Texto por Victor de Almeida
SAIBA COMO FOI O DIA 2 e o DIA 3 DO FESTIVAL
Em 2022, o Osheaga Festival, principal evento de música pop e um marco no calendário de verão de Montreal, completa 15 anos. Não é apenas um momento para celebrar a música, mas um evento de grande antecipação local. Se pensarmos que os duros invernos canadenses (onde temperaturas podem chegar aos 30 graus negativos) praticamente inviabilizam as atividades outdoor durante quase um terço do ano e os impactos da pandemia, que trancou em casa boa parte do país, durante os últimos dois anos, dá para se ter uma noção do lugar que esta edição ocupava no horizonte de expectativa do público.
Acho que um bom ponto de partida para se pensar o Osheaga é partir da premissa que “festival não é tudo igual”. Assim, como outros festivais que o Scream & Yell já teve a oportunidade para cobrir, como a versão portuguesa do Primavera Sound e o holandês Best Kept Secret, por exemplo. Claro, é importante reconhecer a importância que as grandes marcas – Coachella, Lollapalooza, Primavera Sound – tem no mercado da música ao vivo e entre os fãs, mas existem alternativas – e cidades incríveis – para se descobrir e consumir shows de grandes e pequenos artistas. E quando se fala em Osheaga, não tem como negar o protagonismo que Montreal tem.
Montreal é uma cidade de festivais. No mesmo mês do Osheaga, a programação da cidade contou com a volta do icônico Festival de Jazz da cidade (presente no Guiness Book como o maior festival de Jazz do mundo) e o evento internacional Nuits d’Afrique, todos com programação gratuita no centro do Quartier des Spetacles. É uma chance de ver artistas como The Roots, Femi Kute e Kamasi Washignton na rua, o que já mostra muito do caldeirão cultural que Montreal se transforma.
Outro ponto a ser reconhecido é como o Parc Jean-Drapeau é um local privilegiado para grandes eventos. Localizado apenas a quinze minutos do centro da cidade, e acessível via metrô, bicicleta e até via barco, o parque faz parte de um complexo enorme com área preservada, parques aquáticos, áreas para prática de atividade física como canoagem, esportes de piscina e escalada, além da emblemática Biosphère, uma espécie de museu dedicado ao meio ambiente e parte marcante do cenário do Osheaga.
Falando especificamente do festival, é impossível não perceber como as programações dos grandes eventos ganharam outros contornos no pós-pandemia. Claro, que os cancelamentos não foram inventados na pandemia, mas é interessante notar como os line-ups pós-Covid são “vivos”. Cancelamentos e substituições em cima da hora são cada vez mais comuns. O primeiro dia do Osheaga já começou com a notícia do cancelamento do show das inglesas do Crawlers.
Nosso dia 01 inicia com o show do, também inglês, duo King Hannah (em formato quarteto no palco), que estão na América do Norte divulgando o ótimo “I’m Not Sorry, I Was Just Being Me” (2022). A apresentação marcada para o meio da tarde, no Scène des Arbres, um palco montado em uma parte de vegetação mais fechada, quase isolada das outras duas áreas grandes do evento, tinha um clima de picnic e familiar, com muitas crianças e jovens pais na plateia. A dupla de Liverpool traz à mesa composições de mesclam melodias e o drama de compositoras como Sharon Van Etten, Angel Olsen e Cat Power (às quais, acredito, Hannah Merrick deve muito o seu jeito de cantar), com uma certo pop mais roqueiro de nomes como Yo La Tengo e Kurt Vile. “Crème Brûlée”, lançada em EP em 2020, ao vivo foi um ponto alto.
Saindo do meio das árvores, partimos em direção ao Scène Verte, onde ainda pegamos o show de Jacob Banks. Natural da Nigéria, cresceu em Londres onde foi apresentado ao R&B e ao soul. No palco, o que temos é uma mistura desses dois gêneros, mas com muitas referências ao rock mais alternativo, ao gospel de coral, um pop de graves fortes com forte presença de sintetizadores e até música eletrônica, principalmente pelos timbres de drum machines que servem como pano de fundo para a performance vocal energética de Banks. Se festival ainda é sobre surpresas, essa foi a minha.
A dinâmica do Osheaga conta com seis palcos, quatro deles dispostos lado a lado. Dois logo na entrada, Scène de la Rivière e Scène de la Montagne, onde se apresentam as atrações mais populares, e dois mais para dentro do parque, o já mencionado Scène Verte e o Scène de la Vallée. Além desses, o festival ainda conta com Scène de L’Île, dedicado à música eletrônica, e o Scène des Arbres. A música é praticamente ininterrupta nesses palcos dispostos em dupla. Foi Jacob Banks se despedir de um lado, que no outro começou a Local Natives.
É curioso ver um show do Local Natives em 2022. A banda visivelmente parece mais velha fazendo um indie pop good vibes que em diversos momentos soa datado, mas que ainda parece funcionar em festivais. Com um setlist com muitas músicas novas, o que de fato é sentido pela animação do público, a banda de Los Angeles cumpriu uma função de atrair um público jovem para o outro lado do Parc Jean-Drapeau e preparou o terreno para um dos shows do dia, o do grupo australiano Parcels.
O que eu esperava do quinteto de Byron Bay era basicamente uma resposta australiana aos estadunidenses Vulfpeck: músicos brancos, grooves que remetessem aos álbuns clássicos dos anos 60 e 70, além de uma série de números instrumentais de influencia disco. De fato, foi isso que vimos, mas por outro, me pareceu muito claro como uma chave para se compreender o som do Parcels ao vivo passa pelos gêneros electro pop e até – quem diria – EDM. A banda soa muito bem no palco, não tem intervalo do começo ao fim, as trocas de músicas parecem mashups ou mesmo um DJ fazendo uso de um controle de fader na pick-up. É necessário enaltecer o trabalho na guitarra de Jules Crommelin, não apenas pela técnica, mas principalmente pelo controle meticuloso de pedais de modulação ao vivo. O uso e o controle ao vivo de pedais de phaser fazem a guitarra soar como se processada por um DJ. No fim, a citação improvável de “I Follow Rivers”, da cantora sueca Lykke Li, trouxe ainda mais gente para a pista.
Após o fim do show do Parcels, hora de atravessar o parque mais uma vez para chegar aos palcos principais. É difícil escolher entre os shows de Turnstile e Charli XCX, afinal de contas, é possível ser fã de punk e hardcore e pop ao mesmo tempo. Mas essa parece ter sido uma das linhas da curadoria desse ano que, além de provocar essa escolha no público, colocou Dua Lipa e Idles dividindo o mesmo horário na programação. Mas ao chegar ao Scène de la Montagne, o que se via era que Charli XCX era uma das artistas mais aguardadas pelo público do festival. Após o lançamento de “Crash” (2022), é notável que a cantora britânica subiu alguns degraus como popstar. Com um palco formado por pilares brancos de influência romana e acompanhada por dançarinos durante todo show, o show apresentou como espinha dorsal o repertório de seu último disco com destaque para “Yuck”, “Beg For You” e o encerramento com a excelente “Good Ones”.
Em sequência, veio o trio estadunidense Yeah Yeah Yeahs. Com mais de 20 anos de estrada e uma carreira que ajudou a definir o rock de Nova York na primeira década dos anos 2000, não dá para negar a importância e o peso da discografia da banda de Karen O. Mas, os pedidos por “Heads Will Roll” depois das canções, principalmente das faixas inéditas que integrarão o novo álbum (no set list de 11 canções, três novas do vindouro ” Cool It Down”, que só sai em setembro, marcaram presença: “Spitting Off the Edge of the World”, “Wolf” e “Burning”), dava a impressão que se tratava de uma banda “nova” ou de um público que se acostumou demais a ouvir playlists. “Nós tocaremos ‘Heads Will Roll’, vocês precisam ser pacientes”, falou a vocalista no meio do show. A performance incendiária de Karen O é um show a parte e mostra que a banda segue em forma e pronta para os grandes palcos. “Heads Will Roll”, claro, fechou o set, precedida por “Maps” e “Gold Lion”.
Após o fim do show do Yeah Yeah Yeahs, alguns minutos de silêncio. O palco ao lado já estava pronto e o tempo de espera serviu para gente que vinha dos outros palcos conseguirem chegar para ver a grande atração do dia: os heróis locais, Arcade Fire. É importante notar que a banda não estava originalmente na programação, e foi escalada após a trágica morte de Taylor Hawkins e o cancelamento da turnê do Foo Fighters. O que o Osheaga viu foi a primeira apresentação do novo álbum, “WE”, na cidade que formou a banda.
Primeiro, vale reconhecer demais como essas músicas ganham profundidade ao vivo. Faixas como “Age of Anxiety II (Rabbit Hole)”, “The Lightning II” e “Unconditional I (Lookout Kid)” poderiam facilmente figurar entre as melhores da banda em show. Sempre achei o Arcade Fire uma banda com uma entrega e vigor de banda punk, tamanha energia dos membros tocando guitarra, baixo e bateria, ou mesmo, piano, violino ou, apenas, uma pandeirola. As trocas de instrumentos de todos os músicos, mas principalmente do casal Régine Chassagne e Win Butler, são quase um espetáculo a parte.
Mas não dá para fugir, ver um show do Arcade Fire em Montreal traz uma energia diferente. Não dá para ignorar a importância que o território tem para a música. Ouvir Butler falando de quando conheceu parte da banda que viraria a se transformar no Arcade Fire e trabalhava em “uma sanduicheria na St-Viateur por alguns dólares a hora”, quando compuseram uma das primeiras músicas juntos, e surge “No Cars Go”. Ou, ainda, ouvir as faixas presentes em “Funeral” (2004), disco gravado a 20 minutos dali no, hoje, famoso Hotel2Tango (estúdio capitaneado por integrantes do Godspeed You! Black Emperror, Jerusalem In My Heart e Howard Bilerman, que produziu e tocou bateria em “Funeral”).
Não me parece coincidência, perceber como tantas músicas do Arcade Fire fazem alusão ou algum tipo de referência a uma ideia de vizinhança (como “Neighborhood #1 (Tunnels)”), bairros ou subúrbios (aqui “The Suburbs” ainda apareceu como uma homenagem da banda a Taylor Hawkins). Com a saída de Will Butler, irmão do vocalista, da banda, o Arcade Fire incorporou em definitivo a presença de Dan Boeckner no grupo, mais conhecido como membro do Wolf Parade, outra referência da cena de Montreal. Em homenagem, executaram “This Heart’s on Fire” com Boeckner nos vocais.
No fim, após 20 canções retiradas de todos os álbuns da banda (de “Ready To Start” a “Reflektor” passando por “Afterlife”, com citação de “Tempetation”, do New Order, e “Everything Now” e seis canções do “WE”) e o encerramento clássico do show com o hit “Wake Up”, ver o público saindo do festival entoando a vocalização emblemática da canção, faz pensar sobre o poder da música ao vivo e as emoções que compartilhamos através dos shows, mas também sobre como essa música pertence a um lugar. E esse lugar que é hoje é Montreal entrou no mapa de muita gente, inclusive no meu, por conta dessa banda.
SAIBA COMO FOI O DIA 2 e o DIA 3 DO FESTIVAL
– Victor de Almeida (@Victoranpires) é jornalista, Doutor em Comunicação pela UFPE e professor da Universidade Federal de Alagoas. Autor dos livros “Além do Pós-Rock” (2015) e “Circuitos Urbanos e Palcos Midiáticos” (2017).