Texto por Victor de Almeida
SAIBA COMO FOI O DIA 1 e o DIA 2 DO FESTIVAL
Quando o Scream & Yell publicou uma lista prévia de artistas canadenses para conhecer que estavam dentro da programação do Osheaga 2022, falamos sobre a importância dos headliners na configuração atual do mercado e produção de festivais de música ao redor do mundo. No domingo, terceiro e último dia desta edição, era notável a força que uma atração no auge da popularidade tem. Visivelmente mais cheio, o festival tinha um assunto: Dua Lipa.
A cantora inglesa, que já havia se apresentado no Bell Centre (principal arena de Montreal) em um show concorrido e esgotado na segunda-feira anterior e causado bastante agito ao postar fotos em alguns cartões postais da cidade, retornou aos palcos no final de semana para apresentar o show da sua extensa “Future Nostalgia Tour”. Mas, falando em festivais, headliners disputados e shows bastante antecipados, vale ressaltar que existem níveis.
Segundo números preliminares da organização do evento, a edição de 2022 contabilizava uma projeção de público na casa das 120 mil pessoas distribuídas nas três noites. Para efeito de comparação, o Lollapalooza Chicago que aconteceu esse final de semana (e dividiu muitas atrações com o Osheaga, incluindo Dua Lipa) reuniu 100 mil pessoas por dia (aproximadamente o mesmo número do Lolla Brasil 2022). O esgotado Primavera Sound em Barcelona, onde a inglesa também se apresentou, tinha um público estimado em 76 mil pessoas por dia.
Para o público brasileiro que tem o privilégio de viajar para festivais de música esses números são consideráveis, uma vez que colocam o Osheaga como um festival grande, mas que em comparação às grandes marcas, ainda possa ser visto como um evento de menor porte. O que pode significar um pouco mais de qualidade de visão ou de experiência para o público. E foi isso que tivemos como saldo no final do evento.
Para chegar ao show de Dua Lipa, nosso dia começou no Scène de La Valée com o ótimo show da cantora Mahalia. É inegável o carisma que a inglesa tem, carregando o show numa mistura de canções do seu novo trabalho, o incrível “Letter To Ur Ex” (2022), lavagem de roupa suja e contação de causos da sua terapia, o que dá contexto para boa parte das composições que a cantora apresentou. A leveza como Mahalia falava de casos com ex-namorados (a história por trás de “I Wish I Missed My Ex”), relacionamentos tóxicos (que baseou “What Simon Says”) e a complexa relação com a ex de seu atual companheiro (para quem escreveu o hit “Letter To Ur Ex” a pedido de sua psicóloga) impressiona. Sem contar que sua banda, que conta ainda com Ross Chapman (Frank Ocean, Ed O’Brien e Camila Cabello) é puro ouro. Para um começo de tarde, em um festival com um público ainda chegando, não tem como acertar mais. Certamente, alguém que está a caminho de palcos ainda maiores.
Uma volta no parque e, uma hora depois, voltamos para o mesmo lugar que Mahalia havia se apresentado para o show de Tinashe, que, quando entrou em cena, deve ter se surpreendido com a grande quantidade de pessoas que descia em direção ao seu palco – dentre os shows que acompanhei, Tinashe contou com uma das maiores audiências dos Scène Verte e De La Valée. O que veríamos é uma performance de uma artista que, além das colaborações com estrelas do mais alto panteão do pop como Britney Spears, Calvin Harris e, até o ícone local, Kaytranada, é dona de canções como “2 On”, “X” e “Throw A Fit”. Musicalmente, a estadunidense transita num território pop marcado pelo rap, R&B e soul. Em termos de performance, a presença de dançarinos, coreografia impactante, cuidado com figurino e parte visual de telão mostram que o show de Tinashe também mora nos detalhes.
Após o término da apresentação, subimos a ladeira e entramos no meio das árvores mais uma vez para acompanhar um dos shows que mais esperei para ver no fim de semana: o da cantora québécoise Safia Nolin. Visivelmente introspectiva, a compositora parecia à vontade no palco com sua banda para apresentar o seu mais recente álbum, “SEUM” (2021), para um público pequeno, porém conhecedor de suas músicas. Um dos shows mais interessantes que vi no Scène des Arbres, o “queer noise” de Nolin soou alto em “PLS” e “Personne”, ambas as músicas pontos altos do show.
De volta ao Scène De La Valée, chegamos a ponto de ver Lucy Dacus entrar em cena para tocar o lindo “Home Video”, 11º disco internacional mais votado do Melhores do Ano Scream & Yell 2021. Com imagens da infância da cantora e uma estética VHS no telão, Dacus apresentou canções que falam sobre amadurecimento, amizades e amor queer. No palco, a cantora é impecável, o rock, aqui com contornos pop, mas nem por isso menos barulhento ou alto, serve como base para um lirismo escancaradamente confessional.
Foi muito bonito ver uma audiência reduzida, porém extremamente jovem para ver Lucy Dacus em ação. Foi difícil segurar a emoção quando uma menina bem nova apareceu no telão na grade segurando um cartaz: “Lucy, eu viajei nove horas para estar aqui”. A menina cantava todas as músicas e, ainda no cartaz, pedia “Night Shift”, música presente no álbum “Historian” (2018). Daqueles raros momentos de festivais, que todo mundo acusou o golpe em silêncio. Lindo de testemunhar.
De volta ao palco das árvores, pela última vez, vimos uma performance agressiva e divertida da banda Wet Leg. Sim, o hype é gigante e o palco estava lotado para ver o show da dupla da Ilha de Wight em formato quarteto no palco. Afinal de contas, além de ser figurinha batida em quase todos os festivais grandes mundo a fora, ter session gravada para o – agora gigante – Tiny Desk Concerts e ter cover gravado por Harry Styles, o maravilhoso disco homônimo (2022) justifica grande parte do frisson.
O disco das Wet Leg foi tocado quase na íntegra soa ainda mais intenso e urgente no palco. Como quem domina a arte de tocar em festivais, a dupla já começou partindo com tudo, abrindo com “Being In Love” e seguindo com o hit “Wet Dream”. Afinal de contas, antes do show acabar, parte da plateia migraria para o show de Dua Lipa ou, ainda, dos Idles.
A migração para o Scène De La Rivière tinha um clima de expectativa. Muita gente se deslocando em direção ao show de Dua Lipa enquanto Machine Gun Kelly tocava no palco ao lado, o cantor ainda teria seu áudio cortado por passar em mais de 10 minutos do tempo previsto para sua apresentação. Enquanto, sorria com ironia quando percebeu o que o ocorreu, rapidamente o público começa a gritar pela cantora inglesa. Esse é o poder de uma headliner desse porte.
Quanto ao show, não há dúvidas sobre o caminhão de hits que Dua Lipa tem para descarregar numa apresentação de 1h30 de duração. O espetáculo é ensaiado nos mínimos detalhes com coreografias arrojadas por parte dos dançarinos que, embora se esforce para acompanhar, Dua entrega um show com o melhor que o dinheiro pode pagar hoje em dia. Super produção musical, visual e de construção de espetáculo. Mas, gostaria de desviar um pouco para falar sobre o que esse show parece representar.
Se, quando falamos sobre o Arcade Fire, headliner da sexta-feira, falamos sobre a importância da localidade ou território da música ao vivo, queria chamar atenção para a temporalidade da música nesse show da Dua Lipa. Não tem como, a música é fruto do seu tempo. Lançado dia 27 de março de 2020, “Future Nostalgia” saiu num contexto da deflagração da emergência sanitária da Covid-19, o status de pandemia e o contexto de lockdown que o mundo viveu nos últimos dois anos.
Enquanto nos foi recomendado ficar em casa, o distanciamento social e as casas de show fecharam, Dua Lipa chegou com uma narrativa pop baseada no escapismo e na celebração da vida na pista de dança. A livestream feita pela cantora em novembro de 2020, “Studio 2054”, realça esse escapismo e serve de moldura para outras narrativas em uma pista de dança baseada no famoso clube Studio 54, boate de Nova York. Ou ainda a sessão gravada para o Tiny Desk Concerts “em casa”, uma das mais vistas da franquia.
Digo tudo isso, pois, acredito, que em última instância é o que o show de Dua Lipa mais entrega: escapismo. Uma marca de um tempo em que essas narrativas do pop nos permitiram imaginar outros presentes e futuros. Apesar de ser um show que não dá espaço para discursos políticos e problematizações, com a exceção da bandeira do orgulho LGBTQIA+ tremulada ao final da apresentação.
Mas se é escapismo que Dua Lipa entrega, me parece que foi exatamente o que a audiência quis receber. Ver o público realizando, em coletividade, o que se sonhou durante dias mais duros do isolamento social, é emocionante. Ouvir ao vivo “Don’t Start Now” e “Levitating”, músicas que extrapolaram (e muito a barreira) de um bilhão de streams, apenas no Spotify, com milhares de pessoas cantando ao seu redor, me deu a sensação de que, sim, outros presentes não são apenas possíveis, como desejáveis.
SAIBA COMO FOI O DIA 1 e o DIA 2 DO FESTIVAL
– Victor de Almeida (@Victoranpires) é jornalista, Doutor em Comunicação pela UFPE e professor da Universidade Federal de Alagoas. Autor dos livros “Além do Pós-Rock” (2015) e “Circuitos Urbanos e Palcos Midiáticos” (2017).