texto de Gabriel Pinheiro
Em seu mais recente romance, “Uma tristeza infinita” (Companhia das Letras, 2021), Antônio Xerxenesky nos transporta para a Europa nos anos 50, para dentro de um hospital psiquiátrico. O lugar aposta no tratamento humanizado de seus pacientes, seres que carregam marcas profundas na psique, resultado de traumas da Segunda Guerra Mundial. Mesmo situada em um período histórico muito bem demarcado, a narrativa de Xerxenesky desenvolve um forte diálogo com questões prementes do hoje.
Nicolas Legrand é um psicanalista francês em uma pequena cidade na Suíça. Cercado pelos Alpes e pela brancura ofuscante da neve, o hospital psiquiátrico onde trabalha busca romper com o uso de eletrochoques e outras técnicas agonizantes. Tenta, assim, desenvolver um tratamento humanizado que tem como base o diálogo entre médico e paciente. Xerxenesky cria um retrato vívido do apogeu da psicanálise no pós-guerra e do desenvolvimento dos primeiros medicamentos antipsicóticos. Como, por exemplo, a clorpromazina, sintetizada, inicialmente, para atuar como um anti-histamínico e que acabou se mostrando eficaz no tratamento de pacientes esquizofrênicos.
Seu protagonista acompanha os múltiplos efeitos da Segunda Guerra Mundial nos pacientes, estes de diferentes lados do “front”. Seja o mutismo desesperador de um condecorado “herói” norte-americano ou as visões de um funcionário de uma empresa alemã financiadora do nazismo. Ele lida também com os distúrbios obsessivos-compulsivos de uma mulher que se descobriu envolvida com o desenvolvimento da bomba atômica. Em foco aqui estão o trauma e a culpa: seus resultados devastadores no indivíduo.
O trauma particular que é parte de outro maior, um trauma coletivo, compartilhado. Cada sujeito é um universo próprio, este tão arrasado quanto uma cidade bombardeada por caças da Luftwaffe alemã. Nicolas nos diz que eles não são loucos, “são pessoas normais que viveram coisas demais”.
Um mundo que vive ainda sob o espectro do horror da guerra: os fantasmas dos campos de extermínio, dos vagões abarrotados de gente, dos cogumelos tóxicos sob o céu de Hiroshima e Nagasaki. Quem são os bárbaros? Não são só os inimigos? O choque do horror que também se encontra no seu próprio lado. “Depois de ver a maldade humana expor seu rosto de um jeito tão escancarado, me parece quase impossível retornar a qualquer espécie de normalidade”
Enquanto busca desnudar a mente de seus pacientes, Nicolas precisa lidar e desvendar os seus próprios demônios, que o circulam e permanecem à espreita. Ou seja, os fantasmas da guerra – a fuga e a vida na França sob-ocupação – e os fantasmas das relações familiares (o casamento, o sobrenome e o pai veterano da Primeira Guerra). Acompanhamos o psiquiatra numa espiral de angústia, tentando lidar com sua própria melancolia: como tratar da agonia do outro, antes de cuidar da própria? Em resumo: a tristeza como uma dor física, insuportável.
O autor faz um extenso trabalho de pesquisa sobre a Europa no pós-Guerra e seu processo de desnazificação – a eliminação da influência cultural nazista após a derrota da Alemanha no conflito. Descreve também o intenso florescer científico e da física atômica no período e a história da psicanálise. Nesta investigação de temas tão densos, seu texto não caminha por um tom rígido ou acadêmico, muito pelo contrário: “Uma tristeza infinita” tem uma prosa fluida, daquelas difíceis de largar.
No seu olhar sobre a culpa, é muito engenhoso como o livro desenha um vínculo forte entre este momento nos anos 1950 e o mundo contemporâneo, especialmente o Brasil nestes últimos anos. Um personagem diz que o nazifascismo não foi trabalho de um homem só, seus representantes foram alçados ao poder pelo apoio popular. São muitos os governos eleitos ao redor do globo hoje com discursos nocivos. Contra as minorias, os direitos humanos e a ciência, por exemplo. Como lidar com aqueles que os apoiaram e os elegeram, mesmo com a gravidade explícita de seus discursos antes de ascenderem ao poder?
Antônio Xerxenesky cria em “Uma tristeza infinita” um romance sensível e pungente sobre a depressão, as forças criativas e destrutivas da ciência e os efeitos do horror sobre o indivíduo. Do período narrado até hoje, percebemos como muitas questões permanecem urgentes e o quão pouco parecemos saber sobre a mente humana, um território ainda cercado por mistérios insondáveis.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.