texto por Gabriel Pinheiro
Savoy é um homem na casa dos cinquenta anos, avesso à tecnologia, que vagueia por apartamentos para alugar em Buenos Aires interessado em observar a vida de seus moradores. Carla é uma jovem para quem a tecnologia é uma necessidade básica para a sua existência errática pelo mundo, morando, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar nenhum. O encontro e o choque de experiências entre estes filhos de séculos distintos é o mote de “A Metade Fantasma” (“La Mitad Fantasma”, 2021), novo romance do argentino Alan Pauls. Com tradução de Josely Vianna Baptista, o livro é um lançamento da Companhia das Letras.
A etnografia em apartamentos para alugar
Para Savoy, apartamentos vazios são como livros em branco, sem história. Sua curiosidade se dá por lugares habitados por pessoas e objetos – quanto mais habitados melhor. Nas breves visitas “profissionais” – os 20 minutos que duram as suas incursões em territórios alheios, supostamente interessado em alugá-los – ele vislumbra a intimidade e as quinquilharias que compõem as vidas de terceiros. “Mas cada vez que abrirem a porta de um apartamento desconhecido e o convidavam a entrar (…) Savoy entrava e abria caminho entre esses espaços cheios de sinais, marcados pelas vidas de seus habitantes, como a parede de uma cela pelos dias de seu hóspede.”
O personagem encontra em um site de vendas online um mundo de possibilidades – espécie de sobrevida – para essas suas experiências “etnográficas”, passando a realizar uma sucessão de compras nas mãos de vendedores anônimos. Em sua maioria, itens supérfluos, afinal, o seu interesse não está na utilidade dos produtos. Savoy abre mão da comodidade do frete e da entrega à domicílio para retirar pessoalmente suas compras. “Dali pra frente, graças à plataforma, nunca lhe faltariam motivos para se meter na casa dos outros”.
O consumo contemporâneo
Essa incursão de Savoy no ambiente da venda online é uma oportunidade para Alan Pauls fazer uma observação cirúrgica do comportamento e do consumo na contemporaneidade. As grandes redes digitais que prometem a disponibilidade de tudo e onde a reputação também é tudo – você se torna um pária caso suas avaliações caiam. Tempos onde comprar é urgente e imperioso e o pensar, o refletir fica adiado para um momento posterior.
Namoro à distância
É no ambiente online que o acaso o leva a conhecer Carla. Se com os moradores e vendedores que visitou até então, o interesse de Savoy era apenas pelo breve encontro, sem laços, com a jovem portenha ele acaba desenvolvendo um relacionamento. Um romance abrasador, que toma conta de sua rotina. Mas há um porém: Carla é nômade. Trabalhando como “house sitter”, ela viaja pelo mundo para cuidar de casas – e dos animais e plantas de estimação que ali também residem – de terceiros. Ela não fixa raízes e, em breve, partirá para um novo, ainda desconhecido para Savoy, destino.
Assim, o contato entre os dois passa a acontecer totalmente no ambiente online, pelo Skype. Um relacionamento mediado pelas regras e restrições do digital, pela distância física, pelos delays das mensagens e pela instabilidade das conexões. Instabilidade esta não entre as conexões dos cabos e das transmissões apenas, mas dos próprios sentimentos. “Causava angústia porque alterava duas condições básicas do contrato amoroso, copresença e reciprocidade, que essa vida intermitente e flexível, de viajantes frequentes e ardores ‘wireless’, reconfigurava sem parar, mas jamais abandonava.”
Uma prosa reflexiva, detalhista e poética
Há uma característica no romance que se destaca logo em seu início: o tamanho de suas sentenças. O autor encadeia uma ideia atrás de outra e outra e outra, separadas por muitas vírgulas antes de um ponto final. Seu pensamento é como um navegador web, onde, ao pesquisarmos um assunto específico, abrimos diversas abas, como forma de nos aprofundarmos naquilo que desejamos saber. Suas frases longuíssimas pedem fôlego, mas são prazerosas no ritmo e na fluidez que o autor alcança, dotadas de uma construção poética, detalhista e reflexiva.
“A Metade Fantasma” é um olhar aguçado sobre o presente, sobre os relacionamentos contemporâneos, mediados por máquinas, aplicativos e pixels. Alan Pauls também nos diz sobre a vertigem do hoje, a necessidade do imediatismo e a ilusão da sincronicidade – seja a sincronicidade entre telas ou afetos compartilhados.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.