texto por Renan Guerra
“Medida Provisória” (2022) é o primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, e tem seu roteiro baseado na peça “Namíbia, não”, de Aldri Anunciação. A história se passa em um futuro distópico no qual um governo autoritário determina uma nova medida provisória em que os negros, agora chamados de “cidadãos de melanina acentuada”, serão enviados de volta à África. A peça foi encenada originalmente em 2011 e o roteiro foi escrito em 2015, tudo isso antes da eleição de Bolsonaro, porém o filme de Lázaro nem havia sido lançado e já estava incomodando e muito os bolsonaristas.
No início de 2021, quando o filme ainda estava em trâmites legais para o lançamento, Sérgio Camargo, que presidia a entidade do governo federal chamada Fundação Palmares, disse que o filme dirigido por Lázaro Ramos era um ataque a Jair Bolsonaro e pediu o boicote do filme dizendo que era “pura lacração vitimista e ataque difamatório”. Pode não ter nenhum relação, mas após os ataques de Sérgio Camargo, a liberação do filme “Medida Provisória” na Agência Nacional de Cinema (Ancine) demorou muito mais. O filme teve sua estreia adiada quatro vezes com a falta de uma liberação da Ancine, que só foi obtida em dezembro de 2021. “É por demais forte simbolicamente para eu não me abalar”, já dizia a música de Caetano Veloso.
Na semana de lançamento, o filme voltou a cair nas bocas de bolsonaristas, com Sérgio Camargo e Mario Frias atacando novamente o filme e também o casal Lázaro Ramos e Taís Araújo. Em contrapartida, houve uma movimentação da classe artística e do público na internet para que as pessoas assistissem ao filme no primeiro final de semana em cartaz, para impulsionar a presença do longa nas salas de cinema. Assistimos ao filme no dia de sua estreia, 14 de abril, em uma sala do Reserva Cultural, na Avenida Paulista, com sala cheia e um público que regia de forma positiva ao filme.
“Medida Provisória” discute tópicos complexos, como o racismo, as formatações sociais do Brasil e a fragilidade das nossas instituições, porém a maior qualidade do filme de Lázaro é que faz isso de forma pop, bem condensada em um filme que não faz feio perante os blockbusters com que estava concorrendo por atenção nas salas de cinema. Lázaro Ramos domina muito bem a linguagem cinematográfica e cria um filme envolvente, que passeia entre gêneros com desenvoltura, levando o público do riso às lágrimas com uma facilidade surpreendente. O futuro distópico criado nas telas é – de certo modo, assustadoramente – real e o forte elenco dá uma sustentação às complexidades do roteiro.
O casal de protagonistas Capitu e Antonio é vivido por Taís Araújo e Alfred Enoch (ator anglo-brasileiro famoso por sua presença na saga Harry Potter), que trazem sensibilidade e força para o drama do filme. Quando a medida provisória do título é promulgada, o que há é uma sequência quase de terror, com as pessoas sendo capturadas nas ruas, e é esse um dos momentos em que Taís Araújo mais brilha, provando o seu talento em passagens tensas e emocionantes.
Já Adriana Esteves é uma funcionária do governo que está por trás de um dos pólos de “resgate” de negros, e Renata Sorrah é a vizinha branca e sorrateira do casal Capitu e Antonio, as duas atrizes são perfeitas em sua representação da branquitude muito acolhedora que sempre acha “que agora se vê racismo em tudo”.
Outros nomes excelentes aparecem em tela, como Flavio Bauraqui, Emicida, Dan Ferreira, Mariana Xavier e Indira Nascimento, porém o grande destaque do filme fica por conta de Seu Jorge. Seu personagem é André, um jornalista que divide o apartamento com os protagonistas e que traz um contraponto de leveza ao casal. Sagaz e bem humorado, Seu Jorge consegue navegar de forma sábia pelas cenas mais complexas, enchendo seu personagem de humanidade e transmitindo para o público as nuances de uma situação limite como essa. Outro destaque do filme é a presença de Diva Guimarães em uma participação mais que especial. Diva é professora aposentada e se tornou conhecida na Flip de 2017, após um relato forte sobre racismo.
No final das contas, “Medida Provisória” prova que Lázaro Ramos é um ótimo diretor e deixa apenas o gostinho de que precisamos de mais filmes dirigidos e idealizados por ele. Além disso, esse é um filme excelente por sua capacidade de alinhavar temas complexos de forma sábia em meio a uma narrativa pop, que prende o espectador na poltrona e nos deixa quase sem fôlego. Esse caráter de filme pop de ação pode fazer com que o filme chegue a um público maior, basta que as pessoas estejam abertas à história.
Se possível, assista “Medida Provisória” nos cinemas, não perca!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
Só esqueceu de falar sobre o começo do filme onde o advogado interpretado pelo Alfred consegue ganhar uma indenização na justiça de forma retroativa sobre a escravidão. Ai se desenrola o enredo