entrevista por Paulo Pontes
Filippe Dias transita entre o vintage, com sonoridade dos anos 60 e 70, e o moderno, incorporando diferentes influências para se guiar por ambientes que até então ele não havia explorado. Em “DIAS” (2022), seu segundo disco, ele nos mostra o quanto é plural na execução dos instrumentos e na construção das composições. O ponto de partida é o blues, mas, diferente de seu lançamento anterior, “Borderliner” (2016), neste novo trabalho o guitarrista segue uma linha mais conceitual e diversificada, tanto nas composições quanto na musicalidade, que resgata referências que passam pelo rock, blues, neo-soul, R&B, folk e MPB. Tudo isso ao longo de 11 faixas autorais em que tais nuances sonoras são inseridas para dar liga ao desenvolvimento narrativo do disco.
O principal objetivo de Filippe Dias é que, ao escutar “DIAS”, o ouvinte tenha a sensação de percurso, saindo do ponto inicial até a chegada para o recomeço de outra história que de alguma forma pode terminar. Conforme as faixas vão passando, fica cada vez mais perceptível que se trata de estágios distintos de uma mesma história. “Hoje olho com distanciamento e vejo que a concepção desse disco foi um processo muito natural pra mim, embora trabalhoso e intrincado”, analisa o músico. “DIAS” foi produzido, gravado e mixado pelo conceituado Amleto Barboni — que também assina os arranjos orquestrais —, no Mosh Studios, em São Paulo, e masterizado por Brian Lucey (Doyle Bramhall II, The Black Keys, e Arctic Monkeys), em Los Angeles.
“Nada mais adequado, em um disco que fala do tempo, que o tempo vivido de maneira tão intensa, durante essa espera que foi o período da pandemia, se traduzisse em arte”, diz Filippe, praticamente resumindo um disco que começou a ser gravado dois meses antes da pandemia (um dia antes do lockdown, o guitarrista estava em estúdio) e necessitou de uma pausa forçada devido a todas as recomendações sanitárias e cuidados pandêmicos (“Quando tive Covid, eu só conseguia pensar no disco. Às vezes me via pensando ‘não posso morrer, tenho um disco pra finalizar’”, relembra). Realmente, o tempo deu todo o direcionamento necessário para que Filippe estruturasse as bases do que se tornou o álbum. Leia abaixo a entrevista completa (que inclusive traz um “spoiler” sobre o próximo disco do músico):
Filippe, diferentemente do seu disco de estreia, “Borderliner” (2016), “DIAS” (2022) tem uma pegada mais conceitual, com conexões entre cada canção. Como surgiu essa proposta para o álbum?
Essa proposta começou como algo inconsciente. Quando comecei a compor para o disco, vi que, sem perceber, estava fazendo músicas que estavam dentro de um mesmo universo temático, que estavam meio que falando da mesma história. Ao mesmo tempo, comecei a experimentar com a ideia de revisitar determinados temas melódicos em diferentes músicas, e vi que não só funcionava como tornou o processo muito mais interessante e significativo. A partir daí, comecei a, conscientemente, fazer as músicas dentro de uma mesma narrativa de forma que houvesse uma continuidade, e que o tempo permeasse essa narrativa como conceito. Isso me estimulou bastante porque trouxe a perspectiva de desenvolver uma experiência musical muito mais rica. Embora tenha sido de antemão um processo desafiador, foi algo que fez bastante sentido pra mim no aspecto criativo, pois muitos dos meus álbuns favoritos são conceituais. Um em especial, “Smile”, dos Beach Boys, foi uma inspiração bastante determinante.
O amálgama sonoro do disco é muito forte, com referências que vão do rock à MPB, passando por R&B, blues e folk… Essa riqueza de estilos foi proposital para conectar com cada letra e suas nuances?
Foi proposital na medida em que eu quis que cada influência minha se fizesse presente de forma a enriquecer a experiência toda. O blues é a base do disco todo, como é a base da minha identidade musical, mas quando começo a compor uma música ela acaba incorporando muito de outras influências, e o blues acaba virando mais a alma do trabalho do que o gênero da coisa em si. Acabou que eu também trouxe essa amálgama para o conceito, para mostrar como a passagem do tempo influenciou no próprio processo do disco. Ele começa mais bluesy e vai se transformando, o que acaba sendo também um retrato da minha transformação como artista. O disco aponta para um futuro menos bluesy e mais plural musicalmente, mas sem jamais deixar o blues de lado.
O quanto das letras de “DIAS” está diretamente ligado às suas experiências pessoais?
Eu diria que 99%. Eu escrevi de forma que todo mundo se identificasse com o que eu estou cantando ali; rupturas, encontros, reencontros e a passagem do tempo dentro disso tudo são coisas universais, todo mundo passa por isso. A intensidade das coisas que eu vivi nos últimos anos relacionadas a essas questões fatalmente refletiu muito na minha produção artística. Tendo isso em vista, posso dizer que fazer um disco conceitual se tornou algo quase inevitável. Hoje olho com distanciamento e vejo que a concepção desse disco foi um processo muito natural pra mim, embora trabalhoso e intrincado.
Existe uma relação entre o disco e a fotografia, no sentido conceitual de servir como um retrato de um momento, de um tempo. Essa forma de arte também é uma de suas paixões?
Sim, é uma grande paixão. O cinema em particular é algo muito presente na minha vida, algo com que tenho uma ligação muito forte. Considero que tanto a carga emocional do cinema como as trilhas sonoras foram influências muito fortes nesse trabalho, particularmente na parte orquestral do disco.
O disco foi masterizado por Brian Lucey, que já trabalhou, entre outros, em dois discos que você já comentou gostar muito: Brothers, do The Black Keys, e Rich Man, do Doyle Bramhall II. Fale um pouco sobre como foi realizar esse trabalho com ele.
Entrei em contato com o Brian ainda em 2019, pois ele masterizou estes álbuns que você mencionou que são dois dos meus favoritos e uma grande influência em “DIAS”. Estava buscando esse padrão de som para a master e ele prontamente se mostrou disponível. Tive a oportunidade de explicar as nuances sonoras que eu queria para cada música; ao mesmo tempo, dei a ele liberdade para que colocasse seu próprio tempero na masterização, queria que ele tivesse essa liberdade artística. O resultado não poderia ter sido melhor.
As gravações iniciaram dois meses antes do início da pandemia (inclusive, um dia antes do lockdown você chegou a realizar gravações em estúdio). Entretanto, as composições começaram há cerca de 5 anos. Nesse meio tempo, vocês ficaram 1 ano e 10 meses fora do estúdio, devido à situação causada pela covid-19. O que mudou de lá para cá em um disco que, até então, estava praticamente pronto na sua cabeça?
Foi uma época muito turbulenta, emocionalmente intensa, e muitas coisas que inspiraram a história do disco mudaram; houve rupturas e tive que ressignificar algumas coisas na minha vida, então eu quis que o final do disco mudasse também pra refletir essas mudanças e para traduzir em música toda essa intensidade que se fez presente nesse período. Nada mais adequado, em um disco que fala do tempo, que o tempo vivido de maneira tão intensa durante essa espera que foi o período da pandemia se traduzisse em arte. Foi o que fiz. Daí surgiu a ideia do final orquestral e a conexão entre as três últimas músicas.
Você diria que o “silêncio”, esse período de isolamento, foi primordial para que o som pudesse transcender a dinâmica que você havia desenhado anteriormente?
Sem dúvida. Tive muito tempo sozinho em casa na companhia apenas das minhas ideias musicais. Foi um período de contemplação da minha música que me permitiu muitos entendimentos e amadurecimentos dentro da música. Tudo que era grande nesse disco eu quis que ficasse maior.
Em algum momento você chegou a pensar que “DIAS” não seria finalizado da maneira como você desejava?
Tive esse medo sim, principalmente no começo da pandemia, ali nos primeiros 4 meses, em que tudo estava tão incerto. Ao mesmo tempo, eu estava disposto a falir pra que o disco nascesse do jeito que eu queria. Era impensável pra mim que não ficasse do jeito que eu imaginei. É um trabalho muito pessoal. E teve também o medo de ficar doente e não completar o trabalho. Quando tive Covid, eu só conseguia pensar no disco. Às vezes me via pensando “não posso morrer, tenho um disco pra finalizar.”
As duas últimas músicas do álbum, “Singularidade” e “Barquinho”, ambas cantadas em português, apesar de se conectarem com o restante do disco, seguem uma proposta sonora diferente. A escolha por encerrar “Dias” com elas pode ser encarada como uma sugestão para futuras composições e direcionamento musical?
Pode sim. É um desejo meu trazer algo de mais experimental e brasileiro em termos de composição para o próximo trabalho e fundamentalmente em português, mas mantendo a sonoridade gringa. Estou deixando para trás essa coisa de compor em inglês e achei adequado o disco fechar em português como parte dessa transformação. O próximo disco já tem nome: “Dias Depois”, e será uma continuidade de “Dias”.
O final de “DIAS” tem um ar épico, potencializado por um lindo arranjo orquestral escrito pelo Amleto Barboni, que também produziu, gravou e mixou o álbum. Como foi essa troca para ele poder traduzir as emoções e os sentimentos que você queria transmitir no encerramento do disco?
O Amleto foi um grande parceiro nesse trabalho porque ele acreditou em absolutamente tudo que eu quis fazer nesse disco. Nenhuma ideia que eu tive foi ousada demais pra ele. Acho que o Amleto é a única pessoa que conheço que tem o mesmo amor e respeito pela música que eu, e por isso que foi tão maravilhoso trabalharmos juntos, fora o fato de ser um músico genial e ter um ouvido absurdo para timbres. Nosso tempo junto no estúdio é algo que vou levar pra sempre. Quando eu trouxe a ideia da orquestra os olhos dele brilharam, porque ele é um baita arranjador e compartilha de muitas das influências que eu queria trazer, como Ennio Morricone, Brahms. Então eu expliquei pra ele que eu queria que soasse de uma determinada maneira, e que a orquestra revisitasse determinados temas musicais que já tinham aparecido em músicas anteriores, temas que eu especifiquei pra ele. Ele ficou 2 ou 3 meses fazendo um primeiro arranjo. Quando escutei, falei que não era bem aquilo, que o que eu imaginava na minha cabeça era outra coisa. Expliquei melhor o que eu imaginava – como sou autodidata, não sei falar linguagem de músico, só sei falar de emoções e sentimentos, então falei o que queria sentir. Expliquei cada emoção e a história que eu queria que a orquestra contasse, e passei algumas referências, e ele trouxe as dele também. Quando ele me mandou o segundo arranjo, eu escutei e chorei, e eu sabia que era aquilo, porque parecia que ele tinha entrado na minha cabeça e escutado o que estava tocando lá. Estava perfeito. Foi emocionante.
Após 5 anos, desde o início das composições até agora, com “DIAS” no mercado, qual é o balanço que você faz? Quais sentimentos você tem agora com a recepção do álbum?
“DIAS” excedeu todas as minhas expectativas enquanto obra musical. Nasceu muito maior do que eu tinha concebido lá atrás. Então, artisticamente, me traz um orgulho muito grande. Acho que não dava pra ter ficado melhor, e acho que é um álbum que vai ficar, sabe? Vai marcar quem escutar. A recepção tem sido ótima, muita gente chegando até mim e falando o que eu queria escutar: que é um som que nem parece que foi feito no Brasil, e que choraram escutando o disco. O desafio agora é fazer chegar em mais e mais pessoas. Ser independente não é fácil, e o artista hoje vive uma disputa muito grande pela atenção das pessoas, que é cada vez mais desviada para as coisas mais banais. É triste que o banal roube o espaço da arte, mas a realidade que a gente vive é isso, e a gente tem que encontrar novos caminhos. Ainda assim, acho que a arte feita com amor sempre vai encontrar o caminho para o coração das pessoas.
– Paulo Pontes é colaborador do Whiplash, assina a Kontratak Kultural e escreve de rock, hard rock e metal no Scream & Yell. É autor do livro “A Arte de Narrar Vidas: histórias além dos biografados“. A foto que abre o texto é de Filipe Nevares.