entrevista por João Paulo Barreto
Nenhum jornal noticiou à época. Mas no dia 6 de julho de 1957, um evento de importantíssima relevância aconteceu durante uma festa nos jardins de uma igreja em Liverpool, cidade portuária da Inglaterra. Neste dia, um garoto de 15 anos chamado James Paul McCartney se tornou amigo de um jovem de 16 anos chamado John Winston Lennon. Em um exercício de imaginação dentro do conceito do bater das asas de uma borboleta, se tal evento não tivesse acontecido por qualquer razão, seja um ônibus quebrado que impedisse um dos dois de estar ali naquele momento, ou se, por ventura, uma chuva torrencial caísse durante aquele dia de verão adiando a festa, o século XX teria sido outro.
Tal data, em 2022, completa 65 anos. O mais jovem dos dois rapazes chega aos 80 em sua longevidade plena. O outro, infelizmente, foi brutalmente retirado de nós aos 40. Mas este relato aqui propõe algo que vai além da falta que John faz. Essa breve homenagem é sobre o marco alcançado pelo eternamente jovem, mas, agora, octogenário, Paul McCartney. Ou, para alguém que alcançou algo para além da simples “fama”, ser reconhecido apenas por “Paul” define sua importância dentro dessa muitas vezes fugaz e insípida Cultura Pop. No caso de Sir Paul, nada de fugaz o insípido pode adjetivar sua sólida trajetória artística.
Em sua biografia autorizada, “Many Years From Now”, escrita por Barry Miles e lançada em 1997, o autor relembra a ocasião em que Paul lhe contou acerca de um passeio a cavalo que fez com sua então filha mais jovem, Stella, nascida em 1971. Durante a cavalgada, o eterno beatle ouviu da criança uma estranha pergunta que ressoou profundamente em sua mente e foi de encontro a algo que durante todos aqueles anos de estrelato lhe fizera refletir. “Você é Paul McCarney, não é?”, perguntou seu rebento. Stella ouvira falar do tal músico na escola como se ele fosse uma figura diferenciada do seu próprio pai. No livro, Miles aprofunda essa impressão através das palavras do próprio Paul, afirmando que ele está consciente dessa outra persona que só em parte se relaciona com ele.
“Sempre tive essa coisa da diferença entre ‘ele’ e ‘eu'”, explicou Paul ao seu biógrafo. “Ele está no palco e é famoso. Eu sou apenas um garoto de Liverpool. Mesmo na minha idade, ainda me sinto a pessoa que tenho sido desde que me lembro, desde os cinco ou seis anos. Sinto-me o mesmo cara e, claro, sou ele mesmo. Todos os troços que aconteceram depois não chegaram a afetá-lo tanto assim. O que eles afetaram foi a figura lendária que eu talvez estivesse encarnando”, disse Paul no mesmo depoimento ao livro.
A questão do equilíbrio psicológico diante de tamanho status de sucesso alcançado pelos Beatles; o modo como ele lidou com isso nas últimas seis décadas; a forma como a fama refletiu em sua visão de mundo e foco em seu bem-estar; a sua notória tendência à vida doméstica e familiar. Em sua separação entre o homem “Paul McCartney” e o símbolo cultural que esse nome representa, o ser humano filho do casal James e Mary McCartney alcançou em sua serenidade um modo de não se tornar escravo de seu próprio sucesso.
“De vez em quando, paro e penso: ‘Puta que pariu! Sou Paul McCartney! Que viagem! Paul McCartney!'”, comentou Paul na mesma conversa com Miles. “O nome já soa como uma lenda. Mas é claro que a gente não vai querer ficar pensando muito assim, porque a coisa alucina. Existe a tentação de acreditar nisso tudo, de ser e de viver essa lenda. E há também a tentação de usar a lenda em vez de vivê-la. Quando saio em turnê, fico feliz por ter a lenda. Não gostaria de tentar entreter estádios lotados sendo apenas um cara comum”, brinca o beatle.
Outro hitmaker e compositor multi-instrumentista, Guilherme Arantes define Paul de modo direto: “No aspecto musical, ele é impecável como contrabaixista. Cravou uma marca e linhas de baixo históricas que fizeram com que os Beatles tivessem um alicerce único no pop mundial e na história do Rock. Para mim, como contrabaixistas, ele, o Sting (The Police) e o Chris Squire (Yes) são pilares”, exemplifica Guilherme em entrevista ao Scream & Yell. “Paul McCartney me parece que cumpria uma função que seus lóbulos intuitivo e racional se alternavam nessa lobotomia dos Beatles. Ali, ele cumpria uma função ordenadora. Era a disciplina da música dos Beatles. Sua melodias têm um rigor melódico maior do que as das músicas do Lennon. Então, essa competição fez com que essa química Lennon & McCartney fosse imbatível”, pontua Guilherme.
Ainda em relação a essa disciplina do compositor de “Yesterday”, Arantes vai além e o compara a Johann Sebastian Bach. “Ele consegue as músicas mais sucintas e mais geniais, como ‘Hey Jude’ e ‘Yesterday’, que são canções minimais. Ele é o mais assertivo musicalmente. Consegue ser o mais sintético e, portanto, o mais bachiano”, descreve o compositor de clássicos como “Meu Mundo e Nada Mais”, “Planeta Água” e “Coisas do Brasil”.
Disciplina, genialidade, equilíbrio, vida familiar, vida saudável e respeito aos próprios limites. “Desejo a você uma boa morte”, lhe disse uma senhora irlandesa certa vez, causando-lhe um inicial susto, mas, em seguida, fazendo sentido em sua mente e despertando-lhe uma consciente fagulha em seu instinto de compositor. A canção que surgiu desse encontro se chama “The End of The End”, pepita escondida em seu disco de 2007, “Memory Almost Full”. Na letra, um pedido não de modo mórbido, mas consciente de uma existência plena: “No dia da minha morte, quero que piadas sejam contadas e histórias de antigamente sejam desenroladas feito tapetes nos quais crianças brincam e se deitam enquanto escutam essas histórias”.
Poucos compositores podem falar com tamanha naturalidade e sem dramatização barata sobre sua própria finitude. Aquele que escreveu “Eleanor Rigby”, “Maybe I’m Amazed”, “She’s Leaving Home”, “Let it Be” e outras obras que pavimentaram a estrada da música na era moderna é um deles. Que esse final tarde a chegar. Feliz aniversário, Paul.
Aqui, nessa entrevista ao Scream & Yell, o cantor, compositor e máquina de fazer hits, Guilherme Arantes, traz sua visão sobre esse marco da vida de Paul McCartney, sobre o showbiz e sobre ser brasileiro dentro da música mundial. Confira!
Guilherme, primeiramente, lhe agradeço pela disposição de conversar comigo sobre Paul McCartney. Após nosso papo do ano passado, seu nome foi o primeiro que me veio à mente quando essa pauta homenagem surgiu. Quero começar lhe perguntando quem é Paul McCartney para você.
Eu que agradeço. Falar da ignorância, do período ignorante que estamos vivendo, é chover no molhado. Mas falar de Paul McCartney é bacana porque é uma figura muito importante, muito agregadora. Na minha vida, ele teve um papel muito grande. Paul McCartney faz parte de um conjunto, de um coletivo. Claro que ele tem o valor individual dele. Até posterior a esse coletivo. Mas a química que se formou entre McCartney e Lennon, e depois com a entrada do George Harrison competindo nas composições, fazem com que ele seja a maior usina criadora do século XX. Paul cumpriu um papel ordenador. De longe, musicalmente era o mais notável. Acho que, dos Beatles, ele e o George eram musicalmente privilegiados. Lennon era muito bom compositor de melodias, um grande melodista, mas, como músico, instrumentista, não marcou tanto quanto Paul. Em primeiro lugar, McCartney é um grande executante. No aspecto musical, ele é impecável como contrabaixista. Ele é um contrabaixista muito importante que cravou uma marca e linhas de baixo históricas que fizeram com que os Beatles tivessem um alicerce único no pop mundial e na história do rock. Para mim, como contrabaixistas, ele, o Sting, o Chris Squire são pilares. Agora, Paul me parece que cumpria uma função que seus lóbulos intuitivo e racional se alternavam nessa lobotomia dos Beatles. Ali, o Paul McCartney cumpria uma função ordenadora. Ele era da disciplina da música. As melodias dele têm um rigor melódico maior do que os das músicas do Lennon. Essa competição fez com que essa química Lennon & McCartney fosse imbatível. Tenho uma visão de que os Beatles perderam os dois grandes intuitivos e ficaram os dois performers. Perdeu Lennon e Harrison, que eram as almas mais transcendentes. McCartney é mais pé o chão, muito organizado. Trouxe o rigor bachiano aos Beatles. Ele é o lado Bach dos Beatles. Ele é o lado genial e organizativo. Isso, ao longo do sucesso nos anos 1960, foi avançando e ele passou a predominar à medida que o Lennon ia fritando os neurônios com ácido, mescalina e heroína. Foi muito custo para ele se reaprumar. Mas ele conseguiu no tempo do “Double Fantasy”. Com a própria “Imagine”. São canções de uma altitude que o próprio McCartney não conseguiu na carreira solo dele. Agora, dentro da química do grupo, ele passa a predominar a partir do “Rubber Soul”. Acho que no “Sgt. Pepper’s” foi onde aconteceu a explosão da intuição lisérgica do Lennon. Já no “Magical Mistery Tour”, começa a predominar um pouco o Paul McCartney. Com o “Let it Be” e “Abbey Road”, só dá ele. Ele passa a ser o líder da banda.
Sim. Lembrei agora do documentário do Peter Jackson, o “Get Back”.
Sim. Isso aparece muito no documentário. É engraçado porque não consegui assistir ao filme todo, pois me dá aflição desvendá-los muito em ação. É um voyerismo que prefiro deixar no território do meu sonho de menino. O que eles deixaram é uma coisa que é muito difícil de devassar. Eu comecei a assistir e vi que, por exemplo, não tinha nada a ver a Yoko Ono ali, fazendo contas como se fosse uma grande “manager” ali sentada. E ao mesmo tempo os Hare Krishnas ali com o George. Parecia que ali havia virado um território aberto. Todo mundo levando um monte de bicão lá dentro e o Paul tentando fazer o serviço dele, que era organizar os Beatles. Agora, voltando, devo dizer que acho o Paul McCartney um letrista fraco. Eu o acho um letrista de poucos recursos. Ele é um grande músico. Algumas canções ele conseguiu, realmente, nessa competição, se superar, como “Yesterday”, “Eleanor Rigby”, “Let it Be”. Como letrista, ele criou uma vertente de contar a história de alguém. Sempre contando a história de um personagem. (Cantarola a letra de “Maxwell’s Silver Hammer”). É típico do Paul contar histórias de personagens que ele observava do dia a dia da Inglaterra. Ele sendo muito britânico, claro. Já o Lennon atravessava mais essa barreira. Mas, também, era uma fórmula que eles desenvolveram a dois. “Norwegian Wood”, por exemplo. Lennon era mais pessoal, assim. Era mais autobiográfico. E o Paul era mais biográfico. Ele não tinha tantas dores interiores. É uma pessoa mais estruturada. O Lennon era muito desestruturado, muito fraturado em sua infância. Já o Paul, não. Já é um cara parecido comigo. Um cara que não tem uma assinatura tão exposta da infância e da adolescência, de rebeldia. Então, eles ficam com essa química, essas funções. Acho que o Paul é o grande organizador da parte Bachiana. Ele é o Bach da parada. Aquele que coloca as fórmulas magistrais, melódicas. As mais magistrais são as dele. Agora, faço essa colocação que disse antes. Ficaram os dois entertainers. Disso se conclui que o mundo preserva os entertainers. E o mundo maltrata os visionários. Ele provavelmente vai passar dos 100 anos de idade. Ainda mais sendo uma pessoa disciplinada como é. E uma figura muito simpática. Nunca me passou uma antipatia. O Lennon, às vezes, era antipático, intragável. Ele tinha esse lado Raul Seixas de incorporar um personagem transgressor. A necessidade da transgressão. E o Paul já vem com isso resolvido dentro dele. Agora, ele é o granfino do Beatles. Ele namorava a Jane Asher, que era uma atriz do circuito dos musicais de Londres, uma atriz granfina. Ele morou na casa dela. Ele era classe média alta, sempre foi o granfininho dos Beatles. É interessante, isso.
Esse perfil de homem doméstico era bem notório nele. Um cara que gostava da ideia da vida conjugal e trazia esse equilíbrio para seu trabalho como compositor.
É por isso que eu o comparo com o Johan Sebastian Bach. O Bach foi um cara que viveu para a família, viveu para os 17 filhos que teve. De casa para a igreja, da igreja para casa, lá em Leipzig. Não saia de lá. Era um cara totalmente organizado e metódico. Todo dia era dia de trabalho. Era um operário de acordar cedo. E não tinha as flutuações existenciais do Chopin, ou as alternâncias de ordem na vida que tinha o Mozart. São pessoas mais lineares, o Paul e o Bach. Já o Lennon era muito instável. O McCartney consegue ser o metódico da banda. E o George é o mais intangível. A obra e a vida dele são extremamente oníricas. Mas é em um plano religioso espiritual. E o Lennon era um mundano que viveu esses altos e baixos. E eu acho a Yoko uma figura incrível, altamente instigante, que chegou na vida do Lennon. E o Paul, nesse aspecto, ele fica devendo. Porque tanto a Jane Asher quanto a Linda Eastman são mulheres mais caretas, mais família, mais pé no chão. Isso, de certa forma, prejudica o alcance transformador que os dois outros conseguiram conquistar em voos mais ambiciosos. Agora, volto a frisar, no aspecto musical, o mais organizado e metódico, era o Paul. Ele consegue as músicas mais sucintas e mais geniais, como “Hey Jude” e “Yesterday”, que são músicas minimais. O mais assertivo musicalmente, e que consegue ser o mais sintético, portanto o mais bachiano, o mais Johan Sebastian Bach de todos.
Sua facilidade em criar músicas marcantes a partir de algum mais simples impressiona, mesmo.
Sim. Eu, na minha carreira, tenho meu lado Lennon e o meu lado McCartney. O meu lado McCartney é assim: (cantarola) “Foi tão bom te conhecer…” Isso é ser assertivo em três notas, como ele fez em “Hey Jude” e “Yesterday”. Ou então: (cantarola): “Só você pra dar a minha vida…” São música monossilábicas que o Paul McCartney conseguiu cravar várias vezes. Os dois outros aprenderam com ele a fazer isso. Ele era o mestre nesse aspecto de cravar. “She Loves You yeah yeah yeah”. Isso é McCartney. Ele era muito sintético. E os outros foram aprendendo com ele. Agora, é interessante porque ele era mais novo que o Lennon. O John tem um aspecto interessante porque ele fez faculdade de arte. Então, ele tendo feito faculdade de arte, ele foi inoculado por um germe de Marcel Duchamp. Desses transgressores da arte. E isso influenciou muito a arte do Lennon em buscar mais o revolucionário. O Paul é mais um que estava estabelecendo os alicerces do rock mundial. No “Rubber Soul”, a concisão nas melodias era coisa do Paul McCartney. Ele era conciso. Ele não era prolixo. Já o Lennon era mais prolixo. E os dois (Lennon e Harrison) foram aprendendo com ele. Acaba sendo o grande mestre da canção sucinta. É o grande mestre da objetividade na canção pop. Agora, eu tenho uma crítica. Não querendo desmerecer a história do Paul McCartney. Mas com o passar do tempo, na carreira solo, eu acho que quem mais se sobressaiu, que explodiu, foi o Harrison. No “All Things Must Pass”, aqueles discos posteriores em que ele se viu livre para poder fazer a obra dele. E você pode ver que já no “Abbey Road”, as músicas mais geniais são “Something” e “Here Comes the Sun”. Disparado! Para mim, para o meu gosto. Ali, com essas duas, o Harrison carregou a banda nas costas Paul carregou a banda nas costas no “Let it Be”. O Lennon, ali, estava prejudicado em sua criatividade, estava com a vida pessoal bem atrapalhada. Muito conturbada. O negócio dele agredir mulher. Ele tinha esse background. E também com a Cynthia (Powell, primeira esposa). Aquela música “Jealous Guy”, ele tinha acabado de agredir a Yoko. É uma coisa inimaginável para um cavalheiro como o Paul. Eu o acho uma figura mais familiar, mais sensível. O Lennon era um cara muito complexo. Muito difícil. O Paul é essa figura que eu acho que, agora, na era do entretenimento, acaba colhendo os frutos de uma existência tão fertil, de tanto repertório, e de uma saúde mental, física e espiritual que ele merece. Agora, ele passou também por aquele casamento com a Heather Mills. Você observa que a recuperação dele é muito mais rápida do que um Phil Collins, que acabou emburacando em uma bad horrível. O Paul é alguém bem estruturado. Ele mostra que é uma pessoa preparada para a vida em longo curso. Não tem esse drive de autodestruição.
Esse equilíbrio desde sempre acabou refletindo diretamente em sua longevidade, nessa sua postura de beatle de palco, essa face enterntainer como você colocou bem.
O mundo atual é um mundo que privilegia muito os entertainers. O próprio Elton John, por exemplo, se transformou em um entertainer de si próprio. Ele perdeu aquele “cutting edge” do rompimento, do romper caminhos. E hoje ele é um entertainer e com grande merecimento. Mas é uma época de Maroon 5, é uma época de Justin Timberlake, é uma época na qual os entertainers ganharam o mundo. E o Paul está lá no panteão dos grandes entertainers porque ele era o que balançava a cabeça para as meninas gritarem, enquanto isso o Lennon estava observando e achando aquilo babaca. Um dia isso ia estourar nos Beatles. Mas eu acho que o Paul merece todo esse sucesso e essa felicidade a longo prazo que ele conquistou, com tantas canções incríveis. “The Long and Winding Road”, por exemplo. Raras vezes o Lennon foi tão longe, sabe? Aquilo, realmente, é de uma beleza, uma coisa que sempre me faz chorar. Ele consegue me fazer chorar. Não é um pragmático, simplesmente. Ele vai bem mais além do pragmatismo. Não é um Adrian Levine da vida. Ele fez algo como “The Long and Winding Road”. Durante muitos anos, os Beatles foram forçados a criar. Eles foram empurrados pela indústria para criar mais e mais. Isso foi uma usina. Chegou um momento em que eles viviam de férias. Tem uma passagem que eu acho que é quando ele faz “Hey Jude”, ele está em Portugal, no Algarve. Eles viviam de férias porque sofreram uma pressão tão grande durante alguns anos. Faziam dois discos por ano. O mercado fonográfico era assim, assassino. O próprio Chico Buarque fazia dois discos por ano. Toquinho e Vinicius. Nara Leão. Essa gente fazia um disco no primeiro semestre e outro no segundo. É uma loucura isso pensar que era assim o mercado. Então, os Beatles sofreram muito. Porque eles tinham que arrancar leite das pedras. É um período que foi o melhor do Lennon, quando ele se recolheu em uma casa nos arredores de Londres, quando ele fez “ Strawberry Fields”, a fase lisérgica dele em que ele vivia compondo dentro de casa. Viajandão, mas estava compondo. Estava focado. Agora, os Beatles viveram muito atribulados. Virou uma coisa que eu não consigo decifrar muito aqueles anos. Decifrar o que foi ser um beatle naquela época. Deve ter sido bastante arriscado, bastante limítrofe. O Paul resistiu bem a essa pressão e foi o grande criador. Fez uma quantidade muito grande de músicas e carregou muitas vezes o Lennon nas costas. Essa é a verdade.
Em nossa conversa do ano passado, você me falou sobre estar se sentindo equilibrado em sua fase da vida chegando em breve aos 70. Paul McCartney chega agora aos 80 e é interessante observar como ele passou por diversas décadas e movimentos musicais sem perder sua identidade. O artista tem isso em sua opinião? Não diria uma preocupação necessária em se adaptar, mas, sim, em manter a própria personalidade e identidade como músico?
Olha, há uma distância abissal entre um artista anglófono como ele, como o David Bowie, e os artistas brasileiros. O artista brasileiro tem uma precariedade absurda. E principalmente com o tempo passando, o Brasil é um país que oferece a morte ao artista. É a morte lenta e anunciada. Porque não tem permanência nenhuma, a não ser que você tenha um viés político. O Brasil é um país que é só política. Só se fala em política. A questão do Paul McCartney, ele consegue na maturidade, como o Elton John conseguiu, uma vida mais regrada e usufrui de um repertório maravilhoso que ele tem. Um repertório impecável. Paul consegue essa sobrevivência que é muito difícil para o brasileiro. Muito difícil. Ela é muito problemática. Nem mesmo o Tom Jobim, que é o nosso maior de todos. Ele morreu entristecido, magoado. Morreu não esquecido, mas sem estar no patamar de qualidade que merecia estar. Então, quando você me pergunta isso, hoje, o meu maior desafio é sobreviver como pessoa sendo brasileiro. Porque o Brasil é um país que destrói as pessoas. Destrói o cidadão. Ele destroça as vidas. O Brasil é um país canalha que destroça vidas humanas. Seja de um lado ou de outro, o esquecimento é geral e irrestrito. Todos sofrem. O Brasil é o país dos Belchiores. É o país dos Taiguaras. É o país dos Vandrés. É o país dos Simonais. A lista de pessoas que não chegaram (e mereciam) a usufruir o que um Paul McCartney, o que um John Lennon conseguem, é interminável. Porque existe um mercado e uma cultura que dá uma sustentação. Paul é uma estrela de um tamanho descomunal. Os shows dele são celebrações de beleza, de qualidade, de voz maravilhosa, de músicos, de repertório irretocáveis, ingressos estratosféricos para valorizar o tamanho daquilo. De você estar diante de uma coisa que é magnífica. Agora, você vê a diferença de uma carreira como a minha. É uma carreira completamente minguada, que você é reconhecido por uma ou duas músicas. A tendência é as pessoas só quererem ouvir “Cheia de Charme”. A tendência é ninguém, daqui a dez anos, lembrar nem do “Planeta Água” nem de nada. O Brasil é um país canalha. Então, para se fazer uma comparação de artistas, é muito problemático. E não é um ou dois. Você tem o Elton John, o Billy Joel. As pessoas têm uma margem para se autodestruírem, como o caso do Phil Collins. O showbiz internacional anglófono dá margem a uma possibilidade para que as pessoas, como o caso que você fez uma matéria sobre o Bob Dylan. O Dylan tem qualidade crítica. Uma qualidade de crítica ao mundo e à sociedade. Ele mantém o tônus de um grande nome da música sem grandes problemas. Eu estou entrando nesse assunto de um país como o Brasil porque chega a ser inferior até aos demais povos latinos, como a Argentina. A Argentina tem ídolos do rock que permanecem com grande tamanho.
A língua portuguesa, de fato, cria esse limite em relação ao alcance de nossa música em âmbito mundial.
Nós vivenciamos algo diametralmente oposto ao que os artistas anglófonos vivenciam. Nós não temos alcance nenhum. Nossa língua pega Moçambique, Angola, um pouco em Portugal, que não dá muita bola para nós. Nós não temos uma cobertura. O Paul McCartney é um cara que viaja para o Japão, que vai para a China, que faz shows por toda a Europa. Ele mantém um tônus de qualidade, ele querendo e sendo como ele é. Não é que eu tenha despeito ou inveja dessa realidade, mas eu estou aqui falando, eu sou o Guilherme Arantes. Dentro do meu tamanho, eu sou um Paul McCartney, dentro da minha dimensão e dentro das proporções. Mas, o fato é que o que de pior pode acontecer com um artista é ele ser esquecido. E isso não corre o risco, por exemplo, para um Stevie Wonder, para um Bob Dylan, para o David Bowie. As pessoas já não logram o mesmo sucesso, nem o Paul McCartney nem o Mick Jagger, por exemplo, com toda as qualidades, com toda a importância. Eles lançaram discos recentes que têm uma boa aceitação, mas já não têm aquele “cutting edge” de outras épocas em que eles estavam em uma ponta de lança. Mas é notável como o showbiz internacional consegue manter os nomes, mesmo as bandas de metal. Há dignidade para um Dave Mathews Band, há dignidade para Alanis Morissette, há dignidade para Cyndi Lauper. E o Brasil não oferece dignidade. Ele vai matando. O direito autoral vai minguando e chega ao ponto do Guilherme Arantes receber R$ 5 mil de direitos autorais no mês. Isso eu estou te falando que é uma realidade. Falar de Paul McCartney é falar de uma coisa inatingível e inimaginável para nós. Estamos fazendo negociações de ativos musicais. O Sting fecha por US$ 300 milhões o acervo dele. E o que é oferecido para o Guilherme Arantes são R$ 2 milhões. Que não dá nem US$ 300 mil. Essa é a realidade de ser brasileiro. Ser brasileiro é uma coisa que nos coloca na ralé do mundo. Na ralé. Não somos nada. Não apitamos porra nenhuma. Então, eu olho, assim, o tamanho do Paul McCartney. Eu tenho músicas que são boas como as dele. “Um Dia Um Adeus”, “Planeta Água”, “Amanhã”. São músicas que se fossem anglófonas, eu seria um Billy Joel no mínimo. Mas, não. Um compositorzinho comparado a Byafra e Dalto, entendeu? É isso que é o Brasil. A gente sente a diferença. Falar do Paul McCartney é falar de uma coisa que… (pausa) Eu gostaria de ter nascido em outro país. E eu acho que, hoje, os brasileiros estão todos compartilhando esse sentimento. O desejo de ter nascido em outra pátria. Uma vergonha profunda de ser brasileiro. Uma vergonha que não se resolve nunca. As nossas vidas vão se esgotar e a gente não viu nunca dar certo. E não vai ver. Porque a estrutura não é para dar certo. Um Paul McCartney é uma coisa que eu admiro bem de longe. É uma coisa que passa longe da minha vocação. E aí, nenhum compositor, nem Villa Lobos, nem Carlos Gomes, nem Radamés Gnattalli, os grandes, não são considerados nada. Nós somos trash no mundo. Então, a gente observa com inveja e observa com admiração como que o mundo anglófono consegue proporcionar carreiras tão longevas. O Paul McCartney, voltando ao tema dele, as suas excursões são maravilhosas. São muito bem-organizadas. Não têm precariedade em momento nenhum no caminho dele. O showbiz internacional é muito organizado. E bem faz a Anitta em procurar os seus caminhos latinos e mundiais, porque se você ficar pensando em termos de Brasil, você não vai a lugar nenhum. Você vê que o pessoal da Bossa Nova está todo mundo esquecido. Como é que pode? Então, a gente tem uma dimensão comparativa assim muito depreciada. É a gente olhar o showbiz, é uma admiração muito grande. Isso não é só o artista que contribui para esse tamanho. É nisso que eu quero chegar. Existe um contexto que faz com que o cara chegar aos 80 anos, o Paul McCartney, ele realmente tem que ser homenageado e tudo que envolveu a construção dessa carreira maravilhosa. É muita gente. Tem os maestros, tem o George Martin. É um conjunto de coisas que eles têm esse privilégio. Agora, a gente olha com inveja (risos). A palavra é essa. No final, não chega a ser despeito nem raiva, mas a gente fica admirado como que uma carreira pode ser tão bem-sucedida por tantas décadas.
Entendo perfeitamente o que você quer dizer sobre o Brasil. Posso soar romântico em relação ao que vou dizer, mas, mesmo nutrindo todo esse amor pelos Beatles, tem o mesmo apreço pelo o que você fez, pelo o que Chico Fez, pelo o que o Milton fez com o Clube da Esquina, por exemplo. Para mim, são pilares.
O Clube da Esquina foi eleito o melhor álbum brasileiro de todos os tempos. Para mim, ele sempre foi. Não tem para ninguém. O Clube da Esquina é monstro. É uma coisa de um tamanho descomunal. Inclusive, maior do que muitos desses grandes nomes internacionais. Ali é progressivo, é uma poesia impecável. São lindas as poesias, as músicas, a motivação, o momento daquela gente. Essa lista que saiu dos melhores discos que tem lá o “Chega de Saudade”, tem o “Construção”, do Chico Buarque, tem o “Elis & Tom”, que também é monstruoso. Eu não estou falando do valor artístico das pessoas. Pelo contrário. Nós somos um país que temos uma química na música brasileira que é única no mundo. Ela advém dos salões onde ocorriam o sarau. O sarau na casa brasileira gerou o samba-canção. Gerou a Bossa Nova. Gerou o Chorinho. Isso vem de uma tradição da casa brasileira ser um miscigenador de classes e de raças desde a fundação do Brasil. Eu sei porque a minha família e várias famílias brasileiras têm como fundamento musical a própria família e música feita no sarau da casa brasileira. Assim, foram geradas as famílias musicais. A família do Chico, a família do Milton, da Ana Carolina, do Nando Reis, do Guilherme Arantes, da Marisa Monte, da Zelia Duncan, de todo mundo. Nós sempre tocamos música dentro de casa. Então, a casa brasileira é de onde vinha isso. As pessoas das comunidades, Nelson Cavaquinho, Cartola, Pixinguinha, vinham tocar música de alta qualidade e assim se gerou a música mais linda. Isso que eu estou falando é porque é uma grande injustiça histórica. Não é porque nós somos nanicos, não. É que na geopolítica cultural do mundo, a gente é muito prejudicado. Embora seja a música mais fantástica. Você não tem essa química na França. Você não tem essa química na Espanha. Só no sul da Espanha. No sul da Andaluzia, você tem essa mistura, que é o flamenco. Uma cultura intrafamiliar. A música americana tem, por causa do Jazz, por causa da invasão da cultura africana e essa mistura gerou uma música potente. O Brasil é a segunda música mais potente do mundo. Então, isso que eu estou apontando é porque existe uma injustiça muito grande quando a gente compara os grandes nomes da música mundial e os grandes nomes brasileiros acabam tendo uma reverberação muito pequena perto da qualidade que a música brasileira contém intrinsecamente. Isso aí, quando a gente viaja, a gente percebe a grandeza da nossa música. Quando eu viajo, percebo a grandeza da minha música. É uma música que seria viável em qualquer país. Porém, o showbiz é isso. Ele é cruel. Agora, essas coisas da política cultural do mundo é que me deixam de cabelo em pé de ver como você não tem carreiras desse tamanho, como Paul McCartney. Os brasileiros se apresentam fora, Chico, Caetano, esses grandes consolidados de uma era, eles ainda têm uma grande aceitação na Europa, mas é sempre de fundo político. Sempre por trás você tem uma mola política empurrando. Isso é um defeito. Por que eu estou falando isso? Porque o Paul McCartney não tem. Ele não tem a mola política. Talvez o Dylan tenha tido um momento em que ele era um poeta mais revolucionário. Mas não é uma condição como é no Brasil. Uma condição de permanência em um status de showbiz. Então, para muitas gerações, a gente olha coisas como aconteceram no movimento pop mundial e nós não passamos nem longe. É muito louco isso. Interessante você notar que o Paul McCartney não tem viés político. Nunca teve. Como pode o maior nome do pop mundial que permanece como uma obra transformadora que mudou o mundo, e o alicerce dele não é.
Diante de uma tão vasta carreira, você conseguiria cravar seus trabalhos preferidos dele?
(Pensativo) Olha, vou ficar no óbvio de “Yesterday”… “The Long and Winding Road”, que eu acho a obra-prima do Paul. E “Eleanor Rigby”, que é uma música inacreditável. O “Revolver” acaba sendo o meu disco predileto dos Beatles. Inclusive, até da parte do Lennon. “She Said She Said” eu acho uma coisa inacreditável de bacana. E “Taxman”, do George. No “Abbey Road”, “Because”. Nossa! Aquilo é um absurdo. E, também, “Michelle”, que é puro Paul McCartney. “If I Fell” é uma coisa linda, também.
Como multi-instrumentista, Paul McCartney passou por fases de composições que vão desde o violão e contrabaixo até o piano, um dos seus principais meios de expressão musical. Você, Guilherme, também passou por isso em sua carreira, sendo que o piano se tornou sua marca. Para você, como se dão essas transições? No caso de Paul, que já tinha proximidade com o instrumento por causa do seu pai, foi providencial ter morado na casa da Jane Asher e lá ter um piano de armário ao seu alcance.
Sim. Isso aconteceu por causa da Jane Asher, que tinha um piano em casa quando ele morava lá. E ali ele focou no piano e começou a sair um monte música. É o tal negócio: ele tem em uma namorada importante, uma atriz extremamente bonita, uma mulher forte, com potência como artista, como atriz. E aquilo foi muito instigante para ele. Tanto que ele foi morar lá em pleno auge dos Beatles. E ali ele se sentou ao piano. Foi fundamental aquele piano de armário na casa da Jane Asher. Às vezes, é uma bobagem. Ele podia estar em um outro lugar. Mas lá ele se sentia bem. E ali ele tinha firmeza espiritual para criar. O que ele construiu ali é uma fase inacreditavelmente boa para ele. Acho que a Jane Asher foi muito positiva. Não sei se a Linda Eastman foi tão fodona assim na vida do Paul McCartney. Não sei. Acho que não. Acho que a grande mulher ali foi a Jane Asher. Eu sou fã da figura dela nesse momento. Ela o fez fazer muita coisa. A mulher ajuda muito. O cônjuge é uma coisa que ajuda muito a instigar a pessoa a ir buscar. Por exemplo, “Imagine” é uma criação da Yoko Ono. A letra de “Imagine” ela soprou inteira para o John. Isso é uma crença minha, sem provas, mas eu aposto nisso. Aquilo ali é a descrição de um pensamento estruturado da Yoko. E é maior obra prima da história do pop mundial que ela soprou inteira. Então, às vezes, as pessoas implicam com a Yoko, mas ela acabou dando a melhor ideia de todas: “imagine um mundo sem religião, sem propriedade, sem nada. Vivendo pelo hoje, pelo agora.” Nossa! Não tem preço uma ideia dessa. Eu sei por que uma vez a gente passou uma temporada em Nova York e eu fiquei curioso, pois tem um restaurante chinês atrás do Edifício Dakota onde eles faziam pedidos. E a dona tinha uma foto da Yoko na parede. Eu fui conversar com a dona. Ela disse que conheceu a Yoko pessoalmente. Papo vem papo vai, ela solta essa. Que “Imagine” é uma criação da Yoko. A letra de “Imagine”. Olha que loucura! Amarrando isso, que eu acho que é um palpite meu que acho que a Jane Asher foi uma mulher muito importante na vida do Paul McCartney. Isso porque era uma relação muito instigante. Já a Linda Eastman trouxe um “wellness” para a vida dele. Uma coisa mais californiana… de Santa Barbara. Agora, aquela intensidade dessas canções dessa época da Jane Asher, eu acho que tinha um drive mais exigente em cima do Paul. Não sei. Essas coisas acabam pesando. Como o Lennon. A Cynthia, sua primeira esposa, foi muito importante em uma fase da vida dele. Mas depois ele acabou conhecendo a Yoko e demorou para ela realmente contribuir. Porque ela competia muito, ela o puxava muito para fora do assunto. E ele ficou muito disperso. Ela foi muito dispersa. Acho Jane Asher muito importante na vida do Paul McCartney, é um palpite meu. Se a gente for se debruçar sobre as músicas que foram feitas. A própria “Yesterday”, desse período, ele compôs na casa dela. É inequívoco que a Jase Asher conseguiu extrair o melhor do Paul McCartney. A mulher tem sempre uma influência muito forte sobre a profundidade. O cônjuge. E vice e versa, também. O cônjuge tem sempre uma influência muito grande. O que você é capaz de gerar. O ambiente familiar, o ambiente doméstico, ele é muito importante.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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Há tempos não lia uma entrevista tão foda quanto essa. Como admirador dos primeiros discos de Arantes, fico sempre impressionado com a cultura pop dele. Brilhante.
eu só fiquei chateado com o teor depreciativo aos meus colegas Byafra e Dalto, em termos comparativos com um “compositorzinho como eu” . São grandes compositores e artistas, meus amigos, que eu admiro demais . Fui infeliz na colocação. Muito me envaidece ser incluido com eles, na “mesma turma” da Musica Brasileira . Guilherme Arantes !!!!!
Pensei isso quando li tb Guilherme Arantes. Até porque dalto é foda. Desde os anos 70 em bandas de rock e tals. E o Biafra emplacou no cancioneiro popular uma música com a letra de sonho de ícaro. Acho impensável hj isso acontecer. O cara ia no Chacrinha e cantava essa letra e a galera curtia.