texto de Renan Guerra
“Flee – Nenhum Lugar para Chamar de Lar” (“Flugt” no original, 2021) parte de uma premissa complexa: Amin, o protagonista, era adolescente quando chegou à Dinamarca sozinho, vindo do Afeganistão. Aos 36 anos, ele agora é um acadêmico de sucesso e está noivo de seu namorado de longa data. Porém, sua história entre sair do Afeganistão e chegar na Dinamarca esconde muitas feridas dolorosas e é sobre essas feridas que o diretor Jonas Poher Rasmussen coloca a sua lente, porém ele faz isso de uma forma inesperada.
É complexo categorizar, mas “Flee” é basicamente um documentário em animação, no qual as memórias de Amin são ilustradas e apresentadas de forma quase ficcionalizada para o espectador. Rasmussen não cria muitas barrerias entre gêneros cinematográficos e alinhava de forma muito sábia os ditames do cinema documental e dos filmes de gênero, como o drama e o thriller. Essas incursões entre narrativa pessoal e vivências coletivas, tudo visto pela ótica da animação, lembra em certa medida o excelente “Valsa com Bashir” (2008), de Ari Folman.
Se em “Valsa com Bashir” temos um relato doloroso de quem vive os horrores da guerra, em “Flee” temos a visão dilacerante de quem foge da guerra e não encontra apoio em outras terras. Com o avanço da guerra civil no Afeganistão na virada dos anos 80 para os anos 90, a família de Amin foge do país e acaba indo em direção à Rússia, porém os caminhos que levaram Amin até sua próspera vida na Dinamarca passam por diferentes violências: tentativas de fuga da Rússia pós-soviética, translados perigosos pelo mar Báltico nas mãos de traficantes de humanos e tentativas sobrehumanas de sobreviver em espaços desumanizados.
Todas essas vivências de Amin já são essencialmente dolorosas e marcantes, porém acrescenta-se uma camada a sua história: Amin estava na fase entre pré-adolescência e adolescência enquanto passava por tudo isso. Seu corpo dava sinais de que ele não era igual aos irmãos e seus desejos deixavam clara a sua homossexualidade, que era uma questão dolorosa, mas que se fazia presente em meio a tantas outras dores e violências que ele presenciava naquele espaço.
O diretor Jonas Poher Rasmussen é um amigo íntimo de Amin, por isso os relatos são captados em diferentes espaços de tempo, aos poucos, conforme a própria segurança de Amin vai se fortalecendo e ele se sente mais apto a falar. O interessante da narrativa documental com toques de ficcionalização é que ela possibilita uma maior liberdade para a narrativa andar e avançar sobre tópicos sensíveis. Fica muito claro durante todo o filme o quanto as vivências e os segredos de Amin impactaram a sua vida adulta. Ele pode estar bem-sucedido financeira e afetivamente, mas esses traumas continuam a reverberar sobre seus atos.
“Flee – Nenhum lugar para chamar de lar” é talvez um dos relatos mais crus e sinceros sobre a complexidade da existência dos refugiados no nosso mundo moderno. As histórias de Amin são as mesmas que vemos se repetir nos noticiários a cada novo conflito em diferentes regiões do mundo – e a atual guerra entre Ucrânia e Rússia escancarou ainda mais como são tratados os refugiados racializados. Nesse sentido, o filme de Rasmussen é muito inteligente: ele nos dá coordenadas sobre os conflitos no Afeganistão, deixa claro os interesses de grandes potências sobre esses acontecimentos, porém em nenhum momento ele desvia o foco de ser uma narrativa pessoal. O que nos importa aqui é a história e a vivência de Amin. O filme existe em um microcosmo, pois fica claro que cada familiar de Amin teria histórias tão fortes e pungentes quanto a dele.
No final das contas, o que Jonas Poher Rasmussen faz em “Flee – Nenhum lugar para chamar de lar” é utilizar todas as potencialidades artísticas e narrativas do cinema em prol de uma grande história e o resultado é um filme emocionante, envolvente e forte. Indicado ao Oscar 2022 em três categorias – melhor documentário, melhor animação e melhor filme internacional -, “Flee” precisa ser agora descoberto pelo público!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.