texto por Renan Guerra
fotos de Darley Lucas
O show em celebração ao documentário “Fevereiros” (2019), de Marcio Debellian, estava marcado para o mês de fevereiro, assim como o título do filme. Em função da pandemia da Covid-19, o espetáculo acabou sendo adiado e remarcado para o mês de abril, no Espaço das Américas. Disponível atualmente no Globoplay, o documentário de Debellian “parte do enredo campeão de 2016 da escola de samba Mangueira, que versava sobre Bethânia e suas relações religiosas, para traçar um interessante retrato das crenças da baiana e assim desenhar um cenário rico sobre o Brasil, o sincretismo, o samba e a negritude”, como contamos por aqui na época do lançamento.
“Fevereiros”, o show, foi uma forma de celebrar esse belo filme e de conectar de novo Bethânia ao seu público depois de tanto tempo de ausência dos palcos. Em 2021, Bethânia renovou sua força lançando o belo disco “Noturno”, e algumas faixas chegam a aparecer nesse show de celebração, porém a aprentação realizada em São Paulo no último sábado (16) teve um foco maior em canções que construíram a história da artista e que fazem parte de seu repertório mais usual nas últimas décadas.
“Um Índio”, “Negue”, “Reconvexo”, “Na Primeira Manhã”, entre outros clássicos emocionaram uma plateia que chegou cedo e esperava ansiosa pela cantora. Com uma pista aberta e um espaço reservado com mesas, o Espaço das Américas criou uma espécie de grande encontro naquela pista de pé, com pessoas diversas e múltiplas que constrõem esse corpo amplo de fãs da Abelha Rainha. A noite em São Paulo era fria, mas naquele espaço, quando Bethânia estava no palco, o que se sentiu foi calor, e aqui estamos sendo literais mesmo, calor de causar suor em meio ao público que cantava a plenos pulmões cada uma das faixas.
A banda que acompanha Bethânia nesse show traz seus parceiros usuais: Jorge Helder, Marcelo Costa e Paulo Daflin, além da presença de João Camarero e Zé Manoel, parceiros mais jovens e que estavam envolvidos na produção do disco “Noturno”. Além disso, o show trouxe a presença luxuosa de Lan Lan na percussão, o que esquentou ainda mais uma apresentação que visava celebrar a paixão de Bethânia pelo carnaval e por todos os festejos de fevereiro. No palco, ao lado de sua banda, Maria Bethânia se divertiu, dançou, rodou a sua saia e celebrou a vida e o Brasil.
Quando escrevemos aqui sobre o disco “Noturno”, falamos que “se uma parte do Brasil deixa Bethânia triste, isso não apaga dela tudo de belo que há: ela segue cantando o Brasil que sempre acreditou e cantou. Um Brasil verdadeiro, intenso, cheio de complexidades, problemas e belezas. Entre delicadas construções sonoras, o que brilha é a voz de Bethânia como alento em meio ao caos”. E isso se fez mais forte do que nunca ao vivo: sua voz segue límpida, forte e intensa como nunca e seu perfeccionismo faz do espetáculo um primor de cuidado, de uma paixão pelo seu fazer artístico que é emocionante.
Bethânia ganha força e vida no palco e por isso esse espaço é tão sagrado para ela, tão cheio de ritos e cuidado. Mesmo assim, ela se mostrou aberta a quebra de protocolos, quando ouviu o público entoar um coro de “Lula lá”, para depois mostrar seu contentamento ao dizer “eu adoro quando vocês se manifestam” – no interlúdio do show, quando a banda tocava uma faixa instrumental, também se fez presente um coro de “Fora Bolsonaro”.
A noite seguiu em um passeio por clássicos da artista: “Negue”, “Lama”, “Volta Por Cima” e “Purificar o Subaé” ganham o palco ao lado de faixas mais recentes, como “Pantanal” (gravada para a trilha da novela da Globo), “Bar da Noite” e “Prudência”, esses duas últimas do disco “Noturno”. “Prudência”, escrita por Tim Bernardes, é o caso de uma música que parece que já nasceu clássica: sua composição é o perfeito universo de Bethânia e a forma com que o público cantou a faixa coloca ela nesse panteão de grandes interpretações da cantora.
Para fechar o espetáculo, Bethânia transformou o Espaço das Américas numa espécie de bloco de carnaval: “Agenor José & Laurindo”, samba-enredo da Mangueira nesse ano, surgiu ao lado de clássicos do carnaval, como “Allah-la-ô”, “Chiquita Bacana” e “Chuva, Suor e Cerveja”. Antes de sair do palco, “O Que É, O Que É?”, de Gonzaguinha, encerrou da melhor forma, um clichê clássico que ganha outros ares na voz de Bethânia: “Viver e não ter a vergonha / De ser feliz / Cantar, e cantar, e cantar”.
De alma lavada, o público saia do local ainda atônito, a cara de cada um trazia aquela expressão de quem vive um momento único e sabe bem o que viveu. Maria Bethânia é uma força da natureza e poder vê-la ao vivo é um privilégio e esperamos que mais gente possa ter essa chance logo.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.