de Ismael Machado
Era a nossa última festinha do ano. E da década. Organizamos com todo o cuidado do mundo. Nas últimas semanas, nas pausas de tudo, a gente se perguntava como ia ser a partir de agora. Colégio novo, segundo grau chegando. Meu pai falava que a ditadura ia cair de podre. Minha mãe ficava avexada quando ele falava essas coisas. Eu nem sabia direito dessa tal ditadura.
O que eu ficava imaginando era como seriam os anos 80. Meus 14 anos. E pensava em Vera. Verinha. Na festa. Em dançar com ela.
O grande dia chegou. O auditório da escola, sem as cadeiras, se tornou um ótimo salão de baile. Todo mundo foi chegando. Eu tinha gravado umas fitas bem legais, de discoteca e música lenta. Já tinha tudo planejado na minha cabeça. Quando Donna Summer, Bee Gees e Sylvester estivessem fazendo todo mundo sacolejar, eu dançaria perto de Verinha. Na sequência das músicas lentas, eu seguraria a mão dela. Pegar na mão era essencial, tinha dito meu primo. Ele era mais velho, devia saber das coisas.
Verinha chegou com Maurício. Dançou com ele quase o tempo todo. Fui perdendo as esperanças. A festa já não tinha mais graça. Troquei a fita. As músicas lentas, todas ali. Selecionadas para Verinha dançar comigo, não com Maurício.
Eu fazia força para não chorar de raiva. Fiquei num canto, enquanto Maurício cochichava alguma coisa e Verinha ria, jogando o pescoço para trás, como ela sempre fazia quando se deliciava com alguma coisa.
A última música lenta já ia começar. Eu conhecia a sequência de cor e salteado. Era ‘Easy’, dos Commodores. Respirei fundo. Momento de ir embora.
– Dança comigo?
Júlia, a Julica, sorria. Devo ter feito a maior cara de bobo. Ela repetiu o convite. Tomou minha mão e me levou até o centro do salão no exato momento em que o pianão do Lionel Ritchie começou. Naquela noite, em pouco mais de quatro minutos de uma canção, minha dor de cotovelo se transformou em nova paixão. Afinal, depois do primeiro beijo de minha vida, eu sabia que ficaria ‘tranquilo como as manhãs de domingo’.
– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.