Texto por Bruno Capelas
Fotos por Fernando Yokota
Num país em que tudo que é construção já parece ser ruína, um selo de música independente completar 10 anos em franco crescimento é um feito que merece muito ser comemorado. No caso da Balaclava Records, a celebração aconteceu no último final de semana em São Paulo, com uma mistura entre pompa, circunstância e ares de festa da firma.
Foram quase 10 shows por dia, em um edifício centenário (o Central 1926, que antes abrigou o Red Bull Station, na Praça da Bandeira), além de discotecagens, um hambúrguer bem bom (levaria quatro fatias de bacon no antigo Melhor Hambúrguer da Cidade) e a reunião da cena indie (a capacidade total era de 1200 pessoas) em um só local após dois anos de hiato.
A organização foi acertada, embora em alguns momentos, os palcos estivessem bastante apertados – ainda mais na retomada pós-pandêmica – e com altura alguns centímetros abaixo do ideal. Mas isso são detalhes perto da música e do reencontro. A seguir, você confere os destaques de cinco shows da programação do Balaclava Fest no sábado, uma boa amostra da relevância do selo paulistano ao longo da última década no Brasil.
Que venha mais.
Ps. Infelizmente, por motivos de saúde, o Scream & Yell ficou ausente do segundo dia do festival…
Jennifer Souza
18h-18h40 – Palco Térreo
Veterana do cenário indie, a mineira Jennifer Souza teve a incumbência de abrir os trabalhos do palco principal do Balaclava Fest. E o fez com muita classe, acompanhada de uma banda de primeira linha – destaque especial para o companheiro de sua ex-banda, a Transmissor, Thiago Corrêa, no baixo (uma pena que não valia gritar “toca Bonina!”). Em São Paulo, Jennifer pode desfilar & destilar suas belas canções quase sem refrão, transitando entre uma MPB sofisticada, o folk e uma dose grande de melancolia – talvez este último o elemento que a conecte com seus companheiros de selo. Para um desavisado, foi a chance de ouvir uma das compositoras mais delicadas do País na última década, seja nas canções de “Pacífica Pedra Branca”, lançado no ano passado (e presente na lista de Melhores do Ano do Scream & Yell e da APCA), ou da estreia “Impossível Breve”, de 2013. Mais que isso: foi a oportunidade de se deparar com novas paragens e ver um show alçar voos imprevisíveis – em não poucos momentos, Jennifer e sua banda se desviavam da canção para improvisos jazzísticos muito interessantes, lembrando muitas vezes as viagens de Joyce Moreno. Bem bonito.
Odradek
18h40-19h20 – Palco Club
Se Faustão estivesse presente no Balaclava Fest, claramente ele reagiria com um “Doidera, bitcho!” ao que rolou no Palco Club quando o Odradek entrou em ação. Era difícil prever seus movimentos. Com o recém-lançado single “Canary Wharf” em mãos, o trio piracicabano – Tomás Gil (baixo), Fabiano Benetton (guitarra) e Caio Gaeta (bateria) – fez uma apresentação enérgica, rezando pela cartilha de grupos como Mars Volta e Coheed and Cambria. Quem estava perto do palco se esbaldou na rodinha, que fazia o já apertado Palco Club parecer ainda menor, em uma espécie de libertação que buscava compensar os dois anos que passamos em casa. Quem ficou de fora, por outro lado, lembrava da importância de outro equipamento de proteção individual: o protetor auricular, necessário em um dos shows mais altos do festival. De quebra, vale citar ainda a boa participação de Larissa Conforto, em claro acúmulo de jornada – a ex-baterista do Ventre já tinha passado pelo festival com seu projeto AIYE e ainda ia fazer um feat no show da Lupe de Lupe. Não basta ser indie, tem que participar.
gorduratrans
19h20-20h – Palco Térreo
Em um dos shows mais aguardados do Balaclava Fest, o gorduratrans trouxe à tona sua nova formação, evoluindo do duo original de Felipe Aguiar (guitarra e voz) e Luiz Felipe Marinho (bateria e voz) para um quarteto, com a adição de Gabriel Otero (guitarra) e Simião Pedro (baixo). O formato banda mostrou o grupo em uma roupagem mais pop, impressão reforçada pela execução correta do single “Enterro dos Ossos”, que antecipa disco novo que vem por aí, ainda sem nome e data de lançamento. Em sua estreia, o grupo ainda precisa de ajustes – seja pela dinâmica, como uma pausa longa para afinar instrumentos que fez a apresentação perder ritmo, seja pela ausência, em alguns momentos, do ruído tão característico do conjunto fluminense. Felizmente, o barulho apareceu em momentos bonitos, como em “Confusão” e “Vcnvqnd”. Isso para não falar na cena do casal de moças que bailava no fundo da pista ao som de “Você Não Sabe Quantas Horas Eu Passei Olhando Para Você”, enquanto a canção era gritada pelo público a plenos pulmões – polaróide que dá o tom exato da delicadeza ruidosa que o gorduratrans pode alcançar. Vale ficar de olho.
Moons
20h-20h40 – Palco Térreo
Ao longo da última década, a Balaclava construiu uma marca eclética, mas cuja vasta maioria dos artistas transita entre dois pólos: viagens pelo ruído e pela melancolia ou uma busca desenfreada pela modernidade sonora. Mas, no meio do Balaclava Fest, havia um feliz estranho no ninho: o supergrupo mineiro Moons, que passou os últimos anos construindo uma carreira de canções tão sólida quanto discreta. Representado por André Travassos (voz, violão e guitarra), Pedro Hamdan (bateria), Bernardo Bauer (baixo), Felipe D’Angelo (teclado), Digo Leite (banjo, violão e gaita) e Jennifer Souza (voz e guitarra), o Moons acabou sendo a grande surpresa do sábado. Em São Paulo, o sexteto fez um show bastante setentista, cheio de calor e amizade, em algum lugar perdido entre o folk, o soft rock, Dylan, Josh Rouse e o Wilco pós-“Sky Blue Sky”. Se em estúdio às vezes o Moons pode soar constrito, abafado, no palco do Central 1926 a banda pode achar espaço para seu som reverberar, com direito a bonitos improvisos – e quem viu o solo de gaita em “Nobody But Me” não pode negar. Mais que tudo, foi um show quente, como abraço de amigo e café da tarde. Parte disso se deve à simpatia de André à frente do palco – e valeu demais ouvir seu discurso sobre o Atlético Mineiro, o número 13 e o primeiro “fora Bolsonaro” da noite, sincero até a medula. Para quem não viu o luar passando, fica a dica: já já o Moons lança single e disco novos e… a maré está cheia.
Lupe de Lupe
22h-22h40 – Palco Térreo
Catártica. Visceral. Antológica. É difícil não usar palavras vigorosas para definir o que foi a apresentação da Lupe de Lupe no Balaclava Fest, cheia de momentos capazes de fazer alguém se apaixonar perdidamente por uma banda. A começar pelo início do show, uma cena possivelmente inédita na música mundial: os músicos sobem ao palco antes do horário da apresentação, na frente do público, e esperam a hora certa, com direito a contagem regressiva, em um enorme clima de expectativa. E todo esse clima poderia ser frustrado se Vitor Brauer, Jonathan Tadeu e Renan Benini, reforçados por Filipe Xanddy, Andrei Kozyreff (da Francisco el Hombre) e Larissa Conforto (e sua mão pesada na bateria) não tivessem à mão um dos melhores repertórios da atualidade à sua disposição.
Em pouco menos de uma hora, a Lupe de Lupe passeou por clássicos (“Colgate”, “Fogo Fátuo”, “SP (Pais Solteiros)”, cujo título homenageia a banda que deu origem à Balaclava) e as canções de “Lula”, de 2021 (“Goiânia”, “Cabo Frio”, “Fortaleza”) , sempre em alta octanagem. Além da simples presença de palco, o grupo tem o poder de carregar o público consigo para qualquer lugar, seja fazendo-o erguer as mãos para o céu em uma balada torta (“Gaúcha”) ou se esbaldar numa roda de pogo que parecia decretar a chegada de tempos melhores (“Eu Já Venci”). A devoção da plateia era tanta que valia até comparar a Lupe a outros fenômenos de culto do rock nacional – e a citação de “Perfeição” feita por Jonathan Tadeu em “Enquanto Pensa no Futuro” mostra bem do que estamos falando quando falamos de culto.
O relógio já havia estourado depois da catarse de “Eu Já Venci”, mas quem se importava? De algum jeito, ainda houve espaço para a participação especial de Fernando Motta em “Coromandel” (a canção de amor mais bonita de 2021 feita neste País) e a declaração de esperança num “Brasil Novo”. Podia até ter tido mais, o público pediu mais bis, mas já que a banda não atendeu, coube a um coral de umas cem pessoas cantar o hino indie “17” no gogó, arrepiando quem estava por ali. Era o paraíso, era a porra do paraíso, no melhor show do dia – e candidato sério a show do ano.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/