“BRZRKR”, a excelente HQ de leitura “gore” e quase indigesta de Keanu Reeves

texto por João Paulo Barreto

Em 2015, durante uma visita ao Japão para divulgar a então nova franquia “John Wick”, Keanu Reeves explicava à apresentadora de TV no programa no qual era entrevistado o quanto admirava as viscerais e enérgicas cenas de luta as quais o astro japonês, Sonny Chiba, protagonizava em seus filmes. A paixão com que o astro de “Matrix”, “Velocidade Máxima” e a, agora, lucrativa trilogia (caminhado para uma pentalogia) “John Wick” descrevia sua admiração pela energia trazida por Chiba aos seus filmes – cujas artes marciais eram o principal elemento – nos cativava como espectadores por percebermos o quão sincera e genuína era a maneira que o astro se dedica ao seu tipo de cinema. Quando a entrevista corta para a surpresa de fã demonstrada por Reeves ao perceber-se no mesmo ambiente que Chiba, é impossível não se cativar ainda mais pela empolgação do cara por trás de franquias milionárias, mas conhecido por seu modo modesto e generoso de levar a vida.

Mas é algo contumaz em se tratando do homem cujo nome significa “brisa suave através das montanhas”. Essa mesma empolgação pelo cinema de ação vemos em outras entrevistas de Reeves, principalmente ao falar, claro, das cenas eletrizantes em que se torna o matador calculista em busca de vingança contra os assassinos de seu cachorrinho de estimação e, em seguida, praticamente contra todo o mundo. Assim, quando foi anunciado que ele faria seu debut como roteirista de um história em quadrinhos cujo protagonista seria uma espécie de assassino imortal com mais de 80 mil anos de idade, origens quase vikings, e que, atualmente, luta sob a alçada do exército estadunidense, a curiosidade pelo nível de violência estilizada que a obra traria em suas páginas se tornou palpável. E foi sem nenhuma decepção que a última página desse primeiro encadernado (de uma série de três) batizado de “BRZRKR” (ou “Berserk”), lançado em março de 2021 no exterior e em abril de 2022 pela Panini Comics (em formato 17×26 com 128 páginas) no Brasil, foi virada.

A história é co-escrita por Matt Kindt (que, como desenhista, já havia trabalhado na ótima “Sweet Tooth”, de Jeff Lemire), ilustrada por Ron Garney (cujo currículo de violência gráfica é validado por desenhar Conan, Demolidor e Wolverine na Marvel), e que conta, também, com a arte do gaúcho Gabriel Grampá a ilustrar a capa da edição brasileira. Unute, nome que batiza o protagonista da trama tem como significado “ferramenta e arma” e, claro, tem os traços físicos do próprio Keanu Reeves (com seu formato de barba marcante e privilegiada a formar uma face cinematográfica e uma alusão hilária ao já clássico meme “Keanu Triste”), e segue sua fúria sanguinária no melhor estilo Nuke, personagem criado por Frank Miller e David Mazzucchelli, e que usava comprimidos de metanfetamina para ativar sua atividade cerebral e bélica.

Não por acaso em sua referência aqui, a lembrança de outros personagens em quadrinhos criados por Miller vem à mente ao observar “o modo de loucura insana e violenta” (do inglês, “Berserk”, nome que batiza o quadrinho utilizando apenas suas consoantes) vista no protagonista de Reeves, sendo “300 de Esparta” e “Hard Boiled” os dois primeiros dessa lista. A diferença principal aqui é que, enquanto na obra espartana, a violência gutural e sanguinolenta se fazia presente de maneira mais discreta e simbólica na arte de Miller e nas cores de Lynn Varley, e com “Hard Boiled” a tínhamos de modo mais irônico e quase pastelão, em “BRZRKR”, a seriedade e o peso de suas sequências de guerra tornam sua leitura “gore” e quase (eu disse quase!) indigesta.

Sim, lá estão momentos em que Unute retira uma costela de um homem a agonizar e a usa como arma para rasgar a garganta de outro. Ou, ainda, quando vemos a pata de um cavalo sendo usada como objeto perfurante no abate de um inimigo durante uma batalha medieval. São momentos assim nos quais percebemos a intenção de manter a noção de limites para a violência gráfica como algo sem qualquer prioridade. E isso faz toda diferença dentro de uma proposta honesta em sua premissa de um impacto visual cru e chocante. Junto à citada arte de Ron Garney, que opta por dar vazão às explosões e momentos guturais sem o uso de onomatopéias, a criação das sequências de ação por Reeves e Kindt evidencia clara alusão a uma montagem cinematográfica. Não por acaso, a obra já está cotada para se tornar um filme estrelado pelo próprio ator.

Mas, friso, há algo a mais no texto de Keanu que chama a atenção para além das vísceras expostas e batalhas de violência extrema. A começar pelo modo como o astro e o co-roteirista Matt Kindt optam por inserir uma pontual crítica à política armamentista estadunidense. Em uma das falas de Unute, o suicida protagonista belicoso e milenar que só deseja morrer, ao ouvir de uma agente governamental que declara a eterna gratidão dos Estados Unidos pelo esforço contínuo do homem em prol da terra do Tio Sam, o guerreiro, que se recupera de mais uma batalha, apenas replica: “Seu ‘eternamente’ e o meu são bem diferentes. Seu país é apenas o mais recente em uma longa fila de nações que amam guerrear. Por isso, não se preocupe com a minha fidelidade. Eu preciso guerrear”, explica a figura sofrida que luta mais por instinto do que por vontade própria. Conhecendo bem a História dos Estados Unidos, essa fala se encaixa como uma luva.

Nessa inserção crítica à política armamentista do país que adotou para viver, Reeves se diferencia em seu texto da abordagem quase fascista de Miller (vide “Holly Terror” e descubra a que me refiro) ao desenvolver a origem de seu protagonista como alguém que surge no mundo puramente como um ser feito para a guerra, mas que luta para não ceder a esse lugar comum. Mas seu sofrimento advém do fato de gradativamente perceber como sendo este o seu único lugar. Desde as pequenas sociedades tribais que lhe deram à luz, cujos insignificantes líderes o usaram para a dominação e vazão à descontrolada ganância armamentista, até chegar aos “tempos modernos”, nos quais as batalhas ganham contornos tecnológicos, mas mantêm as mesmas atrocidades sanguinolentas e insanas, a criação de Reeves segue como um elo do tempo da guerra representada por uma humanidade quase perdida.

Quase. A criatura não humana simbolizada por Unute começou a perceber que é bem mais que uma ferramenta e arma. Do mesmo modo que Keanu ao encontrar seu ídolo japonês, confesso estar empolgado por esse desfecho.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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