texto de Renan Guerra
Freiras lésbicas fazendo sexo com o auxílio de um dildo feito de uma estátua da Virgem Maria. Esse é um bom tópico para chamar qualquer leitor a querer saber mais sobre “Benedetta” (2021), tanto que esse foi o principal mote da maioria das matérias em torno do novo longa de Paul Verhoeven quando de seu lançamento no Festival de Cannes no ano passado – aqui no Brasil, as mesmas chamadas se repetiram quando o filme abriu a mostra do Festival MixBrasil, em novembro de 2021.
Fato é que o dildo da Virgem Maria já nasce icônico e isso é irrevogável, porém “Benedetta” vai além em sua ousadia, debatendo sexo, poder e religiosidade de uma forma mordaz e direta como há tempos não víamos nas telas do cinema. E o melhor de tudo: com um bom humor invejável! Mas vamos contextualizar: Benedetta Carlini, a personagem-título do filme, é uma personagem real e que causa polêmica há séculos.
A freira viveu na Itália, entre os séculos XVI e XVII, e teve uma série de episódios controversos, envolvendo visões paranormais, stigmatas e um caso amoroso com uma de suas colegas de clausura. Tudo isso está retratado no livro “Atos Impuros – A vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença” (1987), da historiadora norte-americana Judith C. Brown – o livro foi lançado no Brasil pela editora Brasiliense nos anos 1980, porém está fora de catálogo atualmente. É a partir deste livro que Paul Verhoeven constroi o seu filme que chega agora as salas de cinema nacionais, em distribuição da Imovision.
Obviamente, o diretor inclui nessa história doses extras de violência e sexo, uma marca de seu cinema – vide títulos como “Instinto Selvagem” (1997), “Showgirls” (1995) e o recente “Elle” (2016). E, claro, toda essa estilística rende controvérsia: há quem tenha considerado a exploração do corpo feminino e do sexo exagerada no filme – leituras possíveis dependendo do espectador. De todo modo, “Benedetta” é interessante especialmente pelo seu exagero: as alegorias são diretas, o sexo é marcante e o sangue jorra de corpos humanos, serpentes e feridas abertas.
Verhoeven não busca sutilezas em “Benedetta” e isso pode incomodar uma parcela do público, visto que o filme é uma sequência de blasfêmias. No longa, acompanhamos a chegada de Benedetta (Virginie Efira) ao seu convento na região da Toscana, comandado por uma abadessa mesquinha e gélida interpretada com maestria por Charlotte Rampling. Já no início da vida adulta, iremos acompanhar suas visões religiosas, bem como o seu envolvimento com a freira Bartolomea (Daphne Patakia).
A história de Benedetta pode render múltiplas leituras: poderia ser um filme de amor proibido; um debate sobre moralidade ou mesmo uma história sobre repressão; curiosamente, Paul Verhoeven escolhe o caminho do poder como guia do longa-metragem. Todos esses personagens que vemos na tela são seduzidos pelo poder, se embrenham na necessidade de dominar o outro e lutam com unhas e dentes por qualquer pequena chance de se colocar acima dos seus pares. E isso se reflete em torturas, violência, tensões e medo, num resumo bastante didático da história de poder da Igreja Católica no Ocidente.
Mais do que um filme sobre freiras pecaminosas, “Benedetta” é um filme sobre como Igreja e poder andam lado a lado e sobre como os dogmas religiosos conseguem tomar conta da nossa vida de forma tão rígida e incômoda, que mesmo nos desprendendo deles, sempre há uma adjacente culpa. É interessante como o diretor consegue colocar isso na tela de forma gráfica e física, como se sentíssemos o medo, a dor e as alucinações de cada personagem, porém ele não faz isso com pesar, mas sim com refinada ironia, que nos faz gargalhar pelo absurdo de suas construções.
“Benedetta” já nasceu prontinho para entrar na gôndola dos filmes que incomodam de monte a Igreja Católica, ali do lado de “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, e “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, e só por isso já valeria ser visto. Mas além disso, o longa de Verhoeven é uma interessante aventura pelo universo dos nossos desejos, dos nossos medos e das construções sociais que nos cercam.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.