texto de Gabriel Pinheiro
David Lynch sempre foi uma espécie de outsider em Hollywood, por onde caminha, no mínimo, desde os anos 1980. De grandes a pequenos orçamentos, o cineasta é responsável por alguns dos trabalhos mais marcantes das últimas décadas do século XX no cinema estadunidense – “O Homem Elefante” (1980), “Veludo Azul” (1986) e “Cidade dos Sonhos” (2001), para citar três em que ele foi indicado ao Oscar de Melhor Direção. Não que isso importe tanto na trajetória do diretor, mas mostra como o seu cinema, que sempre se interessou pelo que há de mais estranho na psique humana e, sobretudo, no avesso dela –no que há por detrás, nas possibilidades do sonho (e do pesadelo) – conquistou um espaço singular dentro da indústria.
A crítica e jornalista americana Kristine McKenna é amiga de Lynch desde 1979 e o entrevista regularmente desde então. Esta longa amizade e o amplo acesso ao artista são a matéria primordial deste “Espaço Para Sonhar” (“Room to Dream: A Life in Art”, 2019), assinado por Kristine e pelo próprio biografado (e que ganhou edição brasileira via Editora Best Seller). McKenna realizou mais de 100 entrevistas com amigos, colegas, atores e atrizes dos filmes do cineasta, ex-companheiras (o quão sedutor é Lynch e seu topete não está no gibi, adianto), músicos e produtores. Toda uma miríade de pessoas que, em algum momento de suas vidas e carreiras, adentraram o universo lynchiano.
Uma biografia de David Lynch não poderia seguir uma estrutura comum e familiar, certo? Pois bem. O texto de Kristine McKenna é o lado A de “Espaço Para Sonhar”. Nele, a jornalista mergulha na história do biografado desde a infância até seu último grande projeto, “Twin Peaks: O Retorno” (2017), a terceira temporada do provável seriado mais marcante da televisão na década de 90. O lado B do livro fica a cargo do próprio David Lynch, que lê o texto de McKenna e o comenta no capítulo seguinte. E é aqui que a magia acontece. Lynch dá a sua visão íntima para as lembranças compartilhadas por todos aqueles que cruzaram o seu caminho. Às vezes vai ao encontro destas memórias, noutras as confronta, trazendo uma muito bem-vinda incerteza aos acontecimentos narrados. Afinal, sua história não combina com a lógica da segurança e da exatidão.
É muito interessante perceber como sua carreira tem como fundamento, antes do cinema, as artes plásticas. Seu trabalho na pintura é essencial para a plasticidade de suas obras cinematográficas. “O evento crucial na criação do mito David Lynch ocorreu no início de 1967. Quando pintava uma figura de pé entre folhagens em tons escuros de verde, ele sentiu o que descreveu como ‘um ventinho’ e vislumbrou um leve movimento na pintura. Como um dom advindo do éter, a ideia de uma pintura em movimento acionou um gatilho em sua mente”.
Um ponto que se destaca no conjunto de relatos colhidos por McKenna é o contraste entre os temas que o atraem e a sua personalidade na vida cotidiana e, inclusive, durante o trabalho, no contato com os atores e sua equipe. “Ele sempre teve uma personalidade alegre e solar, mas é atraído por coisas sombrias. É um dos seus mistérios”.
Ainda que Lynch atue em múltiplos campos artísticos, é no cinema que sua obra alcançou plena potência. Por isso, o livro contém capítulos dedicados a cada uma de suas principais experiências com o audiovisual. Das alegrias aos traumas conquistados nos projetos, alcançamos aqui lampejos de seu processo criativo, dos temas e interesses que o movem. “Se Lynch compreendesse totalmente a história – e quisesse que a audiência ligasse facilmente os pontos – não teria tido o impulso de filmá-la. Ele prefere operar na brecha misteriosa que separa a realidade cotidiana do campo fantástico da imaginação e do desejo humanos, e busca o que desafia as explicações e o entendimento.”
Há muito o que dizer sobre “Espaço Para Sonhar”. Como as batalhas travadas por Lynch contra quaisquer possibilidades de pasteurização de sua arte – Hollywood é voraz, como bem sabemos. “David é um diretor que leva sua visão até a montagem final. Se está na cama com ele, você não pode querer discutir por bobagens – ou você embarca na sua visão e na sua órbita, ou não embarca, o que tanto atrai quanto repele investidores em potencial”. Ou sua produção musical, mais um dos campos artísticos em que o diretor mergulhou com afinco, sobretudo, nas últimas décadas. Há, ainda, a relação fundamental do artista com a “meditação transcendental” e como a técnica é umas das chaves para pensarmos também sua obra.
No fim, ainda que avancemos ao longo de quase 600 páginas, é curiosa a sensação de parecermos apenas tocar a superfície da obra e do pensamento lynchiano. Ele próprio comenta, “é possível fazer um livro inteiro sobre um só dia e ainda assim não captar tudo”. Quanto mais uma trajetória de mais de meio século que opera, sobretudo, na chave lacunar e misteriosa dos sonhos. “Cada vida é um mistério até que cada um de nós o resolva, e é aonde todos vamos, saibamos ou não”, o artista conclui.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.