entrevista por João Paulo Barreto
Há dois anos, em maio de 2020, Conceição Sena nos deixava após 81 primaveras bem vividas, sendo que quase 60 delas, inclusive, ao lado de seu namorado, marido, parceiro de trabalho, melhor amigo e companheiro de vida, Orlando Sena. Um ano depois, em abril do ano passado, em uma entrevista via internet com Orlando, Jamille Fortunato e Lara Beck, diretoras do tenro “O Amor Dentro da Câmera” (2021), o cineasta baiano disse: “Agora já posso assistir ao filme com tranquilidade. No momento em que ela aparece, já consigo assistir sem toda a melancolia em cima de mim. Acho uma coisa muito bonita que esse filme tenha acontecido”. A explicação surgiu no contexto de superação da perda, algo que, obviamente, nunca será completa. Com um amor de décadas em uma vida compartilhada juntos, essa superação tardará.
“Eu acho que não absorvi todo luto”, afirma Orlando neste junho de 2022. “Mas absorvi boa parte dele. Há dois anos, eu só sofria. E somente agora estou retomando algo de criação. Mas esse luto fortíssimo se mistura, ainda, com outros lutos que tive nos últimos dois anos. Com lutos de ver muita coisa que eu ajudei a fazer no campo político, por exemplo, dar para trás. É terrível você pensar que esse dar para trás pode ser definitivo. Que ninguém mais vai recompor”, salienta Orlando, que atuou como secretário de Cultura do governo Lula, e que denota, também, a surpresa de ter, aos 80 anos de idade, passado por uma pandemia.
“Para mim, era coisa de literatura. Peguei (a pandemia) de cara. De frente. De repente, assim, sem nem saber direito o que era. Tive que voltar ao (livro) ‘A Peste’, de Albert Camus, para ver o que era uma epidemia. E tudo foi se somando tendo como base, como substrato, a dor enorme de Conceição”, complementa Orlando em uma pausa na qual as lágrimas se tornam inevitáveis.
Produzido com o apoio do Rumos Itaú Cultural, “O Amor Dentro da Câmera” (já disponível para aluguel nos canais Now, Vivo Play, Oi Play, Google Play e Apple Play) é uma obra que se passa toda dentro de uma casa. É através da intimidade daquele casal entre aquelas paredes, texturas, cheiros e conforto, bem como pelas fotos que servem como portas de revisita ao passado e saídas para além daquele lugar, que tanto nós como espectadores quanto Conceição e Orlando como protagonistas adentramos naquelas lembranças que construíram uma vida. A co-diretora Lara Beck traz uma análise precisa de como a chegada do filme ao streaming e, no dia 06 de julho, ao Canal Brasil, rima com essa ambientação, bem como com a fase de confinamento pandêmico que todos nós vivemos em 2020.
“A gente nunca assistiu ao filme na tela grande, até o momento”, explica Lara. “Ele foi para o streaming e vai estrear em julho na TV sem que tivéssemos tido essa experiência do cinema. Mas eu fico pensando, também, que se trata de um filme do amor dentro de uma casa. E que também representa esse amor. E as pessoas assistiram a esse filme dentro das suas casas. Esse filme entrelaçado de amor entre pessoas. De amor entre pessoas e cinema. De amor entre cinemas. Até como Orlando fala no filme, que é amor entre tudo. Amor entre os minerais, amor entre todas as formas de vida. E também acho que o cinema é uma forma de vida”, aprofunda a cineasta.
Co-diretora ao lado de Lara, Jamille Fortunato, relembra a surpresa de perceber como os caminhos do filme se deram. “Fizemos um filme pensado todo dentro de casa, antes da pandemia, sem pensar em pandemia. Um filme no qual tentamos ser o mais íntimo possível, todo dentro de casa. E quando vai estrear, acontece uma pandemia. E acontece de estar todo mundo dentro de casa. Tivemos que circular pelos festivais dentro de casa. Não tivemos contato com o público, não tivemos contato com os cinemas, com a tela grande. Tivemos esse retorno apenas virtual”, explica Jamille. A diretora pontua, também, que a decisão de já lançar a obra em streaming se deu por conta da incerteza em relação ao período. “Não queríamos esperar mais por isso. Até porque a gente não sabe até quando vai isso. Hoje mesmo eu já recebi e-mail dizendo que vai voltar a obrigatoriedade das máscaras nas escolas. Então, resolvemos investir logo nessa questão de levar o filme para as telas das casas com o streaming e, agora, com o Canal Brasil”, pontua Jamile.
Diante de um filme cujas descrições são tão voltadas para o amor, o risco de soar como uma romantização exacerbada e banal poderia ser grande. Mas é o inverso que acontece. Lara explica: “Foi uma coisa engraçada conviver com Conça e Lando para além do filme, mas, também, no filme, e também no processo de montagem. É importante dizer que isso não é uma romantização boba das relações. Existem relações que precisam terminar, entende? Que não devem durar. Não é que todos os amores devem ser duradouros. Às vezes, os amores duram menos e são amores, também”, explana Lara Beck, e relembra: “Orlando sempre falava que eles eram três. Havia ele, mesmo. Havia Conceição, mesma. E havia uma terceira entidade que eram os dois juntos. Essa noção de aventura do estarem juntos a cada dia”.
Com exatidão e serenidade, Orlando Sena vai além e crava: “É um filme sobre envelhecimento. Inclusive, de uma maneira muito natural. O tema entrou no filme sem nenhum esforço, sem nada de quem o criou. O tema apareceu como aparece na vida”. Aos 82 anos, o diretor comprova aquilo que John Lennon, que partiu com apenas 40, cantou no seu clássico “Borrowed Time”: “É bom envelhecer. Tudo fica mais claro.” Neste novo papo com o Scream & Yell, Orlando, Lara e Jamille trazem novas impressões sobre o processo de criação de “O Amor Dentro da Câmera”, sobre o cinema como imersão, sobre longevidade e, claro, sobre Conceição Sena e a falta que ela faz. Vem ler!
Para além do filme, eu queria lhe perguntar sobre você e Conceição. No papo que levamos ano passado, você comentou sobre quando a conheceu. Demorou muito tempo para você perceber que ela seria sua parceira de vida?
Orlando – Foi na hora. Eu tinha feito vestibular e estava com a cabeça raspada por causa de um trote. Lembro que peguei um ônibus em Salvador e lá dentro estavam uns amigos, uns colegas de cursinho pré-vestibular fazendo algazarras. A minha geração, minha turma, estava fazendo vestibular. Conversei com alguns deles e vi que lá no fundo do ônibus tinha uma espécie de aglomeração. Tinha mais gente que no meio, que era onde eu estava. Aí eu fui lá e eles estavam conversando com Conceição. Eram colegas conhecidos dela. Inclusive, gente do interior, da cidade dela que estava chegando a Salvador. Ela, inclusive estava chegando. Aí o Roberto me apresentou. Não sei quem ele era, mas sei que se chamava Roberto. E respondendo sua pergunta, foi neste momento que eu soube. A gente se deu as mãos e ficamos nos olhando, como se estivéssemos bobando. Ela conta, eu não me lembro, que nesse momento da apresentação, ela fez um cumprimento “normal”, segundo ela. Ou seja, ela disse assim: “muito prazer”. E minha resposta foi um frio: “Como vai?” E isso chamou muito a atenção dela. Na verdade, não foi isso que chamou a atenção dela. Fomos nós que causamos uma impressão muito forte um no outro. Eu, a partir daí, fiquei obcecado. Logo depois aconteceu uma coisa que me obcecou ainda mais: a ausência dela. Eu não a vi mais nesse ônibus, que era um que nós dois costumávamos pegar diariamente para ir pra casa. Perguntei aos colegas dela, os conterrâneos dela, mas eles não sabiam. Apenas me disseram que, possivelmente, ela havia voltado para o interior. Pois como ela não estava no ônibus, era porque ela não estava mais em Salvador. Devia ter voltado para a sua cidade. Na minha cabeça, ela tinha voltado para lá e nunca mais viria a Salvador e que eu nunca mais iria vê-la. E foi um tempo que levou, umas duas ou três semanas. Acho que nem tanto. Umas duas semanas muito fortes em relação a isso. Algo relacionado à perda. E isso já levando para um lado, assim, definitivo, louco. Até que nos reencontramos através de uma câmera, que foi essa do filme de Lara e Jamille.
Mas e à época, como se deu esse reencontro que levou vocês a se tornarem um casal?
Orlando – Eu acabei a reencontrando de novo no ônibus. Mas aí já foi outro tipo de coisa. Foi como se eu suspirasse. Como se eu tivesse um alívio: “Aqui está ela! Ela não desapareceu. Não foi embora para sempre”. Mas foi essa sensação maluca que eu tive. Como se ela tivesse sumido e nunca mais fosse vê-la. Algo que trouxe uma confusão emocional enorme pensar que eu a tinha perdido. Ela contava sobre esse nosso segundo encontro de outra maneira. Não me lembro exatamente como foi. Montar a cena desse momento eu não conseguiria. Eu ia fazer uma ficção. Mas ela dizia que não foi nada disso. Que ela estava sentada, veio o cobrador do ônibus, que passou por ela, e ela apresentou o dinheiro. Ele disse: “Não precisa. Aquele menino já pagou o seu”. E aí ela começou a brincar com isso. Toda vez que a gente se encontrava nesse ônibus… Na verdade, nem era um ônibus. Era algo pequeno. Tinha um nome para isso em Salvador. Algo tipo uma “marinete”. Não sei se vocês conhecem essa palavra. É um ônibus pequeno. E se transformou em algo para ver quem pagava a passagem do outro primeiro.
Na sua trajetória de vida, você passou por diversas épocas marcantes da História. Conheceu nomes como Gabriel Garcia Marquez, Fernando Birri, foi co-fundador da Escola de Cinema de Cuba… Aos 82 anos, ao olhar para trás e perceber tudo isso, lhe causa um susto? Uma reflexão? Qual é o sentimento?
Orlando – Eu vou além. Eu, quando era garoto, vi Getulio Vargas. Estive em Salvador ainda menino com minha família e fomos ver uma passeata que estava acontecendo. E lá estava Vargas passando de carro. Meu pai me colocou nos seus ombros para eu poder ver. E eu me lembro perfeitamente de Getúlio. Lembro também de ter fugido do colégio interno onde eu estudava na ocasião em que Vargas se matou. Eu corri para a Praça Municipal para ouvir os discursos, para ver como as pessoas estavam reagindo. Mas respondendo sua pergunta, olha… (pausa) Eu senti e sinto isso, essa relação com o tempo, essa relação com a longevidade, da maneira mais natural possível. De vez em quando, penso na longevidade. Por esses tempos, peguei esse livro, pois tinha que ver uma coisa (“Coleção Aplauso – Orlando Sena”, livro de Hermes Leal), aqui está o século XX. Por acaso, eu o peguei hoje e está aqui. Às vezes me assusto com a longevidade. Me assusto na brincadeira comigo mesmo. Mas o fato de estar vivendo um tempo tão longo, não me causa medo, não me causa espanto, me causa só isso de às vezes até achar engraçado. Tem um lado muito incrível, que as coisas e as pessoas vão desaparecendo. Eu sinto que estou vendo o final do século XX. Que ainda é o final do século XX. Isso porque pessoas do século XX ainda se dão comigo. A gente ainda conversa, a gente é amigo. Também tenho amigos velhos. Mais velhos do que eu. Parece incrível que se tenha. Isso me lembra uma anedota do Austregésilo de Athayde, grande escritor que foi presidente da Academia Brasileira de Letras por 30 anos ou mais. Ele dizia que não ia a enterros porque se fosse se dedicar a ir aos enterros dos amigos, não faria outra coisa na vida. É isso. Nós que temos mais de 80 anos, também vemos a vida com essa coisa de brincadeira. Isso é uma piada do velho Austregésilo, evidentemente. Mas o único lado doloroso é essa perda constante. A partir dos 65, dos 70 anos, essas perdas se aceleram. Mas fora isso, esse dado de perder amigos, de perder coisas, de perder lugares, você só percebe após os 70 anos. E tem outras percepções, também. Na verdade, você só vê o correr da vida, a vida passar de verdade, você sentir que ela está passando, a partir dos 60. Tem alguns velhos que dizem que começaram a ver a vida passando aos 40. Não é verdade. “A vida recomeça aos 40 anos”. Também não é verdade. Ela passa e a gente a ver passando.
No ano passado, quando conversamos, você falou que demorou a assistir ao filme, pois durante muito tempo era doloroso rever Conceição. Nestes últimos dois anos desde a partida dela em 2020, como tem sido a sua rotina de criação após ter absorvido o luto?
Orlando – Olha, acho que ainda não absorvi todo o luto. Absorvi boa parte dele, eu diria. Já é outra coisa. Nessa época que você está falando, durante os meses após a partida dela, eu só sofria. E a coisa da criação só agora que estou retomando. Praticamente, não escrevi nada nestes dois anos. E nem fiz filmes. Eu terminei de fazer filmes um pouco antes desse acontecimento. Esse luto fortíssimo se mistura ainda com outros lutos que tive nos últimos dois anos. Com lutos de ver muita coisa que ajudei a fazer no campo político, por exemplo, dar para trás. É terrível você pensar que esse dar para trás pode ser definitivo. Ninguém mais vai recompor as coisas que eu fiz ou que eu fiz com a minha gente. Isso é uma mistura. A outra mistura foi que nunca esperei na minha vida pegar uma pandemia. Para mim, era coisa de literatura. Peguei de cara. De frente. De repente, assim, sem nem saber direito o que era. Tive que voltar à “A Peste”, de Albert Camus, para ver o que era uma pandemia. E tudo foi se somando, tendo como base, e eu diria como substrato, a dor enorme de Conceição. (pausa, lágrimas). Dor que não passou ainda, como vocês estão vendo. Mas eu me esforço.
Lara – (fazendo coração e mandando beijo) Te amo, Landinho.
Orlando – Te amo, também. Você e Jamille. Porque Jamille pode ficar zangada.
Jamille – Há amor para todos.
Lara, Jamille, o filme passou pelo período de festivais em plena pandemia, quando todos os eventos foram on line. Agora, ele entra no streaming e no Canal Brasil, seguindo um novo caminho de sua trajetória. Queria ouvir de vocês sobre esse momento. Sobre essa trajetória de “O Amor Dentro da Câmera”.
Lara – Menino… (Pausa) Pois é. O filme… ele… (pausa) Conceição se vai, tem a partida dela. O filme estreia, vem a pandemia. O filme meio que foi traçando seus caminhos. Você entende? Claro que fomos nós que traçamos esse caminho junto com ele, mas havia tantas demandas. E que, de certa forma, a gente foi conduzindo o filme. Ele foi indo para os festivais, e nós fomos tentando viver, estar bem de alguma maneira. Então, acho que nesse ponto o filme, realmente, desgrudou de mim. Eu o sinto bastante desgrudado. Ele estava bastante grudadinho em nós quatro. Eu, Jamille, Orlando, Conceição éramos um grupinho bem grudadinho, assim, o tempo inteiro. Eles dois, inclusive, relutaram a ter outras pessoas na equipe. Que depois foram muito bem recebidas. Mas foi um filme feito com muito poucas pessoas dentro do set de filmagem e isso se agrega em outros âmbitos. Mas sinto que a gente teve que se desgrudar. Ficamos mais separados, também, fisicamente. Teve uma despedida de Conce desse plano. E o filme foi para um outro lado. Agora, espero que seja algo muito bonito para quem assista. Que esse filme entre na casa de cada um com o streaming e com o Canal Brasil. Que realmente entre na casa de cada um mais ainda.
Orlando – Quando você falou sobre o filme ser lindo, eu me lembrei que todo mundo que assiste ao filme diz isso. As pessoas não precisam esperar uma pergunta nossa. Nunca precisou. Eles assistem ao filme e vem falar sobre terem se emocionado. Não precisa a gente ficar perguntando, como aqueles diretores de cinema nervosos, na porta do cinema esperando que o cara passe depois de ver o filme. Não precisa. Se esse filme for passar no cinema e a gente ficar na porta, vem todo mundo para abraçar.
Lara – Essa é uma boa ideia. Recebemos muitos abraços virtuais. A gente nunca assistiu ao filme na tela grande, até o momento. O filme foi para o streaming, agora estreia no Canal Brasil, sem a gente ter tido essa experiência do cinema. Mas fico pensando, também, que se trata de um filme sobre o amor dentro de uma casa. E que, também, representa esse amor. E as pessoas assistiram a esse filme dentro das suas casas. Esse filme entrelaçado de amor entre pessoas, de amor entre pessoas e cinema. De amor entre cinemas. Até como Orlando fala no filme, que é amor entre tudo. Amor entre os minerais, amor entre todas as formas de vida. E também acho que o cinema é uma forma de vida.
Orlando – Não à toa existe a expressão “coisa de cinema”. Não é coisa da vida. É uma coisa de cinema.
Lara – Exatamente. É verdade. É uma coisa de cinema. E acho que, hoje, eu sou público desse filme, também, sabe? Assisti a ele recentemente e assisti como público. Não senti aquela apreensão de ter dirigido. Eu senti uma vontade de… Uma coisa que falo é que eu faço audiovisual, mas que eu nunca posso deixar de ser público. Não uso as ferramentas que tenho para fazer o meu trabalho sempre para julgar um filme. Gosto de simplesmente ser capturada e ser abraçada por um filme. E estou conseguindo viver isso com um filme que a gente dirigiu. Isso é muito legal.
O filme agora passa por essa ressignificação com o streaming, do mesmo modo que o cinema passa.
Orlando – Para os cinéfilos, esse aspecto é muito interessante. Eles se interessam muito por isso.
Jamille – A gente foi pega de surpresa pela pandemia. Nem eu, mesma, pensei que iria passar por uma pandemia. Ter um filho crescendo na pandemia é muito louco. Criança que nasce achando que é normal uso de máscara. Que é anormal não usar. Mas, voltando, a gente fez um filme pensado todo dentro de casa, antes da pandemia, sem pensar em pandemia. Fizemos um filme no qual tentamos ser o mais íntimo possível, todo dentro de casa. E quando vai estrear, acontece uma pandemia e acontece de estar todo mundo dentro de casa. Tivemos que circular pelos festivais dentro de casa. Não tivemos contato com o público, não tivemos contato com os cinemas, com a tela grande. Tivemos esse retorno apenas virtual. E por causa da pandemia, a gente meio que passou pelo período de cinema. Não queríamos esperar mais por isso. Até porque a gente não sabe até quando vai isso. Hoje mesmo recebi e-mail dizendo que vai voltar a obrigatoriedade das máscaras nas escolas. Então, resolvemos investir logo nessa questão de levar o filme para as telas das casas através dos canais de streaming e do Canal Brasil justamente porque estamos vivendo um momento totalmente incerto e não sabemos o que vai acontecer. Queremos que “O Amor Dentro da Câmera” vá para as casas das pessoas e não só aquelas que tiveram acesso aos festivais on line. Queremos que as pessoas que sempre perguntam, os familiares, os amigos, finalmente possam ter o filme dentro de casa. Acho importante ter esse retorno das pessoas já que a gente não pode estar dentro do cinema recebendo esse abraço pessoal, já que é um filme que fala de amor. Eacho importante continuar espalhando amor em um momento tão estranho.
Orlando – Interessante que o que estamos falando, a síntese dessas frases, pois também é um filme sobre envelhecimento. Inclusive, de uma maneira muito natural, de uma maneira muito… O tema entrou no filme sem nenhum esforço, sem nada de quem criou o filme. Ele apareceu como aparece na vida.
Lara – E tem uma coisa engraçada no filme que é sobre conviver com Conça e Lando para além do filme, mas, também, no filme, e também no processo de montagem do filme. E é importante dizer que isso não é uma romantização boba das relações. Existem relações que precisam terminar, entende? Que não devem durar. Não é que todos os amores devem ser duradouros. Às vezes os amores duram menos e são amores, também.
Orlando – Às vezes os amores nem duram.
Lara – Nem duram. E são amores. Mas ao mesmo tempo despertou muito essa curiosidade durante o fazer do filme. Orlando sempre falava que eles eram três. Havia ele, mesmo. Havia Conceição, mesma. E havia uma terceira entidade que eram os dois juntos. E ele falava, também, dessa noção de aventura do estar junto a cada dia. Muitas vezes é associado até mesmo a uma mesmice. O tipo que pode trazer uma apatia. E às vezes traz, mesmo. E às vezes as relações não duram. E está tudo bem. Mas, assim, de certa forma, essa noção de aventura e de entender as personas e as entidades que se formam no amor, desperta muito a minha curiosidade no dia a dia. De entender do que é que surge. Duas pessoas são infinitas. Acho que é uma noção na fala de vocês. Que, no fundo, duas pessoas são infinitas. Então, não é exatamente o mesmo. É sempre novo, de alguma maneira. Não sei o que você acha, Mille. Você que já está casada há 15, 20 anos. (risos) Estou há quase seis. Mas Jamille é uma longeva.
Orlando – Você usou um conceito que, pelo menos me relação a nós, define muito: aventura.
Lara – Isso.
Orlando – Para a gente, pelos dois, sem nenhuma combinação, a vida sempre foi uma aventura. Sempre foi um descobrir de coisas. Tentar realizar coisas, o que é típico da aventura humana.
Lara – E tem a coisa da consciência e da rebeldia que você traz, também. Eu acho que isso, também, tem a ver com amor.
Orlando – Faz parte do todo do filme. Claro que tem que ver com amor.
Jamille – Vou fazer 13 anos.
Orlando – Vai fazer 13 anos de casamento?
Lara – Hastag Resistência.
Jamille – Eu acho que o amor tem que estar ligado muito com a aventura, mesmo. Porque, claro, nesses 13 anos tivemos crises. Principalmente nesse momento pandêmico. Quem não, né? E veio aquela ideia de: “ah, vamos nos separar”. Mas aí falávamos: “Beleza. Mas porque mesmo que vamos nos separar?” Aí começamos a analisar. “Porra, velho, é porque não estamos nos divertindo. Esse é o problema.” Então, isso não é motivo. A gente precisa se divertir, precisamos de aventuras. Então, não nos separamos (risos) porque nos demos conta que esses momentos de crise têm a ver com esse stress – que veio da pandemia, principalmente, um momento em que a gente tem que levar em consideração várias coisas e tem que pensar que é um momento de sobrevivência. É um momento de sobreviver, não é de tomar muitas decisões. E por isso que, sim, o amor está totalmente interligado à aventura. Como o amor de Conceição e Orlando, que é um amor que me inspira muito. E eu queria complementar uma pergunta que você fez para Orlando no início, João. Sobre essas pessoas que eles conheceram, que fizeram parte de toda essa trajetória, que são contemporâneos deles. Pois foi a partir de escutar essas histórias que eles sempre nos contavam, tipo, pegar ônibus com Sartre… A gente não colocou várias coisas no filme. Conhecer Glauber aos 13 anos, depois Glauber vai escrever boa parte dos livros dele na casa deles. Garcia Marquez, também, escreveu alguns contos na casa deles. Enfim, várias histórias e aventuras de histórias de amor e aventuras de amizades.
Orlando – Falando em aventuras, o Garcia Marquez ficou escondido da imprensa e dos fãs aqui nessa casa. Ele escrevia aqui nessa mesa. Ele fugiu do hotel e veio para cá.
Jamille – Pois é. A gente não colocou nem a vigésima parte disso. Estávamos lidando com uma eterna metragem. E tivemos que fechar tudo em um longa. Mas na verdade é um curta.
Orlando – É um baú. Qualquer filme, qualquer vida é um baú muito grande. Não vai caber tudo. Uma grande aventura que nós consideramos que passou por nós foi termos conhecido uma santa de verdade. Nós conhecemos uma santa da igreja católica, a Irmã Dulce. Porque os sobrinhos dela eram do teatro, o Manoel Lopes Pontes. Até hoje tem gente do teatro na Bahia que são Lopes Pontes. Eles têm essa tradição. E nós íamos na casa de Manoel Lopes Pontes. Conceição foi, durante um tempo, do grupo de teatro que ele montou. Íamos muito lá e, às vezes, Irmã Dulce aparecia. Sabíamos que ela era uma santa como mulher, mas, depois ela virou santa de verdade. Celebramos isso como se fosse uma coisa não religiosa, mas, sim, uma coisa de vida. Uma santa viva.
Jamile – Até santa eles conheceram. Conheceram milhões de pessoas e eu não conheci ninguém assim como eles falam. Mas me sinto muito contemplada por tê-los conhecido, pelo menos (risos). A contemplação vem através das histórias contadas. Das histórias ouvidas. Das histórias compartilhadas. E acho que foi a partir dessas histórias que gerou a vontade de fazer o filme. Dessas histórias que a gente ouvia, dessas histórias que a gente acaba vivendo de tanto ouvir, sentir e pensar nelas. Nós nos sentimos contempladas.
Lara – Eu gosto muito de dizer que fizemos um filme de amor. Esse gênero dentro do documentário e de todas as outras possibilidades de linguagem, no fundo no fundo é um filme de amor. É o que eu sinto. E teve muitas aventuras. Teve até o trisal que vocês iam fazer. Não sei se isso é muito em off.
Orlando – Não, porque eu acho que foi uma brincadeira da Norma Bengell, ou seja, nem está mais entre nós.
Lara – É verdade.
Orlando – Ela não se incomodaria de jeito nenhum. Eu acho até que tivemos que segurá-la para que não anunciasse. Mas foi um desejo real dela de a gente organizar um trisal, ao invés de um casal. Moraríamos juntos, tudo normal, mas só que com três e não com dois. (risos).
Orlando, para você que passou por tantas vidas, que conheceu tantas pessoas notórias, o que é o glamour? O que é a ideia de ser famoso, na sua opinião?
Orlando – (longa pausa) Às vezes eu confundo glamour com carisma. Agora, pensando melhor, talvez não tenha nada a ver uma coisa com a outra. Mas para entender o mistério do glamour, eu misturava. Eu achava que eram sinônimos. Mas não sei o que é o glamour. É igual ao carisma nesse sentido. A gente não sabe de onde vem, de onde sai daquela pessoa essa força. Uma força energética muito forte. Essa energia contamina as pessoas que estão perto. Não é que conquista, ela contamina, mesmo. Para poder ser glamour. Mas definir é difícil. Defina “deus”.
Boa resposta.
Orlando – Manifestações do divino.
Curioso como na minha profissão de jornalista, muitas pessoas me abordam sobre esse pretenso glamour que, para mim, não existe de modo algum. Essa ideia da internet concedendo uma fama plástica e descartável é outro ponto.
Orlando – É. Ser glamouroso também faz parte da vida de algumas pessoas. E essas pessoas, também, não obrigatoriamente sabem se explicar.
Creio ser uma ideia de você saber conciliar esse equilíbrio sem pender para um deslumbre, para uma coisa frívola.
Orlando – De uns 10 anos para cá, isso se tornou algo muito forte. A história da humanidade sempre teve essa coisa do charme, do carisma. Mas nesses últimos anos isso virou uma maneira de viver. Um modus vivendi. Uma febre. Qual a necessidade do ser humano? A necessidade pessoal de cada um? Os famosos 15 minutos da fama. Isso é uma quase verdade. As pessoas saem correndo quando veem uma câmera. Saem correndo em direção a ela. Outros saem correndo na direção contrária. Eu estive nessa fase de correr na direção contrária. Agora, isso melhorou.
Lara – Lando, você e Conça já se sentiram glamourosos, famosos, em algum momento?
Orlando – Depende da roupa.
(Risos gerais)
Lara – Adorei!
Orlando – É verdade.
Lara – (risos) É que eu estou precisando me sentir. Preciso de algum evento para me sentir. E você, Jamille, está glamourosa ultimamente?
Jamille – Atualmente, os meus momentos de glamour são as lives.
Lara – Eu não sinto o glamour nem nas lives. Preciso caprichar mais. Nas partes de baixo das lives, eu estou de pijama.
Orlando – Olha aí. Pijama com um manto em cima pode transformar uma pessoa em celebridade.
Jamille – Meu momento de glamour atual é que, finalmente, após quase cinco anos, eu estou começando a ter os meus primeiro vale-nights. (risos) Porque vocês estão em dois anos de pandemia, mas, na verdade, eu emendei a maternidade com a pandemia. Estou fazendo cinco anos nesse isolamento.
Orlando – Eu tenho um amigo que anda metido com essa coisa de celebridades e que ele tem uma frase que diz assim: “Estou fazendo um sucesso absurdo. É que as pessoas não viram ainda. Não notaram ainda.” (risos)
Jamille – Tem um poeminha que eu escrevi que diz: “Troco glamour por amour”.
Orlando – O que significa, em francês, glamour? Sempre tive essa curiosidade.
Lara – Deve ser o que nós conhecemos, também. Deve ser a mesma coisa.
Jamille – Quando eu fiz o curso de jornalismo, eu tinha uma matéria chamada História do Jornalismo, com uma professora chamada Mônica Davi. Me lembro que com um calça jeans surrada, uma bata branca, ela meio que sentava na cadeira e falava assim: “Quem é, quem é, quem é aquele ser humano que circula por entre as estrelas, que está sempre ao redor de pessoas glamourosas, quem é, quem é? Mas que, no fim das contas, não tem um centavo no bolso? É o jornalista”.
Orlando – Mas para ter glamour, não precisa ter dinheiro. Muita gente constrói essa busca pelo glamour sem dinheiro. Jorginho Guinle, o maior playboy glamouroso aqui do Brasil, morreu sem dinheiro. Ele viveu o fim da vida dele sem dinheiro. Era uma pessoa que gastava um milhão de francos em uma noite em Paris. Isso porque a família dele tinha dinheiro. Ele nunca meteu a mão em dinheiro, nunca procurou dinheiro. Não sabia nem o que era. Até o dia que ficou sem dinheiro. Quando ficou pobre, ele foi ao banco, que era dos primos dele e que tinha sido do pai dele, pedir um empréstimo. O primo dele disse que não poderia, pois ele não tinha o que dar como garantia, como uma casa. E ele só disse: “Mas esse banco é do meu pai. Meu dinheiro está aí”. Mesmo assim o parente não lhe deu.
Lara – O glamour não está resolvendo muita coisa, não. Ah, uma coisa que eu lembrei, Mille e Lando, falando em relação ao amor, não ao glamour exatamente, mas ao amor do filme. Acho que durante as filmagens… Eu fiquei lembrando disso. Sempre me lembro disso, na verdade. E sempre reafirmo o que me veio à mente na primeira pergunta. Era assim: a gente está mostrando um amor, também o cinema e também uma história de amor de duas pessoas, e a parte ruim dessa história. ‘”Ah, será que estamos idealizando, mostrando somente a parte boa?” ou “Ah, mas toda relação tem problemas, às vezes grandes. E decepções e tristezas também”. Eu sempre penso nisso. Acho que a resposta que eu sempre digo é que nós escolhemos fazer um filme carinhoso, sabe? Foi uma escolha. Temos o direito de mostrar esse amor dessa forma, entende?
Orlando – As pessoas não passam tão incólume pelo filme, não. É um filme de amor, sim. É gostoso do início ao fim, do primeiro ao último segundo de projeção? Não, não é. Tem coisas como Conceição chorando no final… é duro. Ou seja, é uma demonstração de que a dor também está ali no meio.
Lara – Eu não sei o que você acha, João. Até voltando a pergunta a Mille. A gente se questionou durante o fazer do filme. Para não mostrar um amor idealizado, entendeu? Às vezes temos esse medo. Até onde o amor vai? Até onde se idealiza o amor?
Orlando – Eu usei uma palavra, que não me lembro qual é, que você me deu um carão.
Lara – Eu?
Orlando – Sim. Como diretora.
Lara – Eu nunca briguei com você. Só quando você não quis tomar um banho.
Orlando – Você estava me entrevistando em uma mesa. E falo sobre beijinhos serem piegas, que não queria saber disso.
Lara – Ah, foi.
Orlando – Eu estava me referindo à superficialidade que também existe no amor.
Lara – Mas não acho carinho e beijinho superficiais. Sou louca por carinho e beijinho.
Orlando – Eu também!
Lara – Queria defender a meu ponto de vista. Acho que (dizer) “Te amo, meu amorzinho” é fundamental. Eu amo essas coisas.
Jamille – “O Amor Dentro da Câmera” é um filme de amor, mas acho que a gente buscou mostrar quais são os elementos com os quais se constrói o amor. E elementos reais e palpáveis, no sentido não só positivos.
Orlando – No amor, os argumentos precisam ser palpáveis.
Lara – É. (risos) E eu acho que colocamos no filme pensando nessas coisas, tipo… ciúmes, dúvidas, incertezas, saudade, aventura, mudanças… Tudo isso constrói uma relação. Constrói o amor de uma relação. E acho que a gente buscou esse elementos que constroem e construíram esse amor para colocar no filme.
Orlando – Faz parte dessa receita desse bolo um tomar conta do outro. É um aspecto que acho importante em uma relação, qualquer relação, mas principalmente nas longevas.
Lara – Você até fala que a sua relação com Conceição é de dependência amorosa no sentido mais profundo. Acho que é isso. É um filme de amor, mas não é aquela coisa o tempo todo “tchuck tchuck” (risos). É essa construção, mesmo. E que faz parte do nosso dia a dia, da nossa realidade. É do ser humano.
Respondendo sua pergunta, Lara, não creio que seja um filme que romantiza de modo raso aquela relação, não. Inclusive, tem um momento em que Conceição demonstra certa impaciência, perguntando às meninas a hora em que era iam embora aquele dia.
Orlando – Sim. Tem esse momento. E eu também dou um fora assim: “Vou-me embora. Também tenho que sair”. As pessoas estavam irritadas naquele momento.
Sim. Isso é a prova que não é só romantização. Há momentos em que as pessoas estão à flor da pele por alguma razão.
Orlando – Sim. Uma razão até externa ao filme, a qualquer coisa.
Lara – Sim. Fizemos questão de colocar essa parte.
Orlando – Conceição chega a dizer que está nervosa, acho. Ela diz algo…
Lara – Ela diz que está muito excitada e que vai sair por isso. “Hoje vocês vão embora mais cedo”.
Orlando – Isso.
Jamille – Fizemos questão de colocar essa parte no filme justamente para reforçar que isso faz parte.
Orlando – Ficou perfeito. O filme que tem uma coisa… Estamos discutindo o porquê das pessoas gostarem do filme. Nem é porque gostamos, mas por que as pessoas gostam. E é porque tem um equilíbrio. Essas coisas fazem parte desse equilíbrio interno. Fazem parte do filme essas coisas. Se elas não estivessem ali, seria outro filme.
Lara – Orlando amou o filme. Vocês podem reparar. A gente também amou. Não temos problema nenhum em dizer isso. Amamos o filme que fizemos.
Orlando – É algo muito pessoal. Muito pessoal de cada um. Só poderíamos gostar, mesmo.
Lara – Eu vou ficar me maltratando, mostrando defeitos? Não! Eu amo o filme, mesmo. Não estou dizendo que ele seja perfeito, mas, sim, que o amo. Faço coisas para achar ruim? Faço para achar bom, mesmo. O mundo está tão difícil e eu ainda vou ficar falando mal da gente? Nosso filme é lindo.
Orlando – Não temos tempo para tragédias. Acabo de criar essa frase. Se alguém quiser usar, eu cobro 10%. (risos)
Orlando, você passou por várias revoluções do cinema. Viu surgir os diferentes modos de captação, película, super 8, vídeo, digital. Agora a pouco você comentou sobre a importância da sala de cinema. Para alguém que passou por tudo isso, qual sua opinião acerca do futuro do cinema?
Orlando – Já está se vendo. Não é preciso nem se pensar muito para se adivinhar o futuro. A apreensão do cinema, não só a feitura, mas, talvez, basicamente e principalmente, a apreensão da arte cinema por aqueles que gostam disso e até pelos que não gostam, está mudando muito. E vai mudar radicalmente. Com o streaming, inclusive. Todas essas novas tecnologias de distribuição e exibição – a exibição está mudando totalmente. Não tem muito tempo que as pessoas não queriam ver filme aqui (apontando para o celular). Isso aqui não é filme. Hoje, ninguém sequer pensa nisso. Já começam a consumir naturalmente, como se fosse uma coisa normal de ser consumida. Então, isso da gente já poder ver agora e estar ainda no início dessa evolução, dessa mudança… não sei se é uma evolução, mas acho que sim. É uma coisa que já dá até para definir. Não está muito longe de uma realidade total. Lembro que não tem muito tempo que eu pegava o celular e dizia assim: “Daqui a pouco todo mundo vai ter uma câmera” e mostrava o aparelho nas conferências que eu participava. E não tem nem oito anos isso. Só tem isso. “Daqui a pouco isso aqui se tornará uma câmera”. E não era assim ainda. “Todo mundo vai ter uma. Todo mundo vai ser cineasta”. Eu defendi essa tese durante muito tempo. E continuo defendendo. Acho que vai acontecer isso. E já está se sentindo isso. Estou trabalhando agora com o pessoal da Maré. Jovens cineastas da Maré, e não-cineastas jovens. Todo mundo tem uma câmera. Pode não ter comida, mas câmera tem. E isso vai ser um sonho do Dziga Vertov. Todo mundo com uma câmera. Ele viu além disso. No filme dele, “O Homem com a Câmera” (1929), a câmera e o tripé saem articuladamente da caixa, sem que ninguém toque neles. Eu acho que por aí vai o futuro do cinema.
Essa maneira de ver o cinema, de assistir aos filmes, de considerar a tela do celular como um meio de acesso natural ao cinema, é algo que, na sua opinião, pode torná-lo fútil?
Orlando – Fútil, acho que não. Olha, de vez em quando, agora que está fácil assistir a filmes clássicos de verdade em canais como esse da Globoplay (hoje, inclusive, vi um de 1919), é que a gente percebe o tamanho da evolução. É enorme. Lembro de um estudo que foi feito na França e que levou à seguinte conclusão: se pegassem um cara dos anos 1910 que gostava de cinema naquela década e o trouxessem para o tempo presente em um filme atual, como algo de super-herói, por exemplo, que ele não aguentaria assistir ao filme. Para começar, ele ficaria nauseado, teria que ir ao banheiro. Ele, possivelmente, passaria por um processo de sentir cheiros. Pois é algo tão diferente que ele não conseguiria assistir, simplesmente. Nos campos das teorias, chega-se até a essa teoria.
Lara – E o contrário, também. Falo isso porque o meu enteado de 12 anos, quando eu o coloco para assistir a filmes clássicos…
Orlando – Mas esse aí é filho do cinema. Aos 12 anos, já é outra relação.
Lara: Mas sempre tem uma estranheza dos filmes mais antigos para quem está acostumado com outro tipo.
Orlando – É claro que é diferente. É com o olho pregado na tela e perguntando: “o que é isso?” Deve ter sido essa reação, mais ou menos: “O que é isso?” Mas essa reação passa. Isso que eu estou mencionando é algo de choque total. Do cara adoecer. Acho que é por aí. Você tem que pensar nisso e também do chipzinho aqui incrustado (aponta para a própria cabeça).
Lara – Como Conceição fala no filme. Está vindo o chip por aí. A nanotecnologia. (risos).
Qual sua opinião, Lara?
Lara – Eu tenho a maior dificuldade em prever coisas. Tudo que eu prevejo é diferente. Eu duvidava que Bolsonaro ganhasse. Que Dilma sofresse impeachment. Se eu for dar algum palpite sobre o futuro do cinema…
Orlando – Está até mais fácil do que dar palpite com relação à política.
Lara – Mas a sua pergunta foi sobre a mudança para o streaming, sobre o passado e o presente do cinema?
Sobre a banalização do cinema pelo espectador quando se tem acesso às obras em uma tela de celular.
Lara – Eu acho que o cinema está além da ferramenta. Uma coisa é a ferramenta. É o celular. Certo? A outra coisa é a narrativa. É tudo que envolve o cinema. A narrativa, o desejo, a história, as pessoas, a forma de lidar. Então, acho que o celular é a ferramenta. Agora, o que faremos com ela… Você entende? O celular, sozinho, não faz o cinema. Quando dou minhas aulas, sempre coloco o celular no chão. Eu digo: filma! Claro que a ideia é uma conjunção dos nossos corpos, sentimentos e da câmera, que está no dispositivo. Mas isso vai além do dispositivo somente, entende? Eu acho que é uma conjunção. É a nossa humanidade com o celular.
Orlando – Dentro disso que a gente já sabe que vai existir, podemos pensar desde hoje, desde agora, coisas da evolução com relação ao olhar. Ou seja, o que as pessoas vão ver. Já tem lanternas exibidoras. Você tira do bolso, coloca no aparelho e projeta em 6mx6m, e você vê uma tela que nunca viu. Já tem celulares projetores.
Lara – Eu diria que são duas coisas: o acesso e a educação. Uma coisa é acessar, outra é essa coisa maravilhosa de se educar “audiovisualmente”, que é uma coisa que Orlando sempre falou. E isso antes dos celulares serem algo tão acessível. Antes. E nós nos conhecemos há 16 anos.
Orlando – Eu peguei essa tese antes do Big Bang.
Lara – Antes de a gente ter nascido.
Orlando – Mas é uma coisa organizada. Desde a escola fundamental até a universidade. O que eu pregava era que se desse a mesma atenção que as escolas dão à língua matter do país em que estão.
Lara – Então, o acesso é algo conjugado. Há um contexto.
Orlando – Conjugado com a educação.
Lara – Exatamente.
Jamille: McLuhan fala que os meios de comunicação são nossas extensões. Mas o celular, a câmera, a previsão é que seja, também, uma extensão do corpo. Mas não adianta você ter essa ferramenta se não souber direito como usá-la. Eu também trabalho com Educação e fala-se muito da sensibilização do olhar. De como cuidar disso. Porque, hoje em dia, é isso. Todo mundo tem um celular com a câmera, todo mundo posta vídeos, mas dizer que aquilo é ou não cinema, é outro caminho. Temos que trabalhar nessa educação audiovisual. Nessa sensibilização do olhar.
Orlando – E isso já é outro tipo de educação que essa tecnologia está pedindo. O “Da Ideia ao Roteiro”, (livro) de Doc Comparato, pode jogar no lixo.
Lara – Por que? Eu não li.
Orlando: É o best seller do Doc Comparato. Todo mundo fazia isso antigamente. Todo roteirista queria fazer o seu próprio livro sobre o assunto. Eu mesmo fiz um, mas não publiquei. Meus alunos conhecem.
Lara – Eu acho que as coisas existem juntas. Coexistem. Sinto o cinema extremamente corporal, sabe? Isso coexiste com a ideia do celular, e de Vertov etc. Mas sinto extremamente corporal. Porque quando eu lembro desse filme que fizemos, e que continuamos vivendo ele, agora que vai estrear no Canal Brasil, eu lembro do cheiro do apartamento, lembro de passar a mão no cabelo de Orlando. Essa ideia da mão adentrando na cabeleira branca, assim. Prateada, pois agora ela já não está mais branca, mas, sim, quase diamante. Então, enfim, acho no final isso leva para a gente, também. Isso é massa. E que bom que temos essas ferramentas.
Orlando – A verdade é que o filme não é eterno, mas o Cinema, sim. Uma boa frase aí para a sua chamada, João. Criei agora já com os 10%.
Lara – Estamos muito criativos, hoje (risos).
Jamille – Quando surgiu o jornal, o rádio, a TV, sempre se especulou que o anterior ia se acabar. Não é porque a televisão chegou… Não é porque a gente tem um cinema, digamos, dentro de um aparelho de celular, que vai acabar o cinema, que vai acabar a TV. Não. São outras formas que se agregam.
Lara – O podcast que é uma rádio, por exemplo. Um novo formato de rádio que você vê de outro jeito, de certa forma.
Orlando – Além disso, tem esse “dar-se conta” nas pessoas que trabalham nisso. Essa evolução incrível, nesse momento está produzindo uma incrível procura por filmes antigos. Todo filme antigo existente no mundo está sendo caçado.
Gostaria de fechar a conversa com uma pergunta sobre nosso contexto político que se difere muito daquela falta de horizontes que existia na ocasião de nosso papo ano passado. Orlando, você foi secretário do governo Lula, e ele poderá voltar ao cargo ano que vem. Você é otimista para os próximos quatro, quiçá oito, anos no Brasil?
Orlando – Eu sou um otimista por vício. É aquela coisa que não sabermos como largar. Confio no ser humano. O ser humano faz cagadas à vontade. Cagadas horrorosas. Terríveis. Mas de alguma maneira, têm uma saída. Sabem como sair. Inventam. Têm uma certa inventividade. Uma certa criatividade para sair dos buracos, dos abismos que os próprios humanos criaram. Acho que a gente sabe, ou inventa o saber para sair dessas terríveis coisas que nós mesmos fazemos a nós e ao planeta. Por isso sou otimista. Mas não sou um otimista que diz que tudo será feito às mil maravilhas. Não. Haverá guerras e muito sangue. As imagens das cidades mortas da Ucrânia é algo que isso nos mostra. Nem nas Grandes Guerras que aconteceram no século XX, as pessoas matavam a cidade e iam embora. Matavam a cidade era para matar os soldados que estavam lá dentro visando amedrontar o país inimigo. Mas, não. Agora, na Ucrânia, estão fazendo esse tipo de coisa. Uma coisa nova: matando cidades. Vai lá, destrói tudo, se houver pessoas, corram ou morram. Parte das cidades mortas são um monte de cadáveres. Mas o conceito é cidades mortas. É matar cidades. Isso é só um exemplo. As pessoas pensarão em coisas mais terríveis. Mas isso não quer dizer que eu abandone o meu otimismo.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
A própria entrevista já foi um ato de amor. Conheci superficialmente o orlando Sena em porto velho, durante um Cineamazonia, festival de cinema ambiental que rolava lá. Pessoa incrível. Essa entrevista é deliciosa