texto por João Paulo Barreto
Quando “Toy Story”, primeiro longa da Pixar, foi lançado em 1995 como sendo (junto ao nacional “Cassiopeia”, é bom lembrar) um marco precursor do cinema de animação feito inteiramente em computador, a curiosidade visual por aquela experiência fílmica e voltada à sua tecnicidade totalmente digital foi logo substituída pelo encantamento gerado através de um apelo emocional contagiante. Neste processo, descobrimos que compartilhávamos do mesmo amor de Andy, um garotinho de imaginação fértil, por seus brinquedos (em especial, um cowboy chamado Woody e um astronauta de nome Buzz). Tal amor penetrava de maneira profunda na emoção do público ultrapassando o impacto comicamente maravilhoso que a química entre o visual tecnológico e a tenra fofurice (aqui, uso um termo técnico da crítica especializada) que todos aqueles brinquedos que ganham vida possuíam.
Uma quadrilogia “Toy Story” inteira depois, espaçada por 24 anos, junto a construção de uma ainda mais forte sensibilidade emocional no abordar da importância do brincar na infância (sem exagero, o final da parte três de “Toy Story” é a mais dolorosa experiência cinematográfica da década passada) e unida a uma trajetória louvável de seu estúdio nessa mesma sensibilidade ao se aproximar com delicadeza de outros temas pesados dentro de um cinema essencialmente infantil, tornam a premissa de “Lightyear” (2022) muito especial. Aqui, um dos citados brinquedos preferidos de Andy, o astronauta Buzz, tem sua origem fílmica contada a partir da mesma origem à qual o garotinho Andy, em 1995, foi apresentado. Antes de se tornar o brinquedo que faz par a Woody, Buzz era o personagem de um filme admirado por Andy. É justamente a esse filme que assistimos agora.
Aqui, o obstinado astronauta Buzz Lightyear precisa achar uma maneira de levar toda a tripulação da sua nave populacional de volta à Terra após um acidente que ele não conseguiu evitar danificar de modo quase irremediável o veículo espacial. No processo, ao fazer os testes desafiando os limites da velocidade da luz nos arredores atmosféricos do planeta refúgio, vê os anos passarem de modo contínuo. O resultado é a sua permanência ainda jovem enquanto toda sua geração dentro do planeta refúgio envelhece gradativamente em intervalos de quatro anos a cada retorno seu de suas viagens diárias ao espaço.
A oportunidade, aqui, claro, é aproveitada de maneira precisa pelo diretor e co-roteirista Angus MacLane, que explora a ideia do envelhecimento e da passagem do tempo com uma ternura emocionante. A proposta de vermos a solidão de Buzz em sua dedicação ao seu trabalho sobrepor-se à sua própria vida como alguém que abre mão da mesma em detrimento das suas responsabilidades como astronauta, gera no espectador impacto emocional semelhante àquele visto no prólogo de “Up – Altas Aventuras” (2009) ou até mesmo “Toy Story 3” (2010) em seu final destroçador.
Em “Lightyear”, a premissa de criar elipses utilizando o modo como a passagem do tempo não é aproveitada por Buzz nos atinge de modo pesado logo no seu primeiro ato. O momento em que um dos personagens lhe deixa uma mensagem de despedida gravada, uma vez que a velhice e a consequente morte lhe alcançaram, não é para fracos. Nos outros, as gags visuais envolvendo cipós vivos que “sequestram” humanos, um robô felino que rouba a cena com suas tiradas, além de Taika Waititi mais uma vez garantindo as risadas em sua dublagem, concede à aventura do Buzz real (dublado pelo Capitão América Chris Evans na versão original e por Marcos Mion na versão dublada) o equilíbrio entre lágrimas e gargalhadas que a Pixar comumente alcança em seus projetos.
Metódico e disciplinado, o Buzz de carne e osso tem muito da personalidade daquele brinquedo que conhecemos há tantos anos, principalmente quando o filme o coloca narrando os acontecimentos em seu diário de bordo ou quando o herói passa a descrever a importância do seu traje espacial. Em tal disciplina, “Lightyear” traz pequenos detalhes que criam no espectador a empatia pelo que passa o jovem astronauta quando perde o controle de sua própria missão. São pontos como aquele quando o vemos escolher suas refeições entre caixas que apenas dizem “Café da manhã”, “Almoço” e “Jantar”, ou quando ele evita qualquer interação divertida com seu gato robô para não perder o foco em sua atividade, e que denotam o peso de sua responsabilidade e como isso o afeta.
Para os familiarizados com “Toy Story”, não é novidade falarmos do vilão Zurg, que, ao final, em uma divertida referência a “Star Wars”, revela-se pai de Buzz no melhor estilo Darth Vader e Luke Skywalker, na cena chave de “O Império Contra-Ataca” (1980). “Lightyear”, porém, vai além do que já esperamos dentro dessa piada e traz um embate que beira o filosófico nietzcheano do encontro do homem consigo mesmo e a definição que somos nós mesmos os nossos piores inimigos.
Em uma animação que traz a referência um tanto esperada, mas não menos deliciosa de se ouvir, de David Bowie e seu clássico “Starman” logo em seu trailer, pensar no modo como o filme consegue caminhar entre aspectos puramente cômicos e ingênuos, para questões existencialistas e filosóficas, bem como chegando a teoremas de física quântica em um roteiro que nos leva tanto às lágrimas quanto a gargalhadas, bom, a Pixar sabe o que faz.
Agora, que tal uma animação estilo “Rango” (2011) nos contando a origem de Woody?
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.