texto por Bruno Lisboa
fotos de Vinicius Silva
Quantos artistas você conhece que tem total ciência do seu legado e consegue, a partir dele, repensar a sua própria carreira ao ponto de reformulá-la? Sair da zona de conforto não é um caminho que nomes consolidados costumam trilhar, mas há de se admirar o trabalho daqueles que optam por buscar o novo mesmo após décadas de repertório já consolidado. E, ainda bem, Erasmo Carlos faz parte dos que preferem a ousadia à letargia.
Repaginar a carreira não é algo recente na carreira de Erasmo. Afinal, um dos ícones da jovem guarda, que lançou seu disco de estreia, “A Pescaria”, em 1965, segue na ativa compondo material inédito e atento ao que acontece no universo da música. A série dividida em dois volumes “Erasmo Convida…”, em que promove encontros com nova geração, é prova disso: o primeiro volume saiu em 1980, o segundo em 2007.
Seu trabalho mais recente que inspira essa nova turnê, O Futuro Pertence à… Jovem Guarda”, saiu em fevereiro de 2022, foi produzido por Pupilo (Céu, Pitty, Edgar) e conta com oito pérolas do movimento que nunca haviam sido gravadas por Erasmo. São canções como “Nasci Para Chorar”, versão de Erasmo para o original de Dion gravada pelo parceiro Roberto no álbum “É Proibido Fumar”, de 1964, e hinos do quilate de “Devolva-Me”, “Tijolinho”, “O Bom” e “Ritmo da Chuva”, com ares de rock em estado bruto.
Escudado por uma jovem e competente banda de apoio composta por Pedro Dias (baixo) e Luiz Lopez (guitarrista), ambos da banda Filhos de Judith, Billy Brandão (guitarra), Rike Frainer (bateria) e o maestro José Lourenço (gaita e teclados), o Tremendão promove, ao longo de cerca de 90 minutos, um exímio exercício de renovação. Sem temer represálias de um público que, majoritariamente, estava na casa dos 60 anos e acompanha a carreira do cantor desde o início, Erasmo fez uma apresentação visceral em Belo Horizonte.
A poesia pueril das letras se mantêm intactas, mas em contrapartida foram envelopadas em arranjos calcados em guitarras altas que dialogam com a escola de rock setentista. Prova disso são canções como “Vem Quente Que Estou Fervendo”, que surge conduzida pelos riffs de “You Really Got Me” (do Kinks), a citação de “Smoke on The Water” em “É Proibido Fumar” e a emulação da The Band nas versões country-rock de “Meu Bem” e “Eu Sou Terrível”.
Entre um hino e outro, Erasmo esbanjou carisma falando abertamente sobre sua vida pessoal. A hospitalização em virtude da Covid-19, o nascimento de sua bisneta, a proximidade com a cena musical mineira dos anos 90 (em especial Skank, Pato Fu e Jota Quest a quem ele trata como filhos) e a amizade com Milton Nascimento foram tema de algumas das histórias que o cantor contou ao público presente que lotou as dependências do Palácio das Artes.
O tom político da apresentação se fez presente em uma fala do artista sobre a preocupação com as futuras gerações e qual mundo deixaremos para elas. De forma pontual, Erasmo questionou o porquê das pessoas se deixarem levar por discursos de ódio e criticou a omissão de governantes quanto a ausência de políticas públicas ligadas à saúde e educação.
Após um set generoso de mais de 20 canções (entre elas, “Sentado à Beira do Caminho”, “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, “Minha Fama de Mau”, “Eu Sou Terrível”, “Negro Gato” e “A Carta”), “Festa de Arromba”, presente naquele disco de estreia de 1965, colocou ponto final numa apresentação intocável, assombrosa (no bom sentido da palavra) e corajosa que mostra para a parcela reacionária do rock brasileiro que é possível conciliar engajamento, vitalidade e criatividade num mesmo cesto. Erasmo, com 81 anos de idade, ainda é um dos melhores expoentes nacionais do que o rock já pode produzir.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.