entrevista por Bruno Capelas
Num passado não tão distante, quando era possível sair na rua sem máscara, a banda fluminense gorduratrans gravava seus discos em casa. Foram dois – “Repertório Infindável de Dolorosas Piadas”, de 2015, e “Paroxismos”, de 2017 – álbuns inteiramente feitos num quarto em Mesquita, município da Baixada Fluminense, na divisa com a Zona Oeste carioca. Mas, depois dos dois anos em que mal pudemos sair de casa, o gorduratrans resolveu ir ao estúdio e se juntar com vários colaboradores para dar vida ao seu primeiro disco em cinco temporadas: “zera” (2022), lançado no início de junho. Mais do que só uma continuação de carreira, o disco traz novas fronteiras para o duo de noise rock, criado pelo guitarrista Felipe Aguiar e o baterista Luiz Felipe Marinho.
“É um recomeço da nossa relação com a música. Eu demorei muito para me enxergar como um músico de verdade, víamos a música como um hobby. Agora é diferente”, explica Aguiar sobre o trabalho, que tem produção de Roberto Kramer e Fernando Dotta, sócio da Balaclava Records. Além de produzir, Dotta tocou baixo no disco, uma novidade para a sonoridade do gorduratrans. “Chegamos à conclusão de que queríamos gravar o disco da melhor forma que ele pudesse ser, e depois íamos pensar no ao vivo”, explica o vocalista. Não foi só: gravado entre agosto e setembro de 2021, “zera” também marca a chegada de beats, programação e uma série de evoluções para o conjunto.
A inovação sonora também trouxe novidades para a formação do grupo. Desde janeiro, o gorduratrans agora é um quarteto, completado por dois amigos de outras bandas próximas: o guitarrista Pedro Simião (da Salvador) e o baixista Gabriel Otero (da Tom Gangue). “Nossos trabalhos foram só sempre eu e o Luiz, e é muito legal ter as pessoas ao redor. O Pedro e o Gabriel só entraram na banda porque gravamos o ‘zera’ sem nos limitarmos”, ressalta Aguiar, que é engenheiro mecânico de formação e trabalha em marketing nas horas “não vagas”. Já Luiz é jornalista: “faço frilas, roteiro, qualquer trabalho de texto”, diz o baterista, em um retrato honesto da situação de uma banda independente no Brasil.
A nova formação traz dificuldades e benefícios. “Fica mais difícil de rodar com mais pessoas. Eu e Felipe fizemos turnês na raça no Nordeste, só rodando os dois. Ter um quarteto deixa as coisas mais difíceis, mas tocar com o Pedro e o Gabriel tem sido fantástico, uma redescoberta de como é estar numa banda”, diz Luiz. Mais do que só tocar as canções de “zera” ao vivo, os novos integrantes também ajudaram o gorduratrans a criar novos arranjos para as músicas antigas – e os dois fundadores da banda deixam claro que um próximo trabalho não deve demorar os mesmos cinco anos para sair.
A seguir, você confere a conversa do Scream & Yell com o gorduratrans num papo feito por chamada de vídeo, conexão ABC-Mesquita-Magalhães Bastos. “É um disco que mostra a nossa condição de homens periféricos”, ressalta Felipe, falando sobre canções como “nem sempre foi assim” (que mostra a evolução da Zona Oeste do Rio) e “arão” (sim, uma homenagem ao versátil jogador que acaba de deixar o time do Flamengo). Pode parecer discurso, mas é mais que isso – uma banda do Rio de Janeiro que está longe, bem longe, das novelas de Manoel Carlos. “As primeiras vezes que eu fui para a Zona Sul, eu já devia ter uns 15, 16 anos. Andando na praia em Copacabana, eu era um turista, me sentia completamente estrangeiro.” Com a palavra, o gorduratrans.
“zera” é o primeiro disco do gorduratrans em cinco anos. Como foi o processo de criar esse trabalho?
Felipe Aguiar: Foi um período que a gente esteve muito parado, até mesmo antes da pandemia já estávamos parados. Lançamos o “Paroxismos” em 2017, fizemos uma série de shows, uma turnê de um mês rodando o País, alguns festivais… festivais no Nordeste, tocamos em Brasília, Goiânia…
(interrompe) Turnê de um mês significa tirar férias do trabalho e sair rodando, né?
Felipe: Exatamente isso. Viajei no dia seguinte que eu tirei férias e voltei no dia anterior ao retorno!
O que vocês fazem, nas horas “não vagas”?
Felipe: Sou engenheiro mecânico e trabalho numa empresa de lubrificantes automotivos. Já fui da área técnica, mas hoje estou no marketing.
Luiz Felipe Marinho: Eu sou jornalista de formação e faço uns frilas de jornalismo, redes sociais, qualquer coisinha de texto, estamos por aí.
Mas desculpa, interrompi vocês. Estávamos falando de 2017…
Felipe: Então, fizemos a turnê em 2017, em 2018 fizemos alguns festivais, como o Bananada. E aí aconteceram várias coisas na nossa vida, impactando diretamente o nosso trabalho. Os nossos discos são muito autorreferentes, a gente falando da gente mesmo, é algo que se confunde. É até estranho quando penso em pessoas que tem várias bandas, projetos paralelos… não é o nosso caso: somos muito transparentes como banda. Em 2018 rolaram várias mudanças, o Luiz estava acabando a faculdade, eu saí de casa pela primeira vez e fui dividir apartamento com um amigo. Isso fez com que a gente parasse de tocar, tocar menos, até ter menos gosto pela coisa. Em 2019, fizemos só dois shows. Um foi muito legal, lotamos o CCSP com a [banda carioca] Def. A pandemia só acabou de afogar: fiquei atolado com trabalho, com muitas questões na cabeça. Os seis primeiros meses de pandemia foram muito loucos na minha cabeça. Nesse meio tempo, ainda tentamos gravar um disco em casa, acústico, com algumas músicas do “zera”. Colocamos a bateria no meio do apartamento, todo mundo do prédio saiu, mas acabou que não foi para a frente, muito por conta da maluquice toda que tava rolando no mundo e nas nossas cabeças. Acabei me mudando de novo, fiquei um tempo morando com a minha mãe, aluguei um apartamento para mim, voltei a morar no bairro que eu nasci, Magalhães Bastos, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Aos poucos, as coisas começaram a se ajeitar, até que no meio de 2021 nós voltamos a se ver e decidiu ir para o estúdio. Começamos a ensaiar, o primeiro ensaio foi maneiro, e vimos um vídeo de um show antigo nosso de 2016. Uma das músicas do “zera”, “Caveira”, já era daquela época. Em um mês, acabamos fechando todas as músicas, concebemos a ideia, sintetizando esses anos todos, entendendo que características desse período foram importantes. Já queríamos falar de outras coisas além de amor romântico.
Quando era possível sair de casa tranquilo, vocês fizeram dois discos sozinhos num quarto. E bem no meio da pandemia é que vocês gravam em estúdio, com produtor, convidados… Tirando a piada, como foi esse processo de decidir mudar o jeito de gravar?
Felipe: Foi um processo super colaborativo. Foi muito bacana trabalhar com dois produtores, o Roberto Kramer e o Fernando Dotta.
Luiz: O Roberto foi uma indicação do Dotta. Ele tem as referências, é um cara super talentoso. Durante o processo, fomos para o sítio Romã, do Lucas Theodoro, guitarrista do E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante. O Dotta foi com a gente, acompanhou, ele acabou fazendo a ponte com o Roberto, que estava em Pernambuco. Já tínhamos essa vontade de produzir as coisas mais bem gravadas, em estúdio, não sabíamos onde ia ser, mas foi aos pouquinhos.
Felipe: O que foi chave foi a nossa parceria com a Balaclava. Temos uma parceria muito grande, de muitos anos. Nosso primeiro show em São Paulo foi a convite deles, e é muito a mão da Balaclava incentivando, sempre trocávamos ideia. Quando fechamos o disco na nossa cabeça, chegamos para o Dotta e falamos que tínhamos um disco. Começamos a montar juntos, ele trouxe o Roberto, a ideia dele produzir junto. Eu consegui tirar duas semanas de férias. Uma foi para a pré-produção, com o Lucas, e ele deu várias ideias para o disco. E a outra foi gravando no Estúdio El Rocha, com o Fernando Sanches e o Rodolfo Duarte, uma engenharia de som absurda – e a dedicação e experiência dos dois reflete muito na sonoridade do disco. Os equipamentos do El Rocha são incríveis, eu estava na Disneylândia. Além disso, também usamos muito equipamento emprestado, eu não gravei com a guitarra que eu tinha.
Que guitarra era?
Felipe: Era uma guitarra ruim, uma Giannini Supersonic da reedição de 2006, mas ela já tava com o corpo quebrado, cordas altas… mas agora comprei uma [Fender] Squier Jazzmaster, na edição assinada pelo J Mascis, uma guitarraça incrível. Mas enfim, pro disco uma galera emprestou equipamento: o Bruno Paschoal do Terno Rei, o pessoal do Raça, o Edu Apeles, o Rafael Farah emprestou bateria e prato, foi uma construção coletiva por todos os ângulos. A gente nunca foi assim, nossos trabalhos foram só sempre eu e o Luiz, e é muito legal ter as pessoas ao redor, nos permitir colaborar com outras pessoas, como o pessoal que fez os clipes – o Flávio Cabral, de “nem sempre foi assim”, e a dupla Gabriel Andreoli e Dani San, de “enterro dos ossos”. O Rodrigo Valim, que fez capa, um artista visual de Santo André, é excelente assim.
Luiz: A construção coletiva é o caminho.
Queria saber como funciona a parceria de vocês com a Balaclava. Como a Balaclava ajuda vocês, como artistas?
Felipe: A parceria com a Balaclava é sempre muito flexível e muito transparente. Sei que eles fazem parcerias diferentes com bandas diferentes, depende do que cada banda precisa e quer. O Dotta nos dá muita liberdade para gerir as coisas, seja para chamar para ele trampar no disco, seja para mandar tudo já pronto, como fizemos no “Paroxismos”. Não segue um script, um processo para definir. Eu não escolho quando vou ter o disco pronto, a gente sempre trabalhou assim. Eles nunca botaram pressão de ter um disco novo pronto até tal mês. É bem flexível, troca de ideias, se nós queremos ou não fazer algo.
Junto com o “zera”, vocês estão mudando de formação. O “zera” não foi gravado como quarteto, mas vocês já fizeram um show no Balaclava Fest com mais um guitarrista, o Pedro Simião, e um baixista, o Gabriel Otero. De onde veio essa ideia de ampliar o gorduratrans?
Felipe: Pô, o Balaclava foi o primeiro show na vibe que a gente estava acostumado antes da pandemia, foi muito significativo mesmo. Quando estávamos pensando no disco com o Dotta, chegamos à conclusão que queríamos gravar o disco da melhor forma que ele pudesse ser. Depois é que a gente ia pensar no ao vivo. Fomos para o sítio, no final de agosto de 2021, já com a cabeça de que ia ter baixo, foi o Dotta quem criou e gravou as linhas de baixo. Não fosse só por isso, tem coisas que tem no disco que a gente nunca conseguiria reproduzir ao vivo, tem guitarra quadruplicada, tem sintetizadores de fundo… Foi uma ideia que trouxemos, tem músicas com beat no fundo acompanhando a bateria, é uma coisa muito da mão do Roberto. E conforme as músicas foram nascendo, percebemos que ia ter que ter mais gente na banda. Em janeiro desse ano, convidamos o Pedro Simião, que toca guitarra na Salvador, banda amiga nossa do Rio, e o Gabriel Otero, que toca baixo na Tom Gangue. E aí começamos a construir as músicas ao vivo com eles, foi quase como fazer as músicas de novo, refizemos todos os arranjos das músicas antigas, agora tem guitarra nova, baixo novo. Eles estão na banda porque gravamos o “zera” sem pensar na estrutura da banda, sem se limitar…
Sei que vocês tocaram em abril no Balaclava Fest, acabaram de se apresentar no Rio, na Audio Rebel, teve show na Baixada Fluminense… Como está sendo voltar a fazer shows, e agora, em quarteto? Muda o som, mas também muda a logística da banda, certo?
Luiz: Fica mais difícil de rodar com mais pessoas. Antes, eu e Felipe fizemos duas turnês no Nordeste na raça, rodando só os dois, era mais fácil. É mais fácil para um festival arcar com o custo de trazer duas pessoas do Rio de Janeiro. Ter um quarteto deixa as coisas mais difíceis, encarece um pouco mais, mas tocar com o Pedro e o Gabriel têm sido fantástico. É uma redescoberta de como é estar numa banda, como é tocar ao vivo. As músicas antigas se tornaram prazerosas de fazer de novo, tem novidades de guitarra, o Pedro trouxe linhas de guitarra muito legais. É uma redescoberta enquanto músicos, artistas, é uma experiência nova. E até de se abrir para novas ideias, o processo era sempre muito fechado em nós dois. É difícil rodar, mas tem que ser assim, não tem para onde correr.
Felipe: Quando fomos pensar em quem queríamos chamar, pensamos que tinham de ser nossos amigos. Gente que ia curtir o nosso projeto e que íamos ter liberdade de confiar. Não queríamos só chamar alguém por tocar bem, ter equipamento ou ser agilizado. Mas os dois são tudo isso também, além de serem nossos amigos. Temos parceiros, e o dia a dia é incrível, as viagens são maravilhosas. Não é um fardo estar com eles, é muito divertido. Tem sido muito maneiro.
Os dois primeiros discos do gorduratrans falavam bastante de relacionamentos. Com o “zera”, rolou uma expansão de temas. Mas o que esse disco novo quer passar pro ouvinte?
Felipe: A principal mensagem, que está refletida no nome do disco, é que o “zera” é um recomeço da nossa relação com a música. É uma forma diferente que a gente passou a observar e tratar o nosso trabalho. Víamos a música como um hobby, algo mais… fluido. Agora, é algo mais concreto. Demorei muito para me enxergar como um músico de verdade. Essa é a principal mensagem do “zera”. A gente se redescobrindo com a nossa forma de fazer arte, outras maneiras de enxergar o mundo que vivemos, como homens periféricos. É entender tanto a maneira que somos afetados e como afetamos as coisas, o processo de mudança nesses cinco anos.
Tem uma música que salta aos ouvidos nas primeiras audições do “zera”, talvez até pelo nome, que é “arão”. É um momento marcante. Por que Willian Arão merece uma música?
Luiz: Não é exatamente sobre o Arão, ele representa um sentimento, mas a música é sobre o Flamengo. Também é sobre o Flamengo.
Felipe: O Arão tem um simbolismo. Além dele ser um dos atletas mais antigos do Flamengo hoje, recordista de jogos pela equipe, ele teve fases muito boas. Ele jogou em posições diferentes, jogou muita bola… e teve fases muito ruins. É um reflexo do Flamengo – e ele sempre foi titular de todos os times. Incluindo o time de 2019, que foi mágico, e ele comeu a bola. É uma homenagem para um cara que é muito subestimado. Ninguém lembra que o Arão era titular do time em 2019! E ele é muito o espírito do Flamengo. Mas sei que ele vai sair do time em pouquíssimo tempo… (Nota: dias após a entrevista, o Flamengo anunciou a venda de Willian Arão ao Fenerbahçe, da Turquia)
Ele resolveu sacanear a campanha de divulgação de vocês!
Felipe: (risos) Pô, ele é um cara novo, tem 29 anos se não me engano, está há cinco no Flamengo. Mas é uma homenagem para ele mesmo. Eu e o Luiz Felipe, sempre fomos muito flamenguistas, mas a relação explodiu depois de 2018 e 2019. 2018 com o Vinicius Jr. e o Paquetá, e 2019 foi um absurdo, né. Passou a fazer mais parte do nosso dia a dia.
Luiz: O fato do Felipe ter se mudado para perto do Maracanã também influenciou muito nisso. Foi um momento chave, estávamos juntos o tempo todo, vivemos isso muito intensamente.
Felipe: E tem uma história curiosa: na final da Libertadores em 2019, dia 23 de novembro, já tínhamos agendado um show em Belo Horizonte. Tentamos cancelar de todas as formas, mas não teve jeito. Quando nos demos conta, era tarde demais. E aí que vimos a final da Libertadores em BH, os três juntos. Alugamos um Airbnb e colocamos as nossas coisas na mesma posição do apartamento, todo mundo sentado nos mesmos lugares.
Luiz: E tem um trecho da música que fala sobre isso!
Tem uma questão geográfica sobre o gorduratrans que eu queria resolver. Já vi por aí que vocês são cariocas, já vi que vocês são da Baixada Fluminense, o Felipe agora falou sobre ser um homem periférico… afinal, de onde vocês são?
Felipe: Existem dois Rios de Janeiros. Tem o Rio de Janeiro do Manoel Carlos, da novela, Botafogo e Copacabana. E tem um outro Rio de Janeiro, que é completamente diferente. As primeiras vezes que fui para a Zona Sul, eu já devia ter uns 15, 16 anos… e eu me sentia completamente estrangeiro. Andando na praia em Copacabana, eu era turista. E aí a complexidade da coisa: moro na Zona Oeste, num bairro chamado Magalhães Bastos, e o Luiz mora em Mesquita, que é uma cidade da Baixada Fluminense. Mas moramos a 15 minutos um do outro, e a família do meu pai é de Mesquita, sempre estive muito por lá. A gente é mais da Baixada do que do Rio.
Luiz: E foi nesse exato quarto em Mesquita que a gente gravou o “Repertório Infindável de Dolorosas Piadas”, que saiu por um selo de Nova Iguaçu, a Bichano Records. Sempre teve essa relação do projeto e nossa, sempre levantamos a bandeira da Baixada Fluminense.
E como isso muda a forma de ver o mundo de vocês?
Felipe: Eu demorei muito para me sentir parte “desse” Rio de Janeiro. Não dá para ver o Cristo daqui de casa, é muito longe. Eu via o Cristo uma vez por mês, quando ia para Vila Isabel, na igreja da minha mãe. Ver o Cristo é algo muito distante. E o nosso acesso até a Zona Sul sempre foi muito precário. O Luiz estudou na PUC, na Gávea, então sempre era uma hora e meia para ir, uma hora e meia para voltar. Na época do “Paroxismos”, a gente fazia show em Botafogo, levava duas, três horas para voltar para casa. O Rio de Janeiro que a gente conhece, e é incrível, é o Rio de Janeiro da nossa área. A Zona Oeste e a Baixada têm muito mais coisa em comum do que com a Zona Sul. A música que fala sobre o meu bairro, “nem sempre foi assim”, é sobre essas mudanças, como a passagem do tempo traz esperanças.
Ainda falando sobre cidade… existe uma cena local para vocês? Tenho a sensação de que cada vez mais, muitas bandas se comunicam com bandas de outra cidade, com sons parecidos, e menos com as bandas da própria região. Sinto muito isso com muitas bandas da Balaclava, aliás.
Felipe: Temos muitos amigos aqui no Rio, uma amizade forte com o selo Efusiva, que tem uma casa aqui no Rio chamada Motim, somos parceiros da Tom Gangue e da Salvador, que também eram da Bichano Records. Só que, de fato, até por conta da pandemia, a quantidade de rolês que vem acontecendo é muito menor. E de forma padrão, São Paulo tem muito mais evento, casa para tocar, e bandas. Tocamos mais no estado de São Paulo do que no Rio esse ano, temos mais público em São Paulo do que no Rio. Acho que isso também é padrão. É consideravelmente maior do que no Rio. Quando você pega os ouvintes… temos muito mais ouvintes fora do Rio. A gente é muito parceiro da Geração Perdida, da Lupe de Lupe, do Jonathan Tadeu, de Minas Gerais, muito parceiro da Transtorninho Records, do Nordeste, o pessoal do Terraplana. Sabemos que tem muitas cenas nichadas. Tem algumas cenas no Rio de Janeiro que acabamos não conversando, que são fortes, como a cena de hardcore, a cena indie… De certa forma, também estamos redescobrindo as relações, estamos voltando a tocar e a volta dos eventos.
No show do Balaclava Fest, fiquei impressionado com a galera cantando alto “Você Não Sabe Quantas Horas Eu Passei Olhando Pra Você” e “Vcnvqnd”. Já está rolando isso com o novo disco?
Felipe: Sempre achei muito doido isso das pessoas cantarem as músicas, sempre dá um nó, é divertido. É uma sensação esquisita porque as nossas músicas são muito pessoais, ver gente compartilhando esses sentimentos é um negócio muito doido. No disco novo, deu para ver melhor na Audio Rebel, mas as pessoas tão cantando mesmo as músicas, mesmo que elas tenham acabado de sair. É muito gratificante alcançar as pessoas. E de longe, “enterro dos ossos” é a música que o pessoal mais canta, é também a mais pop do disco. E esse pop é uma reconexão nossa com o começo da banda, é algo meio mais Dinosaur Jr., com estrutura de refrão.
O que vocês estavam ouvindo na época de fazer o “zera”?
Felipe: O “zera” foi construído durante cinco anos, então tem muita coisa. Mas foi uma época em que passei a conhecer alguns grandes clássicos que eu não conhecia. Eu comecei a conhecer música já velho, porque fui da igreja até os 19 anos.
Explica melhor essa história.
Felipe: Quando eu tinha três meses de idade, minha mãe se converteu à igreja evangélica. Minha tia é pastora até hoje. Cresci na igreja, com 10 anos comecei a tocar. Aprendi teclado, depois violão, aos 14 anos entrei para a banda da igreja. Minha relação com a música passa por isso. Só que fui crescendo, entrei na faculdade, comecei a ver coisas diferentes, e percebi que não acreditava mais naquilo. E com 19 anos eu saí da igreja, me percebi ateu, isso foi em 2012. Foi aí que comecei a ouvir música mesmo. Tinha uma doutrina da igreja da minha tia que você não podia ouvir “músicas do mundo”. No começo eu ouvia escondido, mas depois abri mais. Na época eu ouvia muito Los Hermanos, eu e o Luiz nos conhecemos por causa de uma banda de Los Hermanos. [Luiz revira os olhos na câmera]
Todo mundo teve essa fase…
Luiz: É o que é, né? Foi importante na época, e se a gente se conheceu por isso, já valeu! Valeu Amarante!
Felipe: Com 19, eu saí da igreja, comecei a sair, ir para festas, fui ter banda. Só que eu comecei a ouvir música já muito no alternativo, ouvindo as bandas dos amigos… e muito dos grandes clássicos eu não conhecia. Nos últimos anos, fui atrás dos clássicos. Devo ter ouvido o Clube da Esquina umas 500 vezes nos últimos anos, fiquei apaixonado pela carreira do Milton Nascimento, do Lô Borges, o disco do Tênis… comecei a ouvir muito Gilberto Gil, a trilogia “Re”, e referências disso começaram a entrar no gorduratrans. Foi muito legal poder descobrir esses grandes discos, mas para o “zera” puxamos algumas referências do shoegaze, umas coisas mais modernas. O “mbv”, disco mais novo do My Bloody Valentine, foi uma referência importante, assim como o último disco do DIIV. Esteticamente, foram duas referências bem relevantes. Mas temos muita referência do “Yuck”, o disco de 2011, muita coisa do Dinosaur Jr., Sonic Youth, Slint. Somos muito fãs de Elliott Smith, nós dois temos tatuagens de Elliott Smith, é uma referência forte para caramba. E pensamos muito a canção na vibe clássica, anos 1970, mas montando numa estética mais shoegaze.
É pergunta de jornalista chato, mas dado que o “zera” levou cinco anos para ser feito e várias ideias são de muito tempo atrás, o que é que vem por aí? Imagino que vocês não queiram demorar tanto tempo para lançar outro disco…
Felipe: Acho que essa resposta complementa outra pergunta que você fez, que é sobre o papel dos meninos na banda. Queremos trazer mais o Pedro e o Gabriel para o gorduratrans agora. Escrevemos nossa história como duo até aqui, mas queremos expandir nossa cabeça. Percebemos, no “zera”, a preciosidade de ter outras pessoas pensando a música com a gente. Isso pode ser muito rico para a construção artística. O Pedro é um excelente compositor para a Salvador, que é de math rock, é outra vibe, mas queremos trazer essas ideias. E queremos fazer outro disco em breve sim.
Luiz: Vai se tornar um movimento natural, conforme formos tocando e se entrosando melhor, tocando as músicas antigas cada vez melhor. É por aí, é se conhecer mais profundamente e depois colher esses frutos, de ideias, um possível disco novo… sem engolir barriga, sem muita pressa, com pé no chão, mas vai ser um movimento natural.
E o que mais dá para esperar do gorduratrans em 2022?
Felipe: Vamos tocar no festival Locomotiva, em Piracicaba, em outubro. Estamos armando outros shows de lançamento, queremos muito tocar em BH, Curitiba e Porto Alegre. Tem outras novidades grandes vindo aí, mas não estão certas ainda, então vamos esperar.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.