texto de João Paulo Barreto
Imaginar um retorno, em pleno 2021, ao mesmo patamar de inovação narrativa (claro que com muitos dos seus aspectos oriundos do cinema e literatura orientais) que “Matrix”, clássico de 1999, conseguiu inserir no Cinema de entretenimento oriundo dos Estados Unidos não é uma tarefa fácil. Obviamente, suas duas continuações lançadas em 2003 já nortearam para os espectadores o caminho que a proposta das irmãs Wachowski seguiria a partir da diluição do seu choque inicial e frescor de originalidade naquele final do século XX.
Tendo um foco quase que exclusivamente voltado para o espetáculo visual, apesar de ainda manter um aprofundamento existencialista (e que, ao final de sua primeira sequência, quebrava com a estrutura narrativa básica dos filmes de ação), “Reloaded” e “Revolutions” simplificaram conceitos, mas não diminuíram o impacto de suas tramas perante os alvoroçados fãs que ainda não tinham redes sociais para escravizá-los (Orkut e mIRC contam?) naquele começo de milênio, há quase vinte anos.
Nesta nova empreitada, Lana Wachowski sabia da responsabilidade de escapar da armadilha preguiçosa do mais do mesmo (bem como da necessidade urgente de fugir do “fan service”, tão comum e pobre narrativamente em tempos de Marvel Studios) quando decidiu retornar a esse universo na escrita de “Matrix Resurrections” (2021). Sim, trata-se de um trabalho que aborda a proposta de evolução tecnológica e da sociedade dentro das mudanças sofridas por ambos elementos no período que separam as produções. Sim, trata-se de uma obra que vai abordar a avassaladora invasão que a internet e o mundo virtual trouxe para as vidas das pessoas nas últimas duas décadas. Mas, também (e ainda bem) trata-se de um longa que vai além disso.
O que a diretora e roteirista, ao lado dos também criadores da série “Sense8”, optaram por seguir foi um caminho no qual o fenômeno Matrix é estudado dentro de um dos seus próprios derivados. E essa definição refere-se tanto ao produto “Matrix Resurrections” quanto à proposta de uma análise metalinguística desse citado fenômeno mercadológico dentro de seu próprio conteúdo narrativo.
A metalinguagem aqui, porém, é mais do que apenas um “instrumento esperto” no contar da história. Trata-se de um meio de se perceber o impacto cultural daquele produto além dos seus modos de ser avaliado e destrinchado analiticamente, adentrando, também, no aspecto mercadológico da franquia “Matrix”, que faz salivar executivos de estúdios como a Warner, citada no roteiro como uma das responsáveis diretas pela exigência de uma quarta parte. E toda essa discussão a partir de um olhar cômico inesperado, usando o próprio filme como ferramenta de construção dessa análise. Como disse Neo ao ver Morpheus pular entre prédios, lá em 1999: “uau!”
Aqui, preso novamente ao simulacro de realidade representado pela Matrix, Neo (Keanu Reeves) revive sua existência libertária e rebelde apenas através de uma trilogia homônima de jogos criada por ele mesmo, ou, no caso, por Thomas Anderson, premiado designer de videogames. Na verdade, esse “reviver” trata-se apenas de uma lembrança plantada em sua mente.
“Nada como um pouco de nostalgia para lidar com a ansiedade”, pontua um dos personagens centrais. E essa fala é proferida em um dos momentos chave da trama, quando Neo precisa tomar a pílula vermelha para que seja localizado nos campos de cultivo das baterias humanas. O encontro com Morpheus que conhecemos na obra original é projetado na parede como uma lembrança tanto nossa, espectadores, quando daquele confuso Thomas Anderson. Aos poucos, ele começa a se lembrar que já foi Neo, (“aquilo foi real?”, pergunta) quando vê a si mesmo mais jovem encontrando aquela versão do comandante da Nabucodonosor e que, agora, tem uma versão construída de forma artificial na figura de Yahya Abdul-Mateen II.
Em resumo, as imagens entrecortadas nos diálogos que versões novas dos personagens repetem e que surgem com flashes de memória de Neo, nesta cena surgem, também, como uma memória coletiva nossa, audiência, bem como do protagonista. O significado dessa utilização pode ter feito Charlie Kaufman sorrir na poltrona.
Tal qual Alice adentrando através do espelho, referência já utilizada no original, “Resurrections” tem esse elemento como guia de passagem entre realidades em uma época que não são mais necessárias linhas telefônicas para se conectar ao meio virtual da internet ou para hackear o sinal da Matrix. E a ideia de conhecer a si mesmo bate ainda mais pesado nesse conceito da obra.
Nesta ideia do conflito entre consciências e auto-reflexão, Lana Wachowski prova outro dos pontos fortes de seu roteiro ao adaptar a ele o avanço da tecnologia nos últimos 22 anos e um exemplo do preço cobrado: a forma como surgiu uma ainda mais violenta escravização humana perante as máquinas, uma vez que, em nossa realidade, “zumbis” caminhando na rua enquanto olham para telas de celular são um dos símbolos mais evidentes da maneira como esse domínio se deu sem qualquer disfarce existente na sua versão de 1999.
Em uma das sequências de maior impacto do filme, pessoas (ou, no caso, baterias plugadas à Matrix) pulam de prédios feito bombas humanas. Chamadas de bots, numa alusão ao termo que define os robôs de resposta automática das redes sociais a causar enxames destinados a alvos localizados por algoritmos, tais pessoas não são mais os riscos potenciais de se tornarem agentes, mas, sim, elas mesmas armas dominadas pelas máquinas e dispostas a morrer por elas. A coragem do roteiro em abordar tamanho simbolismo dentro da ideia suicida de morrer (mesmo que inconscientemente, claro) para defender um sistema que apenas absorve a energia vital dos seres humanos é precisa em sua analogia.
O destaque dado ao arco dramático envolvendo a personagem de Carrie-Anne Moss é outro ponto que não pode passar incólume em qualquer análise. No simulacro de realidade plugada à Matrix que a agora Tiffany (!) vive, a ex-guerrilheira cibernética é uma mãe de três filhos, casada, que reencontra Thomas Anderson, o designer de games, e tem a inevitável sensação de déjà-vu (sem qualquer referência ao erro da Matrix, aqui). Em sua conversa com Neo, fala sobre essa necessidade da maternidade como algo obrigatório, enquanto o homem comenta não ter tido filhos. No seu desfecho, essa observação quanto a ideia de ser mãe retorna como uma resposta violenta à maneira como tal questão foi imposta a Trinity de modo a mesclar o lado afetivo ao obrigatório no aspecto da suposta necessidade de ter filhos, quando para o homem a paternidade surge como uma opção. Quando descobrimos a real força da presença de Trinity na trama, entendemos o que Lana Wachowski quis nos trazer com essa reflexão.
É ótimo perceber “Matrix” como algo ainda relevante tantos anos depois de seu pilar definitivo naquele distante final dos anos noventa. Como disse o agora decrépito Merovingian (Lambert Wilson), “nós tínhamos conversas reais, não esse ‘tic tic tic’ de teclados”. A máquina tem razão.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.