uma conversa com meu pai, bem na época de estar em uma transição com a escola. Tipo ‘não é isso que eu quero’. Eu fazia tudo certo, ia pra aula, mas não era onde eu queria gastar minha energia. Aí, quando a Amanda nasceu, foi meio que ‘se é pra fazer, vou fazer direito’. Comecei a tocar com todo mundo em Belo Horizonte, gravar com vários cantores e cantoras, toquei em várias bandas, fiz muito tempo de baile, fiz carnaval, toquei axé e pagode. E isso foi extremamente rico”, reflete Jean.
O sábado foi de passeios durante o dia. À noite, parte da equipe foi curtir punk rock noHangar 110, enquanto outra preferiu uma roda de samba.
No domingo, conseguirmos emplacar um papo sobre as raízes da banda de metal mais renomada já nascida no Brasil. Vânia Cavalera (80), mãe de Iggor e Max – fundadores do Sepultura –, mostrou que o carisma dos filhos vem de berço. Na companhia da amiga Tuka Quinelli (parceira do clã Cavalera desde a adolescência deles) e do neto Iccaro (filho de Iggor), uma receptiva Vânia percorreu lembranças que reforçam a ideia de que rock e família se misturam muito bem. Sem o apoio dela, pouco provável que a carreira dos filhos teria sido tão exitosa. Afinal, ela fez sacrifícios para ver o sonho dos meninos se realizar – até chamada de louca por algumas decisões foi.
“Nós sempre compartilhamos tudo: problemas, o que fazer, o que deixar de fazer, viagens, mudanças. É sempre uma decisão coletiva. E eu nunca deixei que alguma pessoa entrasse na nossa vida para interferir. Não teve menor importância do que me chamavam, porque eu sabia o que eles queriam. E eles contavam comigo. Isso é que era importante”, diz uma convicta mãe. Vânia contou causos desde o tempo em que disse aos meninos que poderiam largar a escola para se dedicar à banda (com algumas regras) até o sucesso internacional. Uma conversa emocionante, que precedeu uma tarde extremamente agradável no Fenda 315 – espaço que gentilmente nos recebeu para as filmagens graças a ajuda da colega Cecília Gomes.
Entramos na derradeira semana de trampo por SP. Esperamos seguir encontrando pessoas dispostas a trocar experiências positivas nesse mar de loucura em que estamos instalados.
Saiba como foi a primeira semana em São Paulo
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.