entrevista por Leonardo Vinhas
Felipe Julian, o Craca, nasceu na Argentina, cresceu e vive no Brasil, e tem bastante orgulho do “gene de barata” embutido no DNA latino-americano. Em seu trabalho solo ou na dupla que mantém com a cantora Dani Nega, a ginga de quem vive nas grandes cidades costuma dar os sons da graça. Mas em “Humo Serrapilheira” (2022), seu novo EP, os beats se encaminham para paisagens mais bucólicas.
Craca foi fazer easy listening, você se pergunta? Nem de perto. As quatro faixas do “disquinho” dão uma passeada por ritmos andinos ou agrestes, pescando aqui e ali alimentos tradicionais para somar forças à sua espinha eletrônica. Mas os graves pesadões de “Cordilheiras”, a quase psicodelia de “Chapadas” e a hipnose dançante de “Fumaça D’Água” não se prestam ao papel de música ambiente de forma alguma. Talvez apenas a faixa de abertura, “Altiplanos”, transite por terrenos mais pastoris, mas, ainda assim, a linguagem é outra.
O EP, lançado pela Tropical Twista Records, saiu em abril, e se encaixa bem no cenário da música eletrônica nacional, mas não destoa de artistas que fizeram a ponte entre a América Latina e a eletrônica, como o Duo Finlandia e os finados Coutto Orchestra e CCOMA. Após um papo em 2020 com o Scream & Yell, Craca respondeu a novas perguntas deixando claro que seu segundo lançamento solo (o primeiro foi o álbum “Traquitana Audiovisual”) tem intenções (e resultados) mais interessantes que simplesmente “olhar para a América Latina”.
Felipe, o release menciona um “resgate folclórico”. Nos tempos que vivemos, com tanta destruição cultural e humana, não é demais perguntar: resgatar de quem? E o que faz com que esse resgate não seja uma apropriação?
Meu disco não resgata praticamente nada. Ele cria a partir de agora e a partir de aqui. Não há charangos, zamproñas, pandeiros ou cavacos. Não há sambas, guaranhas nem cumbias. Há música feita subjetivamente a partir da concretude desta geografia, destas paisagens e desta natureza selvagem e humana, da qual faço parte, à qual pertenço e a qual escolho como lar. Falo da diferença entre nacionalista e nacional, entre brasilianista e brasileira ou entre indigenista e indígena. Menos “wanna be” e mais “é o que sou”. Em suma: não é música latino-americanista. É música a partir daqui, em função da história deste lugar e das pessoas que aqui habitam. Eu habito aqui e minha história é tipicamente latino-americana como a dos japoneses, que aqui habitam, italianos que aqui moram, dos africanos que aqui foram trazidos, dos refugiados, dos exilados de todos os desterrados por guerras, crises, ditaduras que, por sorte e azar, aqui caímos.
A que se deve a “mudança geográfica” de um disco para o outro, saindo do Brasil e voltando esse olhar para o continente?
Como disse, não trato este projeto como um resgate tradicional ou folclórico, e sim como um projeto identitário. Um olhar para si mesmo com a constatação de que somos menos essas criaturas à imagem e semelhança dos americanos e dos europeus – em quem seguimos tentando nos espelhar – e mais estes habitantes deste conjunto de países mal aglomerados neste generoso pedaço de planeta batizado pela mente colonial de “America Latina”. É identificar-se mais com o boliviano, o chileno ou o peruano do que com o francês ou o inglês. É voltar-se para seu próprio bairro, sua própria comunidade, sua própria vizinhança e dizer: “sim, eu sou isto, eu sou vocês e acho vocês foda!”. Coisa que falta tremendamente ao brasileiro, geograficamente disposto de costas para o restante da America Latina, ou pro argentino, culturalmente forjado nos valores, estéticas e tradições européias.
A música eletrônica parece exibir um diálogo mais fluido com os pares latino-americanos que a maior parte dos outros gêneros musicais. Queria saber se você tem essa mesma percepção.
Não quero ser mal-entendido, pois o que vou dizer aqui é um elogio, mas acho que a música eletrônica tem gene de barata, no bom sentido. Quero dizer… Ela muta, se transforma e se adapta ao ambiente com velocidade admirável. Enquanto outras linguagens artísticas se encontram às voltas com seus paradigmas… há na música eletrônica um desejo e uma habilidade para assimilar o ambiente que permite ao gênero ser ao mesmo tempo regional e global. Por essa característica, há de fato uma cena de música latino-americana acontecendo dentro da cena eletrônica e na qual, devemos dizer, bebem muitos dos grandes artistas populares. Atualmente é impossível não mencionar o downtempo que vem sendo feito por aqui, mas também precisamos comentar sobre outros derivogêneros mais acelerados que já estão disputando espaço com os mais tradicionais eventos de trance, por exemplo. Enfim, constatar que não é no Brasil, na Colômbia ou no Chile isoladamente, e sim em toda a América Latina que temos talentos criativos sem igual. E o resto do mundo dá cada vez mais ouvidos para nós, pois, além do talento, aqui há legitimidade e muita história pra ser contada. História de gente tradicionalmente silenciada e marginalizada. Então, a música feita por originários, por exemplo, é a ponta de um iceberg que mal começou-se a desvendar.
A noite brasileira tem espaço para música eletrônica autoral?
Eu acho que sim. Não fosse assim, eu não estaria tocando em lugar nenhum quase! De fato, é um espaço amplo, que recebe bastante experimentação e desfila pouquíssimo preconceito com o novo, se comparado a maior parte das demais expressões musicais brasileiras. No entanto, não posso deixar de mencionar o fato de que, à medida que esta cena se fortalece, ela tb se vicia e passa, como um conjunto de organismos competindo por um mesmo espaço, a defender seu próprio gene. Acho que a cena eletrônica que aqui começou nas festas de ruas agora está fortalecida disputando espaços privados quando ainda deveríamos estar ocupando ruas, não só pela diversidade artística e de público que a rua propõe, mas para não entregar essa nossa tão duramente reconquistada rua para esse fascismo liberal que busca ocupar nossa subjetividade cada vez mais. A America Latina está conseguindo voltar à orientar sua bússola rumo ao sul… Espero que o Brasil não erre novamente e retome seus espaços políticos e culturais perdidos nos últimos anos.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.