texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
“Sérgio Godinho é um nome incontornável da música popular portuguesa – e talvez quem melhor possa fazer a tradução lusitana da nossa MPB”, escreveu Bruno Capelas certa vez aqui no Scream & Yell, “transitando entre o folk, a canção de protesto, a crônica social, com algum romantismo e, ok, vá lá, umas guitarras aqui e acolá” além de ter gravado com Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Ivan Lins e Zeca Baleiro – e Xutos e Pontapés, Clã e David Fonseca, entre tantos. Como diria outro, um ícone.
Godinho pousou na capital paulista com o pianista Filipe Raposo para integrar as celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em São Paulo: num dia, um bate papo, noutro, este show. A noite especial, realizada no bonito teatro B32, na elegante esquina da avenida JK com a Faria Lima, sofreu com alguns reveses, pois, parodiando Newton, se dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, dois eventos não podem ocupar o mesmo teatro na mesma noite, o que causou um atraso considerável na programação.
Ainda assim, um bom público aguardou pacientemente que os problemas de coxia fossem resolvidos para que o teatro fosse aberto e grande parte dos 300 lugares, ocupados. Após considerações do patrocinador, da agitadora cultural Anabela Cunha (da Connecting Dots) e de Paulo Jorge Nascimento, Consul Geral de Portugal em São Paulo, a música, sempre ela, não apenas surgiu para colocar um sorriso no rosto dos presentes como também os lembrou que ela pode, ainda, ser um poderoso veículo de ideias.
Com carreira iniciada oficialmente no início dos anos 70, Sergio Godinho também teve que enfrentar a censura em seu país natal (tal qual vários artistas brasileiros do período): “Os Sobreviventes”, seu primeiro disco, de 1971, foi proibido pelos militares, em seguida liberado e, três dias depois, proibido novamente e retirado de circulação, o que não impediu que fosse eleito disco do ano pela imprensa. Num autoexílio voluntário, Godinho se mudaria para o Canadá em 1972, se casaria com a cantora Sheila Charlesworth, e se estabeleceria numa comunidade hippie – ele só iria voltar à Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974.
Quase cinco décadas depois, Godinho é daqueles artistas que não se deve perder a oportunidade de ver e ouvir. Nesta noite, em São Paulo, o programa surgiu dividido em três atos: no primeiro, voz e piano (de Filipe Raposo), um extremamente bem-humorado e grato Godinho abriu cantando a poética “Pode Alguém Ser Quem Não É?” (1972), a deliciosamente crítica “Cuidado com as Imitações” (1979 – será que Casimiro já ouviu?) e a dramática “Não Vás Contar Que Mudei a Fechadura” (1983). “Nosso país, digo, Portugal, vai avançando, mas inda é muito insuficiente e, em muitos aspectos, tem o ‘Acesso Bloqueado’”, disse ao introduzir a ótima canção de 2011.
Até então, o show seguia um ritmo introspectivo, mas bastou a divertida “O Galo é o Dono dos Ovos” (1978) surgir para que a plateia se entregasse: “Não sei se vocês vão entender o refrão dessa porque há diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal. É um refrão bastante intelectual que diz ‘cocorococó, cocorococó, cocorococó, cocorococó” e quero que vocês cantem comigo” (risos gerais) – uma lembrança oportuna: certa vez, Grant Hart (Huskër Dü) fez a plateia de São Paulo imitar cães, e brincou sabiamente (muito antes desse caos de fake news presidencial que vivemos): “Se eu consigo fazer isso com vocês, imagina um presidente”…
Um poema de Camões (“Nosso poeta maior”) musicado por Zeca Afonso, “Endechas a Bárbara Escrava”, veio na sequência seguido de um número instrumental de Filipe ao piano e de outro belo poema de encher os olhos, “Dancemos no Mundo”, dedicado a “todos os casais que vivem separados no mundo, a todos os imigrantes e refugiados”. O jazzinho recente “Grão da Mesma Mó” (2018), composto por David Fonseca, precedeu a segunda parte da noite com a entrada de Zeca Baleiro, que gravou um álbum com canções portuguesas no meio da pandemia, “Canções d’Além-mar” (contemplado com o Grammy Latino de Melhor Disco Brasileiro – conheça o disco faixa a faixa aqui), que abre exatamente com uma canção de Sergio Godinho.
Antes, porém, a dupla cantou a divertida “O Coro das Velhas” (1984), com Baleiro intervindo: “Sergio Godinho não faz canções, faz romances medievais” (risos), no que o português pontuou “romances rapidinhos” (mais risos). A linda “Às Vezes o Amor”, um “lado b” de Godinho que foi single do disco de Zeca, surgiu encantadora e foi uma das mais festejadas da noite. Após uma hora de voz e piano, Godinho partiu para o terceiro ato e convidou a jovem e competente São Paulo Big Band ao palco para, primeiro, dois números solo instrumentais: a oportuna “Meu Caro Amigo” (afinal, a coisa tá muito feia no Brasil) e uma dispensável “Samba de Uma Nota Só” (nada contra João Gilberto, muito pelo contrário, mas por que não algo brasileiro mais novo? Por que não algo português mais novo?? Por que sempre as mesmas músicas tipo exportação?).
Num esquema semelhante ao de Bob Dylan nas turnês polêmicas dos anos 60, em que ele fazia um set acústico e um set barulhento, mas com uma pegada mais classuda e orquestral, a noite então ganhou corpo com a São Paulo Big Band fazendo a cama luxuosa para que Godinho mostrasse peças deliciosas como “Bomba-Relógio” (2011, do verso “O teu amor quando palpita / Verdade seja dita / Faz mudar fusos horários”), “Tipo Contrafacção” (2018), “Dias Uteis” (1998), “Só Neste País” (2006) e, para alegria geral, “Com Um Brilhozinho Nos Olhos”, um de seus maiores hits (1980).
No bis, Zeca voltou ao palco para cantar “Lisboa Que Amanhece”, que Godinho já cantou com Caetano: “Hoje você vai baixar o nível”, brincou o artista maranhense, e Godinho não perdeu a deixa: “Estamos sempre a baixar o nível” (risos). Com quase duas horas de apresentação e os ponteiros do relógio já tendo ultrapassado a hora da carruagem da Branca de Neve ter virado abóbora, Sergio Godinho se despediu com “O Primeiro Dia” (1978) desejando voltar, no que deve, pois deixou a sensação de que esse show especial repleto de momentos bonitos foi apenas a ponta de um colossal iceberg que todos deveríamos aprofundar e reverenciar.
Pouco ouvido no Brasil (como, aliás, quase toda cena musical portuguesa, seja ela antiga ou nova), por tudo que faz pela música (e, por conseguinte, nós), Sergio Godinho merece mais, muito mais. Assim, deixamos o teatro com um brilhozinho nos olhos, e ainda mais em débito. Que tal você ajudar a começar a pagar, hein? É só dar play e ser feliz. Sergio Godinho merece… e nós também.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/