entrevista de João Paulo Barreto
“Quem acredita em um mundo melhor é motivado muito pela utopia. Muitas pessoas acham que é impossível e já estão acostumadas com o que está aí. Mas a utopia é importante”. Essa fala é proferida em um dos momentos de maior reflexão de “Rio de Vozes” (2022), documentário em cartaz nas principais salas de cinema. Quem a diz é um jovem que se destaca em meio a diversos outros cujas origens familiares e de vida vêm do rio São Francisco e dos lugares e comunidades banhados por ele ou cujas existências dependem diretamente da sua preservação. Essa utopia vai nortear boa parte das vidas que conheceremos na hora e meia de projeção do doc. Inconscientemente ou não para quem as vive, é o que lhes faz ter motivação para seguir.
Andrea Santana e Jean-Pierre Duret trazem um filme de observação e de apresentação destas e de outras diversas pessoas que tiram seus sustentos daquelas águas. Logo nos segundos iniciais, o trajeto do rio é desenhado digitalmente, e os nomes de cidades cujas margens fazem parte do seu território surgem na tela. Barra, Remanso, Juazeiro, Petrolina, Curralinho, Belém de São Francisco, Curaça são alguns dos municípios baianos e pernambucanos que o Velho Chico toca visitados aqui. Em cada um deles, histórias de vida se mesclam em semelhanças e singularidades que têm em comum a maltratada massa d’água. No seu trajeto, a dupla de cineastas vai nos apresentando àquelas pessoas, suas labutas diárias, seus sonhos, mesmo que utópicos, saudades, bem como o senso de preservação que cada um tem em relação ao rio.
“Fazer um documentário é encontrar pessoas. O documentário é filmar a intimidade das pessoas. Filmar a complexidade da vida das pessoas. São pobres, certo. Mas são pobres de um modo particular, porque são pobres que continuam a viver na região onde nasceram. Uma região que tem uma forte identidade. Isso é importante”, explica Jean-Pierre Duret, salientando como se deu o encontro entre eles e as pessoas que se tornaram personagens de seu filme e a pontua algo imprescindível para o adentrar do espectador na obra. “É uma questão de relação, de sensibilidade, de sentimentos que se abrem pouco a pouco entre as pessoas e nós. E tudo isso vai até ao ponto onde filmamos coisas importantes. E o que são essas coisas importantes? São as coisas do trabalho, do corpo. Trabalho que eles fazem no meio que vivem. São pessoas que vivem disso há muito tempo. E mesmo sendo difícil de continuar a existir do mesmo jeito, porque o rio São Francisco tem muitos problemas, eles tentam ainda sobreviver nessa situação”, esclarece o diretor.
“Rio de Vozes” tem nos seus noventa minutos essa série de encontros e cada um deles apresenta à audiência uma riqueza de detalhes. Seja na expressão silenciosa de um pescador a trabalhar no nylon de sua rede enquanto as filhas falam de coisas tão distantes quanto times europeus de futebol; seja na volta de outro pescador para casa, ainda de noite, com peixes que precisará vender rápido no dia seguinte (e um deles serve como brinquedo para a filha pequena que reencontra ao descer do barco); ou quando um homem define seu amor pelo rio juntamente pelo que dedica à mulher que conheceu naquelas águas. Em outro ponto, uma senhora lamenta a seca do rio ao passar dirigindo por um lugar no qual, anos antes, só conseguiria trafegar de barco. Na força de sua resignação em ainda viver do rio, entra na água e ajuda os homens a empurrar uma embarcação, bem como a pesar os peixes que veio comprar. É nestes encontros que o documentário se firma e encontra sua riqueza reflexiva. A reflexão referente à preservação, ao respeito a tradições, às labutas, às famílias que se construíram ali e permanecem tentando sobreviver do que a natureza daquele lugar ainda oferece.
“Obviamente, quando o projeto foi escrito, não tínhamos encontrado as pessoas que filmamos. Mas tínhamos essa ideia da relação com o rio, porque conhecemos essa região. Sabemos que tem muita gente que tem esse sonho de ir embora na busca de uma vida melhor. Porque muitas vezes eles não conseguem viver ali ou porque estão vendo que os pais sofrem muito porque não conseguem viver daquilo”, explica Andrea Santana ao falar sobre os estágios de criação e o resultado. “Ao mesmo tempo, tem toda uma série de transformações que aconteceram no país a partir de um maior acesso à educação que abriu uma outra visão da importância de sair, sim, para estudar. Mas, também, voltar para a comunidade para aplicar lá o que aprendeu. Ou para continuar a fazer viver isso: fazer com que essa comunidade consiga manter essa cultura de base presente. Que ela continue a existir”, detalha, com esperança, a diretora.
Na construção de pontes entre seus personagens, a citada relação com o rio tem um destaque significativo, claro. Mas a utopia trazida no começo desse texto também se desenvolve como um fator linear entre aquelas narrativas. Duas jovens que surgem, uma no primeiro ato e outro no encerramento do filme, exemplificam bem o fato de que isso pode ir além de utopias. Pode ser concreto. Uma almeja fazer faculdade, não quer ser pescadora. A outra, volta para visitar o avô e lhe explica coisas que está aprendendo no curso de medicina. Fala acerca de sua vontade em ser uma médica a se dedicar às pessoas de sua origem, cujo exemplo do DNA estudado em sala de aula por ela é tão oportunamente inserido naquela conversa afetuosa. O avô vive sua vida ali, feliz pelo que é, mesmo pobre, mas orgulhoso por sua neta seguir em frente. Encontrar tais pessoas é um dos trunfos de “Rio de Vozes”. Enxergar a riqueza daquele homem, ídem.
“Teve uma jovem que disse: ‘quando você filma o meu povo como ele é, eu fico ainda mais orgulhoso desse povo. Por causa do modo como você o filmou’. São coisas que são muito importantes para nós, porque é o verdadeiro ponto final para se fazer um filme”, relembra Jean-Pierre. O cineasta traz esses dois exemplos de personagens e aprofunda essa definição relativa do que seria “pobreza”. “A vontade de que esse filme restituísse algo da beleza das pessoas. Algo que pertença a todos ali. Que seja universal. Que é importante saber que existe. E que se tudo isso desaparecer, seria uma perda para todos. Na maioria do tempo, pessoas diferentes, e ainda mais quando são pessoas pobres, são considerados, pelo olhar dos outros, como jornalistas e mesmo em outros filmes, como algo simples assim: ‘ah, eles são pobres. É a pobreza’. A pobreza não quer dizer nada! O que é ser pobre? O que é ser rico? Possuir o celular da última geração? O que é ser rico? O que é ser pobre? Se você tem uma vida em que você pode olhar para trás e olhar para o futuro ainda com esperança. Se você está consciente de que você tem filhos e que vai poder deixar para eles qualquer coisa de uma vida comum. Isso talvez seja mais rico do que tudo. É nessa forma que nós tentamos trabalhar”, finaliza o cineasta de modo simples e exato.
Neste papo com o Scream & Yell, Andrea e Jean-Pierre aprofundam a experiência na construção de “Rio de Vozes”. Leia a integra do bate papo abaixo!
O filme ficou pronto em 2018 e agora chega aos cinemas em sessões comerciais após passar por festivais on line e presenciais. Como foi essa espera para finalmente trazer “Rio de Vozes” para a audiência?
Andrea Santana – Na verdade, foi muito frustrante ter passado tanto tempo desde que o filme ficou pronto, em 2018, esperando uma oportunidade de poder mostrá-lo na tela. A primeira projeção que a gente fez foi super emocionante.
Jean-Pierre Duret – O filme é feito para o cinema. Por duas razões. A primeira é que as pessoas que filmamos não são consideradas no Brasil. É importante mostrá-las, os rostos deles, os corpos, as vidas, a esperança, os sonhos, o combate, a luta delas na tela de cinema. Acho muito importante. A experiência de mostrar o filme lá, em uma tela grande de 4×3, com um bom projetor, ao ar livre, foi fantástica porque eles têm um sentimento de serem abandonados, de não serem escutados, de não serem vistos pelos outros. E isso foi muito importante para a autoestima deles.
Andrea, lembro de visto você conversando com Marília Hughes no debate on line do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em 2020, e você falou sobre os encontros com as pessoas, sobre como houve um encadeamento de encontros, com uma pessoa levando à outra que levava à outra. No processo de montagem do filme, como se dá essa escolha das pessoas que vocês encontraram no percurso. Imagino que seja doloroso perder alguns desses depoimentos.
Andrea Santana – Na verdade, quando fazemos os filmes, a gente tenta que todo mundo que encontramos esteja na montagem. Porque não deixa de ser um encontro que foi importante para a gente e sempre temos essa vontade que eles estejam no filme. Obviamente que nem sempre conseguimos deixar todo mundo. Mas, nesse caso, todos os lugares que filmamos tem alguém que está no filme. Às vezes, alguns minutos. Algumas vezes, a comunidade inteira. Algumas vezes, a comunidade inteira foi filmada, mas só uma pessoa ficou no filme. Então, óbvio que o processo de montagem é muito doloroso porque você tem que se desfazer de muitas cenas e imagens às quais é apegado porque viveu aquilo com eles. E é por isso que é importante ter um montador ou montadora que esteja completamente distante do que foi filmado. Assim, podemos ter uma narração, algo que precisa ser contado, e vai ser preciso se deixar de lado muita coisa que filmamos. Mas, realmente, a gente procura deixar todo mundo no filme.
Jean-Pierre Duret – A gente não filma tantas pessoas. Porque fazer um documentário é encontrar pessoas. O documentário, o filme que a gente quer fazer, é filmar a intimidade das pessoas. Filmar a complexidade da vida das pessoas. São pobres, certo. Mas são pobres de um modo particular, porque são pobres que continuam a viver na região onde nasceram. Uma região que tem uma forte identidade. Isso é importante. Porque é diferente da pobreza nas grandes cidades, nas favelas da cidade. Porque, aqui, a gente continua a preservar a cultura, a tentativa de viver na tradição do que eles conheceram. E mesmo se são pobres, eles têm um orgulho. E isso é importante. Quando a gente vai ao encontro dessas pessoas para fazer esse filme, precisa que tenha uma relação em que cada um se escolhe. A gente não pode filmar as pessoas se eles não quiserem. Porque não fazemos um filme de jornalista. De pessoas que ficam lá duas horas, um dia, dois dias, e vai embora com a matéria. Nós procuramos a matéria do interior. E isso não se pode explicar. Isso precisa de muito para se aproximar dessa interioridade. É impossível explicar com palavras o que a gente está tentando fazer. Isso é uma questão de relação, de sensibilidade, de sentimentos que se abrem pouco a pouco entre as pessoas e nós. E tudo isso vai até ao ponto onde filmamos coisas importantes. E o que são essas coisas importantes? São as coisas do trabalho, do corpo. Trabalho que eles fazem no meio que vivem. São pessoas que vivem disso há muito tempo. E mesmo sendo difícil de continuar a existir do mesmo jeito, porque o rio São Francisco tem muitos problemas, eles tentam ainda sobreviver nessa situação. Só para dizer que a gente não filma tantas pessoas, porque essa relação, esse encontro, não é com todos. Porque é difícil escolher. Quando você começa a filmar alguém, a situação é aquela em que a gente os encontra. Quem são? São pessoas que não são acostumadas a serem vistas. Não são acostumados que a palavras deles sejam consideradas importantes. Quando você fica um dia, dois, três dias, uma semana, duas semanas, nas quais você acorda às quatro da manhã para filmá-los, pouco a pouco eles trazem uma relação importante que se abre, que deixa a eles a possibilidade de entender o que a gente procura. E o que procuramos qualquer coisa que seja muito pessoal a eles. Reestabelecer a autoestima, entender que as palavras deles são importantes. Não posso falar de Andrea, porque ela é brasileira, mas na maioria das vezes, essas pessoas nunca encontraram uma pessoa estrangeira, um francês. Por que essa pessoa está interessada em filmá-los? Para dizer ao qual ponto, no Brasil, o pobre nordestino, povo nordestino, não é um cidadão de forma completa. Não pertence à sociedade brasileira como deveria. Porque tem muito desprezo. Tem muito do não olhar. Na vida, cada um de nós se abre, se constitui, cresce, no olhar do outro. Quando você não tem um olhar diferente dos outros sobre você, um olhar diferente, é difícil.
Andrea Santana – E essa coisa da reconstituição, porque a gente, agora, foi mostrar o filme para todos, teve uma das pessoas que filmamos que disse uma coisa super tocante. Ela disse: “vocês nos filmaram como se tivessem feito um carinho”. Porque, na realidade, quando filmamos, eles não têm muita ideia do que vai ser o produto final. E todos assistirem ao filme, se sentirem parte de uma história comum, porque cada um mora em um lugar diferente do rio. Mas o rio une todos eles. E cada um tem uma forma diferente de se relacionar com o rio. E ver que o outro que está ali um pouquinho mais à frente tem essa mesma relação que eles têm é uma coisa que foi muito forte quando mostramos o filme a eles.
Jean-Pierre Duret – Teve uma jovem que disse: “quando você filma o meu povo como ele é, eu fico ainda mais orgulhoso desse povo. Por causa do modo como você o filmou”. São coisas que são muito importantes para nós, porque é o ponto final, é o verdadeiro ponto final para se fazer um filme. A vontade de que esse filme restituísse algo da beleza das pessoas. Algo que pertença a todos ali. Que seja universal. Que o francês, quando ele assistir, ele sinta que as coisas que ele ouviu, que ele vê, os corpos, as caras, tudo isso faz parte dele. Desse mundo que é importante conhecer. Que é importante saber que existe. E que se tudo isso desaparecer, seria uma perda para todos. Na maioria do tempo, pessoas diferentes, e ainda mais quando são pessoas pobres, são considerados, pelo olhar dos outros, como jornalistas e mesmo em outros filmes, assim: “ah, eles são pobres. É a pobreza”. A pobreza não quer dizer nada! O que é ser pobre? O que é ser rico? Possuir o celular da última geração? O que é ser rico? O que é ser pobre? Se você tem uma vida em que você pode olhar para trás e olhar para o futuro ainda com esperança. Se você está consciente de que você tem filhos e que vai poder deixar para eles qualquer coisa de uma vida comum. Isso talvez seja mais rico do que tudo. É nessa forma que nós tentamos trabalhar.
Dois dos pontos mais marcantes neste encontro com os personagens das pessoas que vivem nas regiões do rio São Francisco é quando vemos uma jovem conversar com o avô sobre o que ela está aprendendo no curso de medicina e a outra adolescente que fala de sua vontade de fazer faculdade. Imagino que pensar nesses possíveis encontros, norteie a criação da linha narrativa do filme. Como se dá essa construção?
Jean-Pierre Duret – A transmissão é muito importante. É uma transmissão de geração para geração. Quando exibimos o filme na França, as pessoas que viram esse final, essa linda jovem que fala daquele jeito sobre o DNA, que tenta explicar ao avô o que ela está fazendo, que fala sobre sua esperança, o seu projeto de vida, muitos pais e mães gostariam de ter uma filha assim. Que sejam franceses, que sejam de qualquer país. Porque isso simboliza a força, evidencia a generosidade da juventude. E isso não tem preço. Tem um valor primordial. E é isso que é importante na vida. A tragédia dessas populações é que isso não seja muito reconhecido. Isso é um grande problema, porque como essas pessoas não são consideradas, o próprio pensamento não existe para o poder político em geral. E também para as outras camadas da população mais ricas. Isso é uma tragédia do Brasil, na verdade.
Andrea Santana – Obviamente, quando o projeto foi escrito, não tínhamos encontrado as pessoas que filmamos. Mas tínhamos essa ideia da relação com o rio, porque conhecemos essa região. É o quinto filme que a gente faz, então conhecemos as pessoas. Sabemos que tem muita gente que tem esse sonho de ir embora na busca de uma vida melhor. Porque muitas vezes eles não conseguem viver ali ou porque estão vendo que os pais sofrem muito porque não conseguem viver daquilo. E, ao mesmo tempo, tem toda uma série de transformações que aconteceram no país a partir de um maior acesso à educação que abriu uma outra visão da importância de sair, sim, para estudar. Mas, também, voltar para a comunidade para aplicar lá o que aprendeu. Ou para continuar a fazer viver isso: fazer com que essa comunidade consiga manter essa cultura de base presente. Que ela continue a existir. Obviamente que tudo isso, e à medida que a gente ia encontrando as pessoas, isso tudo ia abrindo pistas para a construção do filme. Mas, realmente, a escritura do filme foi feita com a matéria filmada e no momento da montagem.
Jean-Pierre Duret – Ao construir uma narrativa, é preciso um pouco de uma dramatização. Porque é preciso atrair o espectador. Ele precisa entender, mesmo que a gente não use narração. Tudo isso precisa ser compreensível, mas pelas imagens, pelo silêncio, pela beleza. Deixar que cada espectador faça os seus próprios caminhos dentro disso. Não queremos impor um jeito de ver esse filme. Queremos que ele seja um encontro complexo. Isso é o mais importante. Os ricos, as pessoas que vivem com muitas coisas, acham que são os únicos a ver a vida passar de um jeito complexo. Mas não é verdade. As pessoas que têm mais dificuldades para viver o fazem com muita complexidade para continuar a resistir, a sobreviver. Tudo isso é importante para abrir caminhos para o espectador entender tudo isso.
Jean-Pierre, você tem uma longa trajetória e experiência profissional dentro do aspecto sonoro do cinema. Queria lhe perguntar sobre as escolhas neste sentido dentro da construção de “Rio de Vozes”, como a busca por um equilíbrio entre o som diegético e não diegético na captação das imagens, a opção pelo uso de trilha sonora em momentos específicos.
Jean-Pierre Duret – Nesse rio, nessa região que filmamos, tem um ambiente muito particular. Porque tem muita seca bem ao lado do rio. Uma seca danada. E ter o rio, essa massa d’água imensa, cria sons muito particulares. Sons de pássaros, de outros animais, como cavalos, burros, bodes. É maravilhoso ver ainda uma civilização rural, agrícola, que ainda vive com animais. Isso é importante. Os animais desaparecem quando há um momento em que as comunidades desaparecem. Não tem mais animais. Aqui, tem animais. Tudo isso faz parte da trilha sonora. Também tem bonitos passarinhos que têm importância dentro da cultura, porque na cena final tem uma canção do avô da jovem estudante de medicina que é sobre o sabiá. Esse pássaro faz parte da região, da cultura. E é uma canção que fala de jeito muito bonito do rio, dos amores, das pessoas que vivem lá. Tudo isso faz parte. Outro momento, também, que traz uma música não totalmente de inspiração nordestina, mas moderna, se eu posso dizer, porque ela é composta por um grande músico brasileiro (Benjamim Taubkin) que fez um trabalho fantástico. Não tivemos muito tempo para trabalhar com ele. Nós o encontramos por duas horas em Paris. E depois tudo foi feito pela internet. E foi algo que ele fez muito do próprio jeito. Como ele percebia o filme. O resultado foi ótimo. Ele tem muita sensibilidade. O modo como construímos o filme foi como uma viagem pelo rio. Cada vez que partíamos pelo rio, nos ajudava a alcançar diferentes lugares. Mas a gente passa muito tempo envolvido com o som. É algo muito importante. Para o som, é como se esse fosse um filme de ficção. Passamos muito tempo trabalhando nisso. Dois meses de edição de som, mixagem. É muito importante que em cada etapa do filme, a gente tente fazer com que ele seja cada vez mais evoluído. Quando você filma coisas que fazem parte de um enquadramento, o som dá a consciência do mundo inteiro ao redor. Mais que a imagem. E também tivemos muito cuidado com as vozes. Respeitar os rostos e as vozes das pessoas é muito importante.
O filme desperta muitos sentimentos relacionados a uma mescla de esperança e desesperança com o Brasil diante das questões urgentes de preservação do meio-ambiente e, também, do rio São Francisco. Vocês dois têm esperança em dias melhores de mudança?
Jean-Pierre Duret – Eu não tenho esperança enquanto os políticos continuem a agir do jeito que eles agem. Do jeito que eles são. Isso é do mesmo jeito no mundo inteiro. As pessoas que cuidam do futuro, os ecologistas, têm razão. É preciso ter prioridades. É preciso apoiar as populações que vivem ali e que ainda têm tradições, que ainda têm essa relação íntima com o rio, com as árvores, com as plantas. Se os políticos não trazem confiança nessas palavras para iniciar qualquer coisa, nunca vai acontecer. Vou citar um exemplo. Nós fomos à cidade de Barras para exibir o filme. Quando chegamos, o rio havia subido sete metros. Era algo fantástico. Uma paisagem de paraíso. Nessa balsa na qual eu fiz a viagem com eles, tinha um carro de uma grande empresa agrícola. Eu perguntei o que ele fazia. Já tem muitas grandes empresas na beira do rio que desmatam. Todos sabem que é preciso deixar as beiras dos rios com árvores, ou tudo vai acabar. Essas grandes empresas destroem tudo. Esse carro que ia na balsa ia fazer prospecção, comprar grandes territórios dessa caatinga, que é um bioma muito frágil, para plantar soja. Já tem tanta soja no Brasil e eles querem plantar soja na beira do rio São Francisco! Em uma terra que não tem como suportar uma plantação de soja. E o que eles vão fazer? Usar toneladas de adubo químico, uma quantidade de produtos tóxicos enorme, usar uma quantidade enorme de água. Depois, todos esses produtos agroquímicos vão voltar para o rio. As pessoas que vivem lá na beira do rio bebem essa água. Eles só têm essa água. E ela abastece o interior, com os carros pipa pegam água ali para levar ao interior da caatinga. E tudo isso vai continuar do mesmo jeito. Se continuar assim, o rio vai acabar daqui a pouco. E por isso que se os políticos não têm essa consciência, eu não tenho muita esperança.
Andrea Santana – Eu tenho esperança, porque a esperança eu não perco nunca. Mas a verdade é que todos esses problemas do rio são uma questão de vontade política, de decisão política. Porque se todas essas empresas estão aí se instalando, é porque tem um apoio e não têm realmente uma política de preservação que seja realmente forte, que preserve esse rio. Mas eu acho que uma coisa que é fundamental é uma questão de respeito pela nossa gente. Não só pelo meio ambiente, pelo rio, mas é uma questão de respeito pela gente, pela cultura das pessoas que nasceram ali, que moram ali. E esse respeito que tem sido cada vez mais negado. A gente vem de uma história de não respeito pela nossa gente, e agora é ainda pior. Então, acho que se não tiver respeito e consideração, e se tudo isso não for integrado na construção do país, em um projeto de país que integre, que considere essa cultura e essa gente, é difícil ter esperança. Mesmo se eu guardo a esperança com muita força.
Jean-Pierre Duret – No filme, tem essa equipe de jovens que falam muito bem disso. Que têm esperança. E eu tenho esperança graças a eles. Tem um jovem que fala de utopia. Necessariamente, a gente devia acreditar na utopia. Se não, não vai. Eu falei dos políticos, mas eu tenho essa utopia de acreditar que os jovens, a resistência, a luta, o combate dessas pessoas, vai conseguir a qualquer custo. Mas eles precisam da ajuda de todos os outros.
“Rio de Vozes”, música de Benjamin Taubkin
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.