Contos Musicais #009:  “I Wanna Be Your Boyfriend” 

de Ismael Machado

Sempre que lembravam da cena não conseguiam evitar o riso. Era uma festa num porão. Subsolo de um casarão antigo. Quinzenalmente batiam ponto naquelas noites de festas punks. O local era um tanto insalubre para os menos acostumados às coisas do underground. A fumaça dos cigarros se misturava ao cheiro de urina e cerveja que um dia sonhou em ser gelada.

Foi quando uma roda de pogo se fez ao som de uma canção dos Ramones que ela, corpo miúdo e franzino, decidiu que seus coturnos iriam abrir passagem naquela celebração masculina. Coragem e determinação havia de sobra. Faltavam músculos. O corpo dela voou longe e quase ninguém percebeu.

Não é uma verdade completa. Um dos pogueiros, com cabelo igual ao de Johnny Ramone, percebeu o acidente e estendeu a mão para ajudá-la. Mas brincou: ‘Cê se garante? ’.

Ela aceitou a ajuda entre divertida e irritada. Já estava no estado de pilequinho quando se sentia maior e mais forte e podia encarar qualquer brutamontes. Ficaram frente a frente, sem saber direito o que fazer. Mas a sequência com Nirvana, Buzzcocks, Clash e Green Day deu-lhes motivos para pular e suar juntos.

Tomaram umas tantas cervejas ainda. E quando a festa acabou, seguiram com a turma toda. Ajudaram na coleta para a compra de um garrafão de vinho doce e barato. No meio da praça central da cidade, fizeram uma roda. Alguém apareceu com um sonzinho portátil. Ela precisou da ajuda dele para vomitar a mistura de vinho, cerveja e cachorro quente. Ele se apaixonou por ela no exato instante em que, depois de uma bela golfada, ela finalmente respondeu: ‘me garanto pra caralho! ’.

Outras festas vieram. Outras noites foram vencidas em bando. Suportaram juntos a humilhação da abordagem policial em fins de noite, dividiram refrigerantes e hambúrgueres e discutiram a profundidade das letras simples dos Ramones. Ela sempre lembrava que “I Wanna Live” era um dos maiores gritos de juventude que ela conhecia. “A manhã está próxima/ Eu dou o que eu tenho que dar/ Eu dou o que preciso para viver/ Eu dou o que eu tenho que dar/ é importante, se eu quiser viver/ Eu quero viver/ Eu quero viver a minha vida”, ela recitava, solene, a tradução da música. E ouvia da turma alguns gracejos sobre o que ela tinha que dar, afinal? Mas ele ouvia embevecido e lembrava de outras canções dos Ramones, como “Something To Believe In”, ou “I Don’t Care”. E rebatia, ‘mas é claro que ele se importava’.

Mas foi apenas quando os dois defenderam enfaticamente os Ramones de um carinha da turma que dizia ser a banda muito romântica para ser considerada punk, que ele realmente tomou a decisão.

Na festa seguinte, havia a apresentação de uma banda punk veterana no cenário. O primo dele tocava no grupo. Ele passara a semana inteira ensaiando com o pessoal. No meio do show, todos se surpreenderam quando o vocalista o chamou ao minúsculo palco. “A gente ensaiou a semana toda essa música. Agora manda o recado”.

Com o microfone na mão, ele olhou na direção dela. Anunciou: “Essa é pra ti”.

Em seguida, contou um, dois, três, e os primeiros acordes de “I Wanna Be Your Boyfriend” preencheram o porão.

– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.

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