Faixa a faixa: Arthus Fochi apresenta “Ana Sabático”, disco que reúne Ana Frango Elétrico, Duda Brack, Chico Chico e mais

introdução por Marcelo Costa
Faixa a faixa por Arthus Fochi

Compositor, poeta, cantor, pesquisador e carioca filho de pai guarani paraguaio, Arthus Fochi segue desbravando o Brasil e a América Latina em “Ano Sabático” (2022), um disco de parcerias que começou a ser projetado na década passada (a primeira música, “Ronda na Mata”, foi lançada em 2017) para ser finalizado agora, num momento de redescoberta do prazer dos encontros após tanto tempo confinados. O álbum (já nas plataformas) reúne as 11 faixas lançadas como single nos últimos cinco anos mais uma inédita – a versão em vinil será disponibilizada a partir do segundo semestre.

Em “Ano Sabático”, Arthus Fochi conta com a presença de José Delgado (Venezuela), Lívia Nestrovski (EUA), Fred Ferreira (Portugal), Juliana Linhares (RN), Duda Brack (RS), Tyaro (PE), Déa Trancoso (MG), Qinhones, Ana Frango Elétrico, Chico Chico, Júlia Vargas e Ivo Vargas (RJ) comprovando a identidade plural do disco, um caleidoscópio sonoro onde ritmos tradicionais e folclóricos do Brasil e da América Latina se encontram com sintetizadores, em arranjos e produção assinados a seis mãos: Gui Marques, o baterista Gabriel Barbosa e o próprio Arthus.

“A ideia era oferecer a cada uma das participações as minhas últimas músicas compostas”, conta o músico. “Cada amigo recebeu algumas músicas para escolher, com exceção de alguns que já sabiam o que iriam cantar (risos). A proposta estética do disco era percorrer alguns ritmos da América Latina, incluindo o Brasil obviamente, mas fazendo isso de uma forma mais moderna, usando synth, pensando em alguns arranjos mais polifônicos, misturando com jazz, rock, enfim, algo que saísse além do lugar folclórico e que jogasse nas letras o valor poético de cada uma”, resume Arthus.

Ano Sabático” também fecha um ciclo para Arthus, que havia encerrado outro em 2021 ao finalizar – após 10 anos – o disco da Sendeiros, laboratório musical de ritmos latino-americanos que havia gravado um álbum em 2011, que só foi concluído no meio da pandemia. Agora ele já começa a pensar em um “Ano Sabático 2” para 2023, mas, antes conta para nós (diretamente da Dinamarca, onde reside atualmente) como surgiu a ideia de cada uma das canções do disco recém-lançado destacando as participações especiais – cada uma delas ganhou um webclipe onde a intimidade criativa transborda. Fala, Arthus!

01. Ronda Na Mata – Foi uma música que surgiu em Jaú, no interior de São Paulo, onde passei um ano novo com amigos em uma fazenda. Encontrei um livro de um membro da família, o Toni Carioba, o poema era sobre um passeio na mata atlântica. Eu sempre tive uma ligação com a Mata Atlântica, frequentei grupos de agroecologia, estudei o tema durante uns bons anos. Então resolvi fazer uma música com o poema, e escolhi o Candombe, ritmo afro uruguaio que gosto muito. Um dia o José Delgado, cantautor venezuelano veio ao Rio e se hospedou em minha casa, a Tita Parra fez essa união, assim como também fez com a Déa Trancoso. Foram dias lindos em casa com ele, um cara que vive música. Na época o projeto do “Ano Sabático” nascia, perguntei se ele não queria escrever uma parte em espanhol pra gente gravar, no dia seguinte fomos ao estúdio.


02. Fidel Castro Não Morreu – O Fidel não tinha morrido quando fiz esse som. Lembro que fui a um aniversário da Daíra em Santa Teresa e tava rolando um microfone aberto, tava a turma toda e Chico Chico escutou essa e se amarrou. Depois quando comecei a pensar nos convites, já sabia que ia chamar o Chicão pra cantar essa. Alguns bolsonaristas vieram me xingar quando ela foi lançada como single, mas a poesia é um pouco mais profunda do que o pensamento maniqueísta. Ela fala mais sobre o fim da razão, o fim da hermenêutica, era óbvio que o eleitorado base do Bolsonaro (protagonista neste processo) não entenderia.


03. Negra Mata – Ivo é um alambique de melodia, só sai destilado dali. Essa foi composta com o Ivo Vargas em Ilha Grande durante um carnaval. E então peguei meu caderninho, fui olhando a mata atlântica meditando na paisagem, no silêncio do mar, e surgiu “Negra Mata”. Na época o projeto Iara Ira (Juliana Linhares, Júlia Vargas e Duda Brack) estava fazendo belo sucesso em shows no Rio. A Júlia já cantava essa no espetáculo Iara Ira, então não tive dúvida em dar o protagonismo pra Ju.


04. Águas Pluviais – É uma parceria minha com a Lorena Pipa. Na época, morávamos juntos e Lorena estava há poucos meses no Rio. Há pouco tempo tinha rolado acidentes envolvendo os bueiros no rio, explosões que estavam assustando e transformando a cidade num campo minado. Aquelas coisas que só acontecem no Rio ou em contos de realismo fantástico. A Lorena foi mapeando os bueiros da cidade, dizia que tinha medo de passar por cima. Um dia chegou em casa cantando uma melodia com os nomes dos bueiros, eu achei aquilo incrível, tinha um quê de Lira Paulistana, então sentamos e desenvolvemos a ideia. A Aninha (Ana Frango Elétrico) tinha ouvido num show e quando fui apresentar algumas músicas pra ela cantar, ela já queria cantar essa, eu fiquei surpreso e feliz.


05. Escopa – Uma música de amor. Um pedido de namoro, uma tentativa de reatar. Escopa é um jogo de baralho espanhol que eu aprendi a jogar com minha avó paraguaia, a música brinca com a ideia do empate, como se uma partida mais fosse necessária para desempatar o lance. Eu queria que a Ju Vargas, Juliana Linhares e Duda participassem do “Ano Sabático”. As três que compunham o espetáculo Iara Ira. Achava importante como marco do momento também. Então convidei a Ju Linhares, enviei algumas músicas e ela escolheu “Escopa”. Fico feliz de fazer parte do início da carreira solo de uma amiga e artista que admiro tanto, uma artista potente e que com certeza vai trazer muita coisa boa pra música e pro debate brasileiro.


06. Tesouros Artificiais – Fechando a trinca do “Iara Ira” com a Duda Brack. Essa música é outra parceria com a Lorena Pipa. É uma metáfora, um término de relacionamento contado através de um suposto diálogo entre nativos e colonizadores. “Volte para aquele navio e não venha mais, não quero saber dos teus tesouros artificiais.” Um grito de libertação, uma poesia que é uma ode ao pensamento decolonial. Na música há uma estrofe cantada em idioma Guarani e um poema também em Guarani que recito ao final.


07. Mamilo – Bolero que fiz a partir de um poema do meu livro “Ao amor imigrante“. Apresentei algumas músicas pra Lívia Nestrovski e ela escolheu essa. O poema mistura português e espanhol. A sessão de gravação contou com o Fred Ferreira no violão. Foi muito divertido. A ideia de produção do disco foi de valorizar o encontro, ir para o estúdio com a música escolhida e durante o dia de gravação utilizar as ferramentas ali e juntos com os convidados decidirmos os caminhos para cada som. Acredito que esse frescor e espontaneidade estejam presentes no disco.


08. Caso Perdido – Parceria com a poeta Liv Lagerblad. A minha grande parceira, temos mais de 40 músicas. A minha interpretação é de que a poesia fala da loucura, e faz um questionamento: precisamos de cura? O Qinhones é muito amigo do Gui Marques, meu grande amigo e produtor do “Ano Sabático” comigo e com o Barbosa. A gente se encontrava muito com o Qinhones por isso e me pareceu óbvio convidar ele, um cara que admiro e que estava muito presente nas nossas vidas nessa época. Ele escolheu “Caso Perdido”, e a gente acabou pensando numa onda mais R&B, estávamos ouvindo bastante Cassiano na época.


09. Fantasma – É uma música que fala dos amores fugazes, das noites boêmias. Tyaro tinha visto ela num show e comentou comigo que tinha gostado. Pensei em convidá-lo e sabia qual oferecer, foi uma tarde muito gostosa de produção. Participa da faixa também o saxofonista de free jazz norte americano Scott Hill que trouxe uma ambiência “fantasmagórica” ao som. A história da letra conta uma pessoa que dorme algumas vezes com outra e de manhã sempre acorda sozinho, o fantasma é essa pessoa que aparece nas noites boêmias e de dia desaparece.


10. Canção do Sol – Outra parceria com Ivo Vargas. Ficamos uma tarde ali na Umari, minha antiga casa, escrevendo e bebendo uma cerveja. Na época eu estava fazendo a pré-produção do disco do Ivo, “Atalaia” (2021). Nós dois crescemos na região dos lagos, então o caminho do sol acaba trazendo muitas imagens e lembranças. Essa letra fala de fé, de perseverança. O sol é a força primária de tudo, um astro rei, um astro só. A metáfora traz a reflexão de que temos dentro de nós a força do sol, o amor próprio, entre outras, devemos acreditar na nossa própria voz.


11. Jacuba – A Déa tinha uns compromissos no Rio. Fiquei sabendo e resolvi fazer contato, a nossa conexão era a Tita Parra. Eu produzia o evento chamado “Peña Cultural Auá” na minha própria casa. Convidei a Déa para participar do evento, ela fez uma audição do seu disco “Líricas Breves Para Construção da Alma” (2018), com uma pequena apresentação. Foi uma noite mágica, casa cheia, muito encanto. A Déa tem disso, dessa presença ancestral brasileira e de força feminina transformadora. Convidei ela pro “Ano Sabático” e ela escolheu esse samba que eu fiz na Serra da Mantiqueira. Ela disse que desde pequena gostava de samba porque o pai sempre de manhã sintonizava nas rádios do Rio que tocavam muito samba. Daí surgiu uma amizade e parceria, hoje temos três composições juntos.

12. Sacos e Sacas – Essa fala de um término de relação, traz uns números na tentativa de trazer para um lugar físico o tempo. Uma vez um amigo poeta, o Heyk Pimenta me disse algo como “Quantos quilos de sal eles comeram juntos…” Eu fiquei com aquilo na cabeça, com a beleza poética daquilo, como se eu pudesse medir a profundidade de uma relação ou o tempo através da quantidade de sal, de café ou açúcar. A música trata também de estabelecer um término amigável, uma separação que acompanha a diminuição dos números. Esse som fiz com o Luiz Fortini, um grande amigo mineiro. Ele veio com os primeiros acordes e quando vimos estávamos compondo.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto é de Caro Petersen / Divulgação

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