Faixa a faixa: “Hecatombe”, EP da banda santista Fizeram a Elza

introdução por Diego Albuquerque
Faixa a faixa por Gil Oliveira

Formada em 2019 em Santos, o sexteto Fizeram a Elza tem em sua formação jovens que participam de vários projetos da cena cultural da baixada santista, que se uniram com a “ideia é promover a cultura popular e a ancestralidade misturando com elementos do universo pop, como o rock e o eletrônico”, explica Gil Oliveira, guitarrista do projeto. Com a pausa forçada pela pandemia, os integrantes aproveitaram o tempo para compor novas letras, maturar ideias e aprimorar o trabalho já iniciado.

Do processo nasceram as cinco músicas do EP “Hecatombe”, que demonstram a pluralidade sonora do sexteto. “Cada música aborda um ritmo e temática diferente, trazendo, de forma poética, temas contundentes como a saga dos imigrantes, a desigualdade social e seus efeitos no indivíduo”, comenta as vocalista Barbara Felix Dias. O trabalho ainda conta com a participação dos artistas pernambucanos Ortinho e Zé Brown (do Faces do Subúrbio).

Numa espécie de alquimia sonora com elementos da cultura tradicional popular brasileira com a contemporaneidade pop e rock, o resultado é uma poção feita de diversidade retratando várias versões sonoras do Brasil. Abaixo, Gil Oliveira comenta as cinco faixas de “Hecatombe”, permitindo um mergulho mais profundo no trabalho do grupo, que ainda conta com Breno Ayres (baixo, violão, vocais), Deivison Santana e Guilherme Zupo (percussão) mais Ney Paiva (bateria).

Faixa a faixa – EP Hecatombe (Por Gil Oliveira)

01) “Carnaval”: Foi o nosso primeiro single, abrindo alas para o EP “Hecatombe”. A canção foi composta por Breno Ayres e produzida por Gustavo Souza, que já participou de projetos com grandes nomes da música como Arnaldo Antunes, Luiz Melodia, Zélia Duncan e Elza Soares, entre outros. Tem uma levada festiva, com elementos percussivos acentuados em uma pegada de samba reggae e samba rock, misturado com metais dos bailes de carnaval e a universalidade da guitarra distorcida e sintetizadores. Dentro do cenário deste evento que é uma ebulição de vontades escondidas, amores fulminantes, crenças, conceitos e pré-conceitos, a música traz sua mensagem, com textura de crônica, aromas dos blocos de rua e uma pitada de drama de telenovela. No carnaval, um dos elementos centrais é a fantasia, que veste o corpo e as mentes dos foliões e materializa o que era um desejo secreto ou uma ideia vaga, e dentro da fantasia acontece algo mágico. Com máscaras e roupas diferentes, todos se tornam iguais pelo breve instante dos poucos dias de folia e aí que “nobres presidentes, rebeldes e tenentes”, se unem à “mulher mais rica, pobres, sodomitas” e matam sua sede nesta alforria do julgo dos papéis sociais que cada um carrega. Porém, como todo carnaval tem seu fim, a magia uma hora acaba, e a canção muda sua levada na Quarta-Feira de Cinzas onde a “ressaca seca tudo” e aí engolimos um remédio para a dor de cabeça, junto com uma dose amarga de realidade.

02) “Hecatombe”: Esta canção nasceu em 2017/18 quando a guerra da Síria iniciada em 2011, na primavera árabe, ganhava, infelizmente, mais uma vez destaque no noticiário mostrando a dura jornada das pessoas que foram forçadas a sair de seus lares, e que ao buscar abrigo enfrentavam a resistência dos países desenvolvidos, a rejeição fria dos locais, e a discussão insensível de autoridades para decidir quantos imigrantes poderiam adentrar suas fronteiras. Tudo isso enquanto as pessoas já cansadas padeciam de fome, frio e seguiam em busca de um abrigo. E neste contexto surgiram as primeiras frases da música, com o eu lírico sendo o imigrante dizendo a um local de maneira ofegante: “Vim de lá, de longe. Vim pra cá, por opção não foi não”. Na parte musical, a melodia foi criada a partir da base de um baixo, e a levada da guitarra inspirada no guitarrista Lucio Maia, da Nação Zumbi, porém me faltava conhecimento e vivencia para pensar na parte rítmica e esta canção, meio que profeticamente me levou para participar de um grupo de maracatu da cidade de Santos, o Quiloa, onde tive meus olhos abertos para a profundidade e beleza da cultura das nações de maracatu de Pernambuco e toda história do povo negro, que teve sua migração forçada pela escravidão, e sua religião que teve que ser sincretizada para se manter viva através dos cortejos. Essa imersão me levou a conhecer os dois percussionistas do grupo que trataram de trazer toda a ancestralidade da fonte, completando a parte rítmica da canção, que dá o nome ao primeiro EP da banda e que foi o apito chamador do que veio a ser a banda Fizeram a Elza.

03) “Jardineiro”: Nosso quarto single trata da importância das amizades em momentos nos quais nos encontramos perdidos ou com dificuldades em encontrar motivação para cuidar da nossa vida. Esta obra traz a mistura inusitada e inspiradora do baião com a salsa cubana e traz a rica cultura interiorana de Pernambuco através da sonoridade do pífano e pelo sotaque e interpretação do grande compositor e cantor caruaruense Ortinho, que se soma à sonoridade urbana do grupo. A música foi gravada em Santos e São Paulo, e produzida por Gustavo Souza e Gil Oliveira. A jardinagem, profissão longeva que trata de cuidado e beleza, é esse elemento feminino que traz a força transformadora de alguém que pode parir vida em momentos de dor e angústia, assim como a arte e a música.

04) “Paisagens da Cidade”: Segundo single do grupo, retrata os contrastes do contexto urbano e o choque de realidade nos conhecidos cartões postais quando acontece uma interação quase sempre inoportuna dos “invisíveis” com os “cidadãos de bem”. Toda essa narrativa é acompanhada sonoramente pela produção musical do criativo e competente Gustavo Souza em parceria com Gil que traz a bossa-jazz levada ao som do ijexá propondo o refinamento e contemplação da bela paisagem. As misturas rítmicas populares com guitarras distorcidas e efeitos eletrônicos buscam trazer uma atmosfera de tensão e diversidade. O que pode sair dessa mistura além do questionamento desse status quo? Esse é o convite que a música traz aos ouvintes: sair da bolha que criamos para tornar a vida mais palatável e mudar o foco para o entendimento do processo histórico que até aqui nos trouxe para, quem sabe, fazer um pouco para melhorar essa situação, tal qual disse Ariano Suassuna.

05) “Samba da Inércia”: É um samba bem marcado. Porém, o arranjo começa com uma dissonante combinação do sofisticado piano bossa-jazz do pianista e artista Renato Spinosa com a agressividade da distorção e efeitos da guitarra, representando conflitos internos. O surdo anuncia o ritmo de um coração vazio e cansado, que resiste a qualquer variação de aceleração – a inércia. Chega-se então à quebra dessa inércia com a aceleração do ritmo com a marchinha, marcada com um naipe de metais em pura sintonia trazendo a festa, a celebração de um gozo de firme clarividência. A letra nos conduz então para uma decisão: deixar-se levar por outras forças, manifestações e espíritos, que sempre busca romper a inércia num movimento criativo. Ao sair da inércia, acelerando o ritmo com a marchinha e naipe de metais festivos, podemos enfim fazer de qualquer dia trivial, um alegre carnaval. “Samba da Inércia” é o tipo de música que nos impele a libertar as raízes do nosso mundo interior que nos prendem devagar, cada dia mais, sem que percebamos.

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