texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Doutora Honoris Causa, pela Universidade Federal de Pernambuco, pelos serviços prestados à cultura de Pernambuco e do Brasil. Agraciada com a Ordem do Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura, honraria que recebeu das mãos do então ministro Gilberto Gil. Diva da música negra, epiteto cunhado pelo jornal The New York Times. A rainha da ciranda, como apresenta seu álbum de estreia, de 1977.
Maria Madalena Correia do Nascimento, mais conhecida como Lia (da ilha pernambucana) de Itamaracá, é cantora de cirandas desde os anos de 1960, e chega aos 78 anos como tema da nova ocupação no Itaú Cultural, na avenida Paulista, em São Paulo, uma exposição em sua homenagem que conta sua história, fala de suas inspirações e de sua música, em memorabilias diversas tal qual retratos, recortes, instrumentos, vídeos e sons.
Junto à abertura da exposição, que aconteceu 20/04, Lia de Itamaracá estreou no dia seguinte uma pequena temporada de shows (gratuitos) no anfiteatro do Itaú Cultural, tendo a cantora Daúde como convidada da primeira semana (com shows de quinta a domingo) e Alessandra Leão, DJ Dolores, Edgar e Iara Rennó na semana seguinte (mesmos dias), além do mestre de cerimônias Roger de Renor, todos dispostos a celebrar a rainha.
“Lia já está no panteão das divindades”, observou Rogê centrado no palco do Itaú Cultural. “Essa ocupação é muito mais do que uma exposição. É uma chave de acesso a esse espaço atemporal desse macrocosmo. Considerem seus ingressos como bilhetes para uma viagem de olhar horizontal da realeza de dona Lia”, comentou a seguir, para depois provocar (e receber muitos aplausos) ao falar do caráter aglutinador e misturador da ciranda: “Essa mulher é uma verdadeira ameaça para esse atual sistema político”.
Na sequencia, a rainha adentrou ao palco com sua banda já a postos (um trio de metais e um trio de percussão) e o público quase todo sentado ocupando a totalidade do teatro, avisando: “Vamos de ciranda!”. Dai pra frente seguiu-se um bloco de cirandas que, como observou Rogê em uma de suas intervenções no show (ele entrou primeiro para uma curta entrevista ao vivo com Lia e depois para anunciar a convidada da noite), foi colocado para abrir o show porque se estivesse no final não deixaria ninguém sentado (e ainda estamos em pandemia).
A estratégia deu certo, pois enquanto a rainha encantava cantando números como “Cirandando pela Praia”, “Preta Cirandeira”, “Ele Não Sabe O Que é Amor”, a divertida “Loira, Morena e Mulata” além de “Minha Ciranda”, com Lia cantando “minha ciranda não é minha só, ela é de todos nós, ela é de todos nós”, a grande maioria dançava sentadinho em seu lugar. Porém, como estava difícil resistir, muitas pessoas se levantaram para dançar nas laterais e no fundo do teatro cantando com Lia a maravilhosa “Suite Dos Pescadores”, de Dorival Caymmi.
O bloco cirandeiro terminou de maneira bela, com Lia cantando a capella “Eu sou Lia da beira do mar / Morena queimada do sal e do sol / Da Ilha de Itamaracá”… e ainda brincando: “Olha o bronze, olha o bronze”. A segunda parte do show começou com um pot-pourri de coco e a entrada das irmãs Severina e Dulce, filhas do rei da ciranda, o Mestre Baracho, um dos ícones da cultura popular pernambucana. Entre as canções, “Meu Cachorro Peri”, “Tava na Beira da Praia”, “Casou, Morou”, “Passarinho” e “Ajoelha, Ajoelha”.
A terceira parte da apresentação marcou a presença espevitada e empolgada de Daúde, distribuindo carisma, vozeirão, sorrisos e danças num set que começou com a “Dança do Papangu”, passou por “A Vizinha” e “Marinheiro Só” e chegou ao maracatu “Princesa Dona Isabel”, com Daúde descendo para a plateia e louvando Clementina de Jesus, Elza Soares e muitos outros no improviso da letra enquanto Lia abençoava tudo de cima.
A louvação “Pedra Fina” encaminhou a noite para o final, com Lia deixando o palco com Daúde levando a barra de seu vestido, e as irmãs Baracho, em momento solo, cantando “Jurema” e “Flor D’Agua”. A percussionista Gangga Barreto, que já havia arrancado muitos aplausos da plateia diante de sua empolgação nas pancadas no surdo, mostrou lirismo ao interpretar, quase a capella, “Janaina”, homenagem a Iemanjá.
Com mais de 1h40 de show, Lia voltou toda de branco para cantar “Mar de Fogo” e se despedir, convidando a plateia para voltar para os próximos shows. Quando parte do público já havia saído, Lia voltou ao palco para falar da lojinha com CDs, livros e mais, e enquanto conversava com fãs no gargarejo, não resistiu e chamou a banda toda de volta para cantar “Moça namoradeira” (canção que gravou com Rincon Sapiência) e “Balança moreno Cirandeiro”, para alegria de todos os presentes, encerrando uma noite de gala.
Ainda não foi dessa vez que todo o público pode cirandar todos juntos, com várias rodas, uma dentro da outra, e de mãos e sorrisos dados. Mas, ainda assim, não deixa de emocionar poder estar de volta a um teatro ouvindo uma rainha da cultura popular cantar “Eu sou do povo, sou uma cirandeira /Armo a ciranda em qualquer lugar” e concluir, sabiamente: “Eu sou portadora do amor / Vem cá menina me de a sua mão / Garanto você vai gostar / de passear pelo meu coração”. Impossível não ser feliz passeando no enorme coração de Lia.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
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