entrevista por Bruno Lisboa
O vínculo com a ancestralidade é uma das principais forças de resistência da cultura afro, atravessando e conectando gerações através das histórias e crenças do povo negro. Com o desejo de manter viva esta tradição, em 2013 foi formada a Congadar, banda cuja força motriz é prestar justa homenagem a grandes Mestres da Cultura Popular.
Formada por Carlos Saúva (vocais) Filipe Eltão (voz, caixa e percussão), Wesley Pelé (voz e caixa), Igor Félix (guitarra), Giuliano Fernandes (guitarra), Marcão Avellar (baixo) e Sérgio DT (bateria), o sexteto aposta numa sonoridade que promove o encontro do congado com o rock, unindo o som das caixas de congado (os tambores mineiros) e os cantos dos congadeiros com guitarra, baixo e bateria.
Recentemente a banda lançou o single “Grande Anganga Muquixe” no qual prestam homenagem a antepassados transmissores de conhecimento. A música abre uma série de materiais que preparam o lançamento do segundo disco do Congadar – o sucessor de “Retirante” (2019) está previsto para abril de 2022 pela Under Discos.
Em entrevista por e-mail, Marcos Avellar fala sobre as origens do grupo e a sua relação com a cultura negra, a formatação da sonoridade da banda, o retorno aos palcos, a cultura (e sua relevância) em tempos de retrocesso e muito mais. Confira!
Antes de falar sobre o novo single queria comentar sobre a uma questão que vejo com a força motriz da Congadar: a cultura negra, em suas mais variadas expressões (religiosas, músicais…). Nesse sentido, como se dera a relação do grupo com esse universo? E ainda: qual a importância de fazer do seu fazer artístico um instrumento de propagação voltado a essas questões?
O envolvimento da banda com a cultura negra é bem estreita desde antes de seu início. Carlos Saúva, Filipe Eltão e Wesley Pelé, que cantam e tocam as caixas (nome dado aos tambores do Congado e Folia de Reis) nasceram, cresceram e vivem nesse meio. Eles cresceram e participam das festas de Congado e Folia desde crianças. E foram eles que trouxeram esses elementos para a banda. Ainda hoje o Saúva é Vice-Presidente da guarda de Moçambique Nossa Senhora da Conceição, com uma tradição de mais de 50 anos de história, além dos três serem integrantes de grupo de Folia de Reis. Assim, eles são nosso elo direto com essas manifestações culturais. Tudo que fazemos, todas as músicas que propomos releituras e tocamos nos shows, tem a orientação e permissão dos nossos Mestres da Cultura Popular, nossos Capitães das Guarda de Congado. Não fazemos nada sem passar por eles. Tanto que, em nossos shows em Sete Lagoas, se eles estão presentes (e sempre estão), eles sobem ao palco para fazer uma grande festa com a gente. Inclusive, o repertório deste segundo disco, que deverá sair em abril, foi todo escolhido por alguns dos Capitães de Guarda de Congado da nossa cidade. Eles foram uma espécie de curadores do novo álbum. E desde o início temos essa consciência de levar a cultura deles para o público com o maior respeito. Eles apoiam e aprovam, já que para eles é uma forma de mostrar a cultura deles e de seus antepassados para pessoas além daquelas que frequentam as festas. É uma cultura de resistência e que, a cada dia que passa, está restrita à pequenas comunidade e grupos. Sabemos que sofreram e ainda sofrem preconceito por parte da sociedade. É uma cultura que recebe pouco incentivo, inclusive financeiro, por parte dos governantes. Então, temos a oportunidade de levar e tentar desmistificar, ampliar o acesso à essa manifestação cultural tão rica, que faz parte da construção da identidade da cultura não só mineira, mas também brasileira, a um público maior, através das suas músicas e histórias. É importante chamar atenção das pessoas para que toda essa riqueza cultural não se acabe.
Outro ponto interessante referente a música criada pelo grupo é que ela acaba promovendo uma miscelânia interessante que cruza ritmos africanos com o peso das guitarras. Como se deu a criação desta sonoridade e quais são as referências substanciais que ajudaram a formatar o trabalho de vocês?
A formação da banda se deu justamente da junção de dois outros trabalhos anteriores. Existia o Congadar, que até então era um grupo parafolclórico, que se apresentava em eventos na cidade. Este grupo era formado por Saúva, Eltão, Pelé e um outro grande amigo nosso, o Paulinho do Boi. Do outro lado, a gente tinha o Ganga Bruta, uma banda tradicional de rock, de guitarra, baixo e bateria. Chegamos a lançar dois discos nesse formato. Até que um dia, conversando com Saúva, eu joguei essa ideia meio que como um desafio. De juntar o que era o Congadar com o Ganga Bruta. E logo nos primeiros ensaios vimos que daria uma boa liga. E não tinha como ser diferente. O rock veio do blues, que veio dos negros escravizados nos Estados Unidos. O Congado tem a mesma história, veio com o povo escravizado principalmente nessa região de Minas Gerais. As duas manifestações são intimamente ligadas aos povos africanos trazidos como escravos para as Américas. Então fomos moldando essa sonoridade. Aos poucos fomos descobrindo as similaridades, as características, aprendendo melhor o que pode se encaixar, as diferenças. E foi através dessas experimentações que fomos criando essa nossa sonoridade. E muitos dos artistas que sempre experimentaram o cruzamento destes mundos são nossas influências. Talvez o mais direto seria o Nação Zumbi, já que eles também usam tambores como elementos de destaque. Mas podemos citar aí Gilberto Gil e a Tropicália, todo o Manguebeat, bandas como Cordel do Fogo Encantado, Mestre Ambrósio, até mesmo o Movimento Armorial, passando por nomes de Minas Gerais, como Maurício Tizumba, nosso Mestre e que sempre nos acolheu com o maior carinho. Um pouco da sonoridade das guitarras vem do próprio Clube da Esquina. Isso se dá porque o nosso guitarrista e produtor, Giuliano Fernandes, tocou por 10 anos (2000-2010) com Lô Borges, tendo gravado discos dele, como “Um Dia e Meio”, “Bhanda” e o ao vivo “Intimidade”. Nessa época ele aprendeu de dentro todos aqueles arranjos, acordes e harmonias dos clássicos do Clube. Então eu acho que o caminho está um pouco por aí: grupos e artistas que trazem muito da cultura popular brasileira com uma boa pitada de Clube da Esquina.
Além de lançar um novo single recentemente a banda anunciou o retorno aos palcos. Quais são as expectativas para esse retorno, apesar das incertezas inerentes a pandemia?
Estamos com shows agendados a partir de maio, quando os infectologistas estão dizendo que a pandemia estará mais controlada e amena. E assim esperamos. Estamos nos preparando para esse retorno. Além de todos estarmos com as vacinas em dia, todo o cronograma de lançamento do novo disco está girando em torno dessa expectativa da retomada do setor. Estamos há dois anos sem nos encontrar com o público. Como a maioria, fizemos lives, shows gravados, mas nada se compara. Tivemos um gostinho no ultimo dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, quando a pandemia tinha dado uma desacelerada e fizemos dois shows. Já foi um aperitivo. E estamos ansiosos para retornar aos shows. A nossa banda tem muito de palco, de show, do ao vivo. Entendemos que a pegada no estúdio e nos discos é diferente. E no palco a gente consegue passar mais da nossa arte. Mas sabemos de toda a responsabilidade neste momento. E os shows que estão fechados são com parceiros que tem a mesma consciência. Então, caso a coisa dê outra reviravolta, sabemos que os planos podem mudar. Mas esperamos que não.
Por fim, qual é o sentimento do grupo quanto ao momento atual da cultura no Brasil? Apesar de tantos retrocessos, quais são as motivações alimentadas para poder seguir em frente?
Os artistas não param. A cultura e a arte vivem apesar dessa merda toda que estamos vivendo. E neste quadro de desmonte das políticas públicas para a cultura, os artistas se tornam resistência à todo esse retrocesso. Claro que em meio à um esmagamento da classe, principalmente financeira, que se junta à uma pandemia terrível onde toda a cadeia produtiva da cultura sofreu na carne, vivenciamos a pior fase nas últimas duas décadas. É desanimador e até mesmo desesperador. Mas ano passado a gente focou na criação do disco novo. Fizemos muitos ensaios, fomos para estúdio, gravamos. E isso se junta à expectativa de lançar um disco novo. Então a gente conseguiu se manter na atividade, criando. E conhecemos muita gente na mesma situação. É desanimador? Não vamos mentir e dizer que não é. Mas ao mesmo tempo é desafiador. E usamos a criatividade para transpor isso. E temos a esperança que tudo comece a mudar a partir de novembro (ou outubro).
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Camila Cornelsen.