entrevista por Leonardo Vinhas
Mesmo que você não conheça o nome Paulo André de Moraes Pires, é seguro dizer que ele entrou na história da música brasileira, e de muitas formas: como o fundador e organizador do festival Abril Pro Rock, como um dos criadores da feira Porto Musical, e, principalmente como o empresário que articulou a jornada da música pernambucana dos anos 90 pelo mundo, especialmente a carreira de Chico Science & Nação Zumbi (e também da Nação após a morte de Chico). E acredite, mesmo esse breve disclaimer não dá conta da riqueza dessas experiências. É preciso trazer bastante contexto e informação para entender o quanto tudo isso é ainda maior do que parece.
“Memórias de Um Motorista de Turnês” (2022), primeiro livro de Paulo André, é um primeiro passo na entrega desse contexto, e também um passo importante no resgate de uma memória histórica que está longe de ser preservada como deveria. É verdade que é apenas uma primeira arranhada na memória e na memorabilia coletada ao longo de décadas de trabalho ligados à música, mas que já ajuda muito a entender a dimensão daquela que, na opinião de muitos, foi a última vez em que uma geração inteira veio com um trabalho novo, capaz de alterar os caminhos da música brasileira e de fazer milhares de pessoas olharem para um Brasil que elas nunca haviam visto.
No caso específico de Chico Science & Nação Zumbi, isso é ainda mais verdadeiro. A influência de Chico vai muito além de trazer a alfaia para o rock e para a MPB. Muito, muito além. Chico resgatou a mentalidade de usar o local para falar com o global, e a ampliou a partir de uma obra artística que, mesmo que breve e interrompida por sua morte em 1997, não encontra par no universo musical brasileiro. Com isso, criou um impacto na sua geração e nas futuras, e ainda trouxe um universo cultural que envolvia design gráfico, artes plásticas, Josué de Castro, caranguejos, sociologia, urbanismo e tecnologia apresentados dentro da mesma estética e poesia.
O livro de Paulo André nasceu de postagens nas redes sociais, a maioria delas feitas durante o confinamento imposto pela pandemia da Covid-19. O foco são suas turnês pela Europa com CSNZ, Cascabulho e Cabruêra, além de trabalhos com Mestre Ambrósio, Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis e outros, mais histórias da sua pós-adolescência em São Francisco, EUA, onde viveu o auge das cenas de thrash e death metal na Bay Area. E ainda há espaço para falar de algumas edições do Abril Pro Rock.
As histórias são contadas em tom informal, como uma conversa em um bar. Isso colabora bastante para o envolvimento do leitor, mas faltou aproveitar o formato impresso para condensar algumas histórias, evitar repetição de algumas informações e talvez acrescentar fatos e detalhes a outras. Por isso, pode ficar difícil ao leitor que não viveu a época entender a importância de alguns personagens, ou mesmo saber mais precisamente sobre os protagonistas de determinadas histórias. Faltou também uma revisão geral, já que o texto mantém os erros de ortografia e concordância comuns às postagens em redes sociais. Ainda assim, essas questões não diminuem o livro.
O Scream & Yell aproveitou o lançamento do livro para bater um papo com Paulo André e perguntar não só sobre seu debute editorial, mas também sobre mercado da música, ilusões de carreira, potenciais subaproveitados e, claro, Chico Science.
Já que seu livro mergulha no passado, vale fazer a ponte com o presente: qual é o legado da geração manguebeat e de Chico para hoje?
Eu vejo um legado na cidade. Chico é muito presente na cidade, apesar de não estar mais aqui. Todos os envolvidos no manguebeat estão aí até hoje, fazendo show e excursionando: Otto, Fred 04, Siba, Cannibal. Mas sempre dou o exemplo de um cara que convidei para o Abril Pro Rock em 2000 e 2015, que é Paulo Diniz (1940 – 2022). Quando converso com os mais novos, provoco se conhecem Paulo Diniz. E não o conhecem, mesmo produtores musicais e músicos hoje o “apagaram”. Nasci em 1967, e quando eu era menino, Paulo Diniz era mega, todo mundo o conhecia. Meu pai ouvia muito o poema de Drummond musicado: (cantarola) “e agora, José? A festa acabou, a luz apagou”. Ele foi o rei desse universo de barzinho e violão até a metade dos anos 80. E se apagaram um cara como Paulo Diniz, que não teve, a meu ver, o devido reconhecimento nem após a sua morte… Se até ele foi apagado da cena, imagina o Chico! Eu falo para Louise [França, filha de Chico], que quando eu faço as postagens sobre os aniversários das turnês estrangeiras, faço muito mais pela memória do Chico. Porque se a galera não conhece e não se lembra de Paulo Diniz, que tocava muito, imagina de Chico Science e Nação Zumbi! Aprendemos na pele que música em novela não ajuda em nada. “A Praieira” na novela “Tropicaliente” (1994) e “A Cidade” no remake de “Irmãos Coragem” (‘1995). Para não dizer que não ajudavam em nada, acontecia de eu falar com um contratante que fechava com Gabriel, o Pensador e Skank, e contar pra ele que tinha música em novela. Mas era aquela música que tocava de vez em quando (risos). Não adiantava ter tocado no Faustão, ter tocado em Jô Soares. Tocamos em todos os programas a que a gente tinha direito na televisão brasileira, e não levava público…
Quando você começou como produtor e “motorista de turnê”, era um cenário totalmente diferente para artistas novos. O que mudou?
A comunicação tá mais fácil. Eu passava horas em trens, vans e tal, sem poder me comunicar, era tudo no telefone fixo. Mas na verdade, o Brasil retrocedeu em muita coisa. Eu diria que eu e outras pessoas que produziram nessa pandemia foram provocados por toda essa situação. Eu nunca me imaginei passando por uma situação financeira complicada como tô agora, e que o Brasil fosse retroceder tanto. Um país desse, com o potencial turístico que tem, e não ter um exemplo nem do Pará, nem de Pernambuco, da Bahia, do Rio ou de São Paulo, de uma cidade que atraia jovens turistas pela cultura. Vez ou outra eu encontro algum gringo aqui no centro de Recife, mas é uma coisa bem rara. Apresento o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), o Bairro do Recife, o Mercado São José… Mas vejo outros lugares do mundo que não tem o mesmo potencial usarem a cultura de forma muito melhor para atraírem turistas. Mas retomando a sua pergunta: eu brinco que, se fosse para eu ganhar dinheiro naquela época [meados dos anos 90], eu teria montado uma banda chamada Ninfetas do Forró, apelando mesmo, colocando meninas de 18 anos responsáveis por si próprias, e chamaria os amigos compositores para compor sob pseudônimos e fazer um forró putaria. Porque, no final das contas, hoje você vê isso, pelas letras e visual. Era uma época em que havia várias bandas de forró estilizado: Mastruz com Leite, Brucelose, Mel com Terra, Calango Aceso e outras. Muitas delas tinham um dono, que era o Emanuel Gurgel, que pagava os músicos como empregados e era proprietário das bandas mesmo. Ele saiu expandindo esse business no estilo mainstream, mas sem ser com uma major gringa, por todo o Nordeste, fazendo acordos com rádios das cidades para tocar nelas, organizar o show e faturar. Eram dois mundos paralelos, esse e o mangue. Eu vi muitas carreiras desandarem porque o artista ou a banda achavam que era só fazer um contrato com uma grande gravadora que estava tudo certo. Pra você ter uma ideia, quando “Da Lama ao Caos” (1994) saiu, a gravadora me deu uma caixinha com 25 CDs, que acabou rapidamente, e eu tive que comprar mais CDs para continuar distribuindo para empresas e contratantes para o trabalho de divulgação não parar. Mesmo estando em uma grande gravadora, quem direciona a carreira é você. Tem um vídeo do Central Park Summer Stage em que o Chico fala assim: “foi uma turnê armada pela própria banda”, e eu era mais um da banda. Nunca é a gravadora, é sempre a própria banda. E hoje, mais do que nunca, tem que ser assim. As pessoas acham que só uma rede social e umas curtidas vão colocar em algum lugar, e não vai. Ainda tem muito trabalho de estar no lugar certo e na hora certa.
Imagino que o título do livro tem relação com essa ideia, não?
Totalmente. O título é uma provocação ao “mercadinho” – é como eu chamo, porque não é o grande mercado da música brasileira. É a provocação de dizer: sim, eu também era o motorista. Sim, eu também era o vendedor de CDs. Se a gente fosse pagar um motorista europeu para guiar a gente pela Europa, sobraria mais dinheiro para ele que para os integrantes da banda, entendeu? Trazendo para hoje, e retomando também sua pergunta anterior: eu digo aos mais jovens para não se desestimularem, porque é um momento muito parecido com o início dos anos 90. O Brasil era uma terra arrasada pelo Collor, pelo confisco da poupança, ninguém tinha perspectiva. Tanto que isso é o que criou, na minha opinião, um certo delay para música dos anos 90 se apresentar. Ela só se apresentou na virada de 92 para 93, com Gabriel o Pensador. Ironicamente, o Gabriel era filho da Belisa Ribeiro, que era assessora de imprensa do Collor, mas fez uma música chamada “Tô Feliz (Matei o Presidente)”, que gerou alguma repercussão para ele, apesar de a música não ter tocado muito. O Rappa também caiu nessa com a versão de “Candidato Caô Caô” [do Bezerra da Silva, que participa da releitura], que não emplacou. Mas eu acho que a gente está de novo numa terra arrasada. Só que tem outro lance: o mangue foi essencialmente periférico. Ele veio quando Chico Science, que era colega de trabalho de Gilmar Bolla 8, do Lamento Negro, vai visitar o centro cultural Daruê Malungo, em Peixinhos (bairro periférico de Recife, fronteiriço ao seu homônimo de Olinda), e começa a tirar um som com a galera. No início nem era Chico Science & Nação Zumbi. E no Alto Zé do Pinho tinha uma galera do underground que não colava com o pessoal do mangue, que eram os Devotos, então Devotos do Ódio, e o Faces do Subúrbio. Eles eram jovens de periferia, sem dinheiro, e nenhum deles era ligado ao movimento negro, LGBTQIA+, movimentos sociais e à própria política local. Hoje, os jovens dessas comunidades, e não só de lá, mas de todo o subúrbio, a galera é mais ligada, sabem muito mais dos direitos deles que essa geração sabia. Essa é outra grande diferença de hoje: é uma geração muito mais aguerrida em não repetir a vida dos pais e avós.
Esse é um lance que você aborda tangencialmente no livro, ao contar a história de como o Canhoto (tocador de caixa da Nação Zumbi, que foi expulso da banda após a turnê do primeiro disco) sequer sabia onde ficava o Paraguai. A Nação mesmo era bem meio a meio, com Bolla 8, Gira, Canhoto e Toca vindo da periferia, e Chico, Lúcio (Maia), Jorge (Du Peixe) e Dengue vindo de famílias de classe média. O Mestre Ambrósio, até onde sei, tinha uma configuração parecida em sua origem, o mundo livre s/a também. Esse diálogo entre classes parece que foi fundamental para a própria identidade do mangue, mas que me parece muito difícil de ocorrer hoje.
Acho que a galera hoje é mais aberta. E o mangue era uma exceção, era a galera mais aberta, mas a geração deles não era assim. O underground era muito mais violento. Eu lembro do Documento Especial, ou Globo Repórter, alguma coisa assim, falando das tribos, da violência…Eu lembro de um festival no Pará que era Rock 24 Horas. Em 1992, teve umas gangues em Belém que brigaram para demarcar território, e até saquearam o palco. Foi matéria de abertura do Jornal Nacional! Era uma época de sequestros, uma coisa absurda. E o subúrbio era completamente invisibilizado. Hoje tem muito mais empoderamento dessa galera na sociedade do que tinha naquele momento. O Alto José do Pinho e Peixinhos só apareciam nos jornais pela violência, tráfico de drogas, assassinato. Eu considero Cannibal, Gilmar Bolla 8, Toca Ogan, líderes comunitários naturais dessas comunidades, e eles e a galera vieram, viraram o jogo, e mostraram que esses lugares tinham uma grande cultura. Aí veio MTV, veio Band, e mostrou tudo isso. Mas essa escala social veio naturalmente do pessoal do mangue. Fico imaginando se esse pessoal do mangue tivesse na época esse potencial que existe hoje das redes sociais. Hoje você vê uma repercussão de uma turnê do Emicida ou da Marina Sena e vai vendo, em tempo real, os flyers dos festivais onde eles tocam, tem mais canais para disseminar a informação e os resultados. Muitas dessas histórias que eu conto no livro, eu não pude contar naquela época. Era matéria de jornal no máximo, né? Quando a gente voltava de uma turnê, procurava uns jornalistas para dizer tudo o que a gente tinha feito, trazia uma coletânea gringa, um flyer, alguma coisa, mas nada tinha essa repercussão que tem hoje.
Paulo André conversa com Chico Science sobre Nick Cave em um van de turnê
Você fala em uma boa parte do livro dos perrengues que vocês passaram nas turnês, e que só a juventude permitiu que vocês dessem conta disso. Mas e quando a juventude acaba e o artista ainda está sem estrutura para fazer uma turnê com condições dignas, mesmo depois de anos?
Ajuda muito quando você tem um entendimento do mercado. No exterior, por exemplo, eles são muito mais práticos. Ninguém vai te buscar no aeroporto, a não ser que seja um festival grande que você está fazendo aquela perna de avião. Mas em geral, você vai chegar lá, com sua van, direto nos bastidores, se apresentar, se credenciar… O brasileiro tem um pouco disso de ter uma expectativa de que as coisas são maiores do que elas realmente são, né? A gente começa a entender que o mundo é pequeno. Quando eu comecei a ir para o Womex, encontrava os radialistas, os jornalistas e os promotores dessas principais cidades por onde a gente havia andado, e eu pude perceber o quanto o Brasil era distante desse mundo, principalmente quem não era samba, MPB ou bossa nova, esse público do jazz adulto que consumia essa música brasileira mais comportada. A gente não se enquadrava em nada disso, Nessa questão da produção, acho que, se o Chico não tivesse tido um produtor-motorista-tradutor-vendedor de CD, talvez ele não tivesse chegado na Virgin Encyclopedia of Music, né? A Virgin chegou no Brasil botando o maior dinheiro no Carlinhos Brown, inclusive para lançá-lo no exterior, mas quem está na Virgin Encyclopedia of Music representando os anos 90 é Tom Zé, Sepultura e Chico Science & Nação Zumbi. Por isso que finalizo o livro dizendo que não importa o tamanho da van ou do veículo, mas sim a forma como se dirige. Eu não tinha experiência, não tinha trabalhado com nenhum grande artista antes, e a Sony começou a mandar uns empresários de bandas para falar com a Nação. Mandou o empresário de Elymar Santos, mandou um empresário de uma grande banda de pop rock brasileiro. Caras que eram vendedores de show, basicamente, sem planejamento de carreira. Eu chamava o Chico para presenciar a conversa, claro, e ele sempre dizia: “meu irmão, a gente que vai fazer, velho. Tem que ser a gente. Eu não vou ficar na mão desses caras”. Era uma banda de nove pessoas, e às vezes dava uns desesperos no Chico por causa de grana. Quando a gente ganhava muito bem, era uns R$ 10 mil, no carnaval do Recife. Isso dividido por nove. Então a grana sempre era muito curta. Por isso que conto no livro que ele só para de falar em voltar pro emprego antigo quando chega o primeiro fax com convite para tocar na Europa.
Você tinha um lado meio de mentoria com todo o pessoal da Nação, não? Porque, pra metade deles, pelo menos, era um universo totalmente impensável que foi se apresentando.
Era um mundo completamente diferente para eles. Chico fazia uma lavagem cerebral na galera para fazê-los escutarem os discos, as coisas que estavam rolando ali [na Europa e nos EUA]. Mas para você ter uma ideia, o Canhoto tinha 18 anos e tinha sido pai com 15. Tocamos cinco dias consecutivos em Berlim e ele tocou os cinco dias com a mesma roupa, porque era o final da turnê e ele não queria gastar uma grana para lavar as roupas que já estavam sujas de quase dois meses de turnê. A gente ficava num Albergue da Juventude,e às oito horas da manhã chegavam umas senhoras para limpar os quartos, expulsando a gente de lá. Tinha que ir pra rua e só podia voltar às 11:30 da manhã. A galera ia tomar o café da manhã e sair pra andar, e ele estava dormindo no jardim do albergue. Não tava entendendo o que tava acontecendo naquele momento. Então eu era meio como um irmão mais velho, a galera não tinha noção de nada. Eu tinha que chegar e falar, “galera, é assim, assim e assim”. Com toda paciência do mundo. Hoje eu me considero o motorista de turnês aposentado. Tenho três filhos, e hoje minha paciência toda está canalizada para eles, entendeu? Às vezes eu olho pra trás e digo: “velho. eu não sei como eu consegui fazer isso”. É coisa da juventude mesmo, você tem aquela garra de vencer tudo. As rádios ignorando, as rádios da cidade ignorando, as rádios do país ignorando, e você dizendo: “não velho, não pode ser”. Acreditando. Se eu não tivesse esse background das cenas de rock de São Francisco, que eu vivi intensamente muito jovem, sem o domínio do inglês e tal, talvez eu não tivesse credenciamento suficiente para gerir a carreira do Chico, entendeu? Eu era uma das poucas pessoas a trabalhar com isso, e quando ele me disse: “meu irmão, eu tô precisando de ajuda”, eu não perguntei quanto eu ia ganhar, muito menos qual seria o meu percentual. Ali se abriu uma oportunidade na minha vida. Eu não tinha conta para pagar, morava com minha mãe, e eu embarquei de cabeça, me dedicando. Não era só por dinheiro, né? Era eu, eu sabia que ali tinha um futuro que ia dar em algum lugar.
E esse é um exercício duro de fazer, mas pra todo mundo que ouviu na época, é um exercício inevitável: onde você acha que Chico estaria hoje, se a vida não tivesse sido interrompida?
Se o Chico fosse vivo hoje, estaria interagindo e talvez produzindo artisticamente. A gente está falando do passado, mas eu gosto muito de trazer o hoje também, e digo no livro que o futuro não existe, ele está sendo construído hoje. Cada um é o futuro. A galera tem uma ilusão de que as coisas vão acontecer, e eu digo que não, que elas só vão acontecer se você fizer por onde agora. A galera da Nação era muito jovem, cara, e não se interessava por nada que não fosse ensaiar, tocar e receber, mas o Chico queria saber de cada coisa. Lá em Nova Iorque, a gente viu uma loja de uma franquia de roupas que era de um dos Beastie Boys, e do outro lado da rua, a Kim Gordon (Sonic Youth) também era sócia de uma loja de roupa. Os Beastie Boys tinham a revista Grand Royal, o selo Grand Royal, o cara tinha essa loja. E o Chico, que era muito fã dos Beastie Boys, via isso e ficava fissurado, isso também era uma grande influência. Ele falava: “Paulo, meu irmão, a gente vai fazer isso também”. A gente tinha ideia de fazer nosso próprio selo, de cumprir os três discos de contrato com a Sony e depois fazer nossa própria gravadora, deixar um contrato só de distribuição com a Sony. Porque o David Byrne quis lançar o disco nos Estados Unidos, mas a Sony Brasil só podia liberar para um selo de outro país só se a Sony desse país dissesse que não tinha interesse em lançar. No fim, a Sony lançou a gente nos EUA em um pacote que não era nossa onda. Era para um mercado gigante dos imigrantes latinos dentro dos Estados Unidos, que tinha sua própria conferência, suas revistas, programas de rádios e tal, mas a língua não abrigava as bandas brasileiras. A gente foi lançado com bandas incríveis, como os Fabulosos Cadillacs, da Argentina, o Desorden Publico, da Venezuela, e aquelas bandas da Argentina que imitavam meio Rolling Stones [nota: Paulo se refere às bandas “rolingas”, um subgênero do rock argentino extremamente popular nos anos 90 e 00, especialmente junto ao público das classes sociais mais baixas]. A gente não tinha a ver com aquilo, mas não tinha nenhum poder de decisão. O David Byrne tinha lançado outros artistas que tinham mais a ver com a gente, como os venezuelanos Los de Abajo, a peruana Susana Baca, Los Amigos Invisibles… Teria sido muito melhor, mas quando você tá numa grande gravadora, você não controla isso. Então a história de a gente fazer o próprio selo era muito pra termos o controle dessa parceria, de escolher quem vai lançar na Europa, quem vai lançar nos Estados Unidos, coisa que eu fiz depois com DJ Dolores, com Cascabulho, Cabruêra.
Queria dar um breve desvio pro Abril Pro Rock, porque o festival tem feito uma guinada cada vez mais forte para a predominância do metal e de outros sons mais pesados, e o livro fala da sua relação com as bandas de porradaria da Bay Area nos anos 80. Imagino que essa mudança do Abril Pro Rock dialoga tanto com esse seu lado fã, ouvinte, como também com uma questão mercadológica.
O que acontece, Leonardo, é que a gente vai vivenciando e vai entendendo melhor o público. Em 1999, o Sepultura teve quase 7 mil pagantes no Recife, era uma banda mundial, tava sem Max [Cavalera], mas ainda no auge.10 anos depois levamos o Motorhead, que até hoje a galera me agradece por ter trazido. Foi a banda mais cara da história do festival, e depois dela, a gente tomou a decisão de não mais gastar tanta grana em uma banda só, mas dividir em duas ou três, porque nesse dia tinha só metade do público [do Sepultura]. É porque eu não entendia o funcionamento do público. Não entendia como é que o Raimundos vendia 100 mil cópias e era popular ali nos anos 90, e quando Devotos lança o disco pelo selo Plug, da BMG, em 1997, não vendeu nem 10 mil cópias, mesmo aquele choque foda, com um discurso foda, que todo mundo se impressionava. Aí eu saquei os playboys do rock, e até hoje é assim. É gente como a galera que eu conheço aqui de Recife, que vai para o Rio de Janeiro ver o Pearl Jam sozinho, mas não vai no Lollapalooza ver o Pearl. Jam com não sei quantas bandas mais. Eles saem de casa aqui para ir num bar que faz um tributo a Los Hermanos ou tributo a Pearl Jam, mas eles não vão nos inferninhos ver a cena underground daqui. Era assim no Brasil inteiro, e ainda é. O rock underground brasileiro perde esse público que consome rock, mas não se mistura com underground. Foi ali nesse show do Motorhead que eu comecei a perceber. Em 2008, ano em que a Petrobras patrocinava, a gente conseguiu trazer na mesma noite o Bad Brains e o New York Dolls. Me lembro que a meia-entrada pro Abril Pro Rock custava R$ 30, e quem doava um quilo de alimento para não pagar o dobro pagava R$ 40, o chamado ingresso social. Em São Paulo, o show individual dessas bandas era uns 120 o ingresso inteiro. Mesmo assim, aqui a gente teve, sei lá, 2 mil pessoas num lugar para 15 mil, né? Vi que o punk rock, o hardcore, não tinham o mesmo apelo que o metal tinha. Aqui já tivemos até Exodus e Brujeria na mesma noite, e vejo que quando a gente traz galera assim, vem caravana de Campina Grande, Caruaru, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Aracaju. Move a região toda. Então a gente continua fazendo o Abril nessa pegada porque eu não tenho coragem de deixar de fazer. Isso movimenta esse underground nordestino. O público do metal é o público mais fiel. Ele compra o ingresso, o vinil, o CD, ele compra a camiseta no show, ele vai para a tarde de autógrafos. Diferentemente do fã de um som mais beat, mais pop. Eu cansei desse business do midstream, de ter que segurar show e pagar mais para o cara não tocar de graça no Carnaval, porque se tocar, ninguém vai pagar para ver o mesmo artista dois meses depois. Cansei disso, cara, desse business e de uma nova geração de produtores que pensam diferente de mim. Por exemplo, eu sei o quanto é importante você formar público em um festival. Se você é uma banda dos anos 90, o público do festival é na maioria jovem, e não tá ali para ver tua banda dos anos 90. Mas você pode ir pro festival e formar esse público, mas nem todo mundo visualiza assim. Eu sou de uma geração que não gozava nem de um circuito nem de um calendário de festivais em todas as regiões do Brasil como existe hoje, e é um circuito que pega esse midstream – BaianaSystem, Criolo, Johnny Hooker – e combina com grandes artistas da MPB. Só muda a cidade e mais um pouquinho do line up, mas é sempre aquele artista, aquela banda que lança um disco que repercutiu bem e que todo mundo vai levar naquele momento. Aí eu comecei a ir na contramão disso, depois de 25 anos do festival.
Mesmo com tantas roubadas, perdas e promessas incumpridas, o livro tem um tom alegre. Uma alegria de vida mesmo. Ainda assim, queria saber se tem espaço para arrependimento, seja do que você fez ou do que não fez.
Cara, meu único arrependimento é não ter ido nos anos 2000 pra Europa montar uma base lá. Era a época em que eu circulava muito pelos grandes festivais, e não ter montado uma base lá para morar lá por uns 10 anos e fazer essas turnês hospedando as bandas é algo de que me arrependo. Os day offs das turnês, os dias sem shows, têm custo alto, sai bem caro hospedar e alimentar todo mundo. Mas fora isso, não me arrependo de nada, muito pelo contrário. Me lembro de uma vez que CSNZ foi tocar em um clube social lá em Goiânia, com Skank e Pato Fu. Fui pegar mais cerveja e mais água no camarim e levei uma caixa de papelão para carregar tudo e abastecer a galera. E o empresário do Pato Fu me viu ali nos bastidores e falou assim: “Paulo, não é mais pra você estar fazendo isso, velho, carregando caixa de cerveja para banda no palco”. E eu falei, “e quem vai carregar se eu não fizer isso, velho? Eu tenho um roadie para oito caras no palco, não pode voar uma baqueta do tambor, não pode quebrar uma corda, porque o cara tem que estar ligado em oito no palco. Tem que ser eu, velho, eu não posso pagar um produtor assistente para carregar”.
Para fechar: como foi a última vez que você falou com Chico?
A última vez dele no palco não foi com a Nação Zumbi, foi com Antonio Nóbrega numa festa de Carnaval, com uma orquestra de frevo tocando um clássico, “Madeira que cupim não rói”. Na semana pré-carnaval, na Avenida Boa Viagem, em Recife, tem um desfile de trios elétricos, e nós iríamos fazer, mas Chico morreu um dia antes. Então, a última vez que ele sobe no palco é nessa festa, um sábado antes. E aí, cara, era uma festa meio careta assim pra gente, e a gente saiu para dar um rolê no Landau dele, e nessa última conversa, ele falava da gente ir pro Japão, que era algo que eu tava tentando, falava da terceira turnê na Europa. Ele tinha vindo de umas férias na Europa, e ele era de uma intensidade, Leonardo… Tem um videoclipe dos Beastie Boys de uma música que eu não vou lembrar agora (nota: “Mullet Head”), que é um videoclipe que aparece uns quatro cinco caras descendo uma montanha de neve de snowboard e só lá embaixo no final, um dos caras tira aquela máscara protetora do sol e os óculos, e você vê que era, se eu não me engano, o cara que morreu, o Ad-Rock (nota: na verdade, quem faleceu, e que é de fato o personagem a quem Paulo se refere, foi Adam Yauch, o MCA). Enfim, era o baixinho. E aí a gente tá num quarto de hotel vendo a MTV, Chico aponta para televisão e fala: “Paulo, um dia eu vou fazer isso aí, velho, eu vou descer uma montanha de snowboard”. Aí eu falei: “só não vai se não quiser, cara”. Quando ele tira férias Chico tava gamadão numa menina que era de uma família aqui de Recife mas cresceu em Paris. A geração dos nossos pais falaria que ele tava “arriado dos quatro pneus” pela moça. Ele foi, ficou um tempo, e aí tinha um amigo meu aqui que é de uma família que tem grana, já nessa época ele ia andar de snowboard na Europa quando era verão aqui. Aí eu disse pra Chico: “cara, Rodrigo tá indo pra Europa, tu quer realizar teu sonho, vai ser agora, porque ele tem as pranchas, as roupas, e vai te ensinar e tal”. E Chico desce, né? Não a montanhazona, mas uma área mais tranquila. Tenho as fotos dele todo sujo de neve com as quedas que levou, ele tá junto com esse meu amigo, a namorada, e os amigos. E aí cara, vê essa coisa, né? Porque é foda, meu irmão. Você perdeu um amigo em um auge da carreira que você convivia ali, que de todo mundo que você conhecia era o último cara que você queria que partisse naquele momento… Você vê essa: eu passei muitos anos achando que eu ia morrer cedo, porque com aquela dinâmica, não sei velho… Eu fiquei tão chocado assim de perder a parceria com um amigo que eu pensava que eu também ia morrer cedo, que a vida era isso mesmo. Era breve para todo mundo, mas depois, eu refletindo sobre a vida, eu digo que doideira, né, o Chico, que tinha o sonho de andar de snowboard. O cara consegue, no apagar das luzes da vida, andar de snowboard, e no máximo três semanas depois, parte. Eu tenho na cabeça um livro chamado “Inconformados”, que seria sobre Chico Science & Nação Zumbi, que eu só não tive condições emocionais de botar no papel ainda. E é um livro que acaba extremamente triste, né, porque é uma história interrompida ali assim na crescida. Essa história do sonho de andar de snowboard ajuda a história a acabar não de uma forma trágica e triste, mas de deixar as pessoas refletindo sobre a vida. O Chico não tá mais aqui, então eu sinto uma responsabilidade, né? Eu até falei isso pra Louise: eu sei que se teu pai pudesse falar alguma coisa para mim, ele ia dizer: “Paulo! Porra, caralho, velho, lança logo essa porra, meu irmão! Pode contar isso, velho, por mim, meu irmão. Faça isso, velho”. Eu tô ouvindo ele me dizer, entendeu?
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
De certa forma fiz parte dessa trajetória do Chico, tudo começou na nossa casa, reuniões e ajuda quando a grana acabava, muito triste e prematura a sua partida.
Que foda!