entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
O percurso musical de Pedro de Tróia é marcado pela autenticidade e por uma forma confessional de abordar suas canções. “Com a minha música procuro salvaguardar a minha memória. Eu tenho dificuldade em cantar coisas que não vivi, sonhei ou senti. Por isso, as canções que escrevo são sobre mim ou relativas a pessoas à minha volta”, explica de forma ponderada, mas descontraída, enquanto conversamos numa esplanada do Jardim da Estrela, em pleno coração lisboeta, e abordamos a sua carreira bem como o seu disco mais recente, “Tinha De Ser Assim” (2021).
Natural de Coimbra, Pedro veio para Lisboa em 2008 com o objetivo de estudar publicidade e ser artista. Alguns meses depois, Manuel Fúria (músico e responsável pelo extinto selo Amor Fúria) desafiou-o a formar uma banda, que se viria a se chamar Capitães da Areia. O grupo lisboeta, do qual Tróia foi o vocalista, lançaria dois singles em 2010 (“O Capitão Bomba” e “Bailamos no Teu Microondas”), aos quais se seguiria o álbum de estreia, “O Verão Eterno dos Capitães da Areia” (2011), assente na nostalgia veraneante e marcado pela tentativa de reinventar o pop, que permitiu ao quarteto lisboeta ganhar confiança no trabalho desenvolvido.
O passo seguinte foi mais ambicioso e gerou imensa expectativa nos integrantes da banda. Intitulado “A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70”, o disco conceitual de 2015 teve a participação de vários músicos portugueses e contava a história da entrada num centro comercial que se tornava uma nave espacial. Pedro de Tróia confessa que esperava uma melhor receptividade ao álbum e relativamente à possibilidade de se tornar uma peça de culto, coloca algumas dúvidas: “É um disco que não é consensual. Tem muita conversa pelo meio e distrai o ouvinte, mas foi o que nos apeteceu fazer na época. Acredito que continuará a ser um objeto singular. Ainda assim, eu não me espantaria se as pessoas viessem a gostar dele mais tarde”.
A carreira solo de Pedro começou a tomar forma durante um período de intervalo nas atividades da banda (logo após uma atuação no Centro Cultural de Belém, em 2016), que acabaria por ser mais prolongado. Tróia viveu um período de alguma desorientação, que se agravaria com a implosão do seu selo (Azul de Tróia). Num dado momento, Pedro Valente, responsável da Azáfama (uma empresa sediada em Lisboa que se dedica ao agenciamento e management de artistas), incentivou Pedro de Tróia a aventurar-se num álbum em nome próprio. “Faz um disco sozinho e depois veremos como será”, disse Valente ao músico conimbricense. Essa frase inspirou o título do álbum de estreia de Tróia, “Depois Logo Se Vê” (2020), um trabalho reflexivo e marcado por uma harmonização emotiva, de onde se extrai igualmente o bom pop de “Embaraçado” ou “Nunca Falo Demais”.
No Natal do mesmo ano, quando o confinamento resultante da pandemia abrandava, Pedro propôs a Tiago Brito (produtor e guitarrista dos Capitães da Areia) que gravassem um novo disco em tempo recorde e à distância. Brito aceitou e “Tinha de Ser Assim” foi lançado em 2021 como resultado de um dia de gravações. Trata-se de um trabalho calmo e de aceitação pessoal. Mas, comparativamente com o disco anterior, o pop ganha terreno aos momentos mais introspetivos. Um desses exemplos é a faixa “Gosto Tanto de Ti”, que partiu de um instrumental e recriou bem a sonoridade dos anos 1980 com temática romântica. “É uma canção de amor que diz o essencial: ‘Gosto tanto de ti e até do respirar’”. Quando gostamos de alguém e de ver essa pessoa a dormir ou estando perto de nós não precisamos dizer nada e isso acalma-nos”, conta Tróia.
Outra música do novo disco que se destaca é “Dor no Ombro”, pela assunção da maturidade, mas “Passarinho”, com os seus versos metafóricos, implica uma audição atenta. “É a música mais diferente que escrevi até hoje, porque estou a colocar-me num personagem que é um pássaro vermelho. Trata-se de uma figura que me aparece com muita frequência, nomeadamente na resolução de conflitos pessoais. Se tivermos uma visão de águia ou de um pequeno pássaro vermelho, mesmo que voemos mais baixo, vemos o conflito por inteiro”, explica. Para concluir revela um pensamento: “Cada vez mais faço por ver as coisas de cima, como o passarinho, mas também estou predisposto a aceitar as imprevisibilidades da vida”. De Lisboa para o Brasil, Pedro de Tróia conversou com o Scream & Yell.
https://pedrodetroia.bandcamp.com
No seu álbum de estreia havia uma tentativa de apaziguamento emocional. Enquanto no seu mais recente trabalho, “Tinha de Ser Assim” (2021), existe um sentido pop mais evidente. O que mudou em si de um disco para o outro?
Agora há mais clareza. Quase todas as canções do primeiro álbum são rasgos de urgência, para superar algumas mágoas que eu tinha, com a exceção da faixa “Óculos de Sol”, que é um pouco ´nonsense´ e foi feita num momento específico. Quando escrevemos vamos nos entendendo e quando a música foi gravada o assunto não está resolvido, mas ficou compreendido. Tive muita necessidade de por no papel alguns casos que me afligiam, de certa forma. O disco “Tinha de Ser Assim” é mais pop por dois motivos. Por um lado, sinto-me mais sereno agora. Este álbum foi feito há menos de um ano e o disco de estreia foi se fazendo aos poucos desde 2017. Por outro lado, o meu novo trabalho é mais imediato e o meu pensamento era: “Gostaria de ter um álbum no próximo ano”. O Tiago Brito (produtor do disco) falava-me mais na perspectiva de lançar um EP ou alguns singles. Por isso, foi algo intuitivo, espontâneo e levou-me a cogitar para onde é que este percurso me poderia transportar, naquele momento. No álbum de estreia, “Depois Logo Se Vê” (2020), houve uma atmosfera debatida e trabalhada, enquanto o disco recente foi mais momentâneo e energético. A nossa abordagem era mais no sentido de optar por uma noite longa de trabalho, do que esperar um mês para ver como a música estaria a soar. Este disco é o segundo degrau e haverá um terceiro patamar que eu não sei dizer onde me irá conduzir. Sinto-me em paz por saber que estou a tentar crescer. Para além disso, o “Tinha de Ser Assim” foi lançado este ano muito em função da pandemia. Ele não estava nos planos, é o produto de uma reação. Se o surto não tivesse ocorrido teriam havido shows, eu estaria mais entretido e o meu disco anterior teria tido outra vida.
Rui Reininho (vocalista dos GNR) cantou consigo na faixa “Carrossel”. Como surgiu esta parceria?
Tudo começou quando o Pedro Valente me disse para eu compor mais músicas e fazer um disco ou então editariamos um EP. Escrevi quatro canções numa noitada: “Carrossel”, “Passarinho”, “Não Te Vou Deixar Para Trás” e “Ballet”. Quando mostrei as músicas na manhã seguinte (apresentei-as em separado a uma pessoa de cada vez), ao escutar o “Carrossel” só à viola, várias pessoas me disseram que eu devia enviar essa canção aos GNR, porque eles iriam gostar do tema. Para mim, uma parceria com o Rui Reininho era algo com que tinha sonhado em tempos. Por isso, mandei-lhe um email e disse-lhe muito resumidamente que durante muitos anos fiz viagens de carro com o meu pai e o meu irmão e nesse trajeto o que imperava era o silêncio. Mas, o meu pai tinha uma escolha musical própria que incluía o Rodrigo Leão, os GNR e o Madredeus. Curiosamente, estas são as minhas referências, ou seja, fui absorvendo aquilo e hoje é o que me dá realmente prazer escutar. Quando fazíamos essas viagens, eu recordo-me de escutar os GNR e querer estar perto daquelas pessoas, daquele cantor e perceber o que era a “Bellevue” ou as “Dunas”. No fundo, eu tinha imensa vontade de fazer perguntas e o Reininho era uma espécie de amigo imaginário. Então contei-lhe isso e mostrei-lhe a música. Ele teve uma reação espetacular, demonstrando a sua grandiosidade, não só pela carreira que tem, mas também na forma de ser. Num determinado momento perguntou-me: “Vou a Lisboa ou vens ao Porto?”. Eu decidi ir gravar com ele ao Porto e disse para mim próprio: “Agora não estás no quarto a escutar a música desta pessoa, porque agora estamos a gravar juntos”. Isso foi uma situação que nunca me irei esquecer, mesmo que ocorram problemas de memória. Foi muito forte.
Como viveu o seu regresso aos palcos, no Cineteatro Capitólio, em Lisboa, depois de treze meses de ausência? O que é que lhe agradou mais?
Agradou-me mais o fato de saber que, mesmo com a pandemia, ainda cá estou, bem como todos nós. Também gostei que o Rui Reininho tivesse ali para cantar conosco. Outro aspecto importante resultou de ter um disco novo para apresentar. Senti que fiz o que estava ao meu alcance para ser feliz. Foi muito importante para mim. Por último, transmitiu-me uma sensação de leveza. Eu já tinha estado em palco no mês de Agosto de 2020 e chocou-me bastante ver as pessoas com máscaras a assistir ao show. Nunca tinha visto o público só pelos olhos e isso fez-me confusão. Em Novembro deste ano, no Cineteatro Capitólio, aconteceu a mesma coisa. Estavam todos com máscaras e eu não sabia por quanto tempo iríamos tocar assim. Mas, o importante é estarmos aqui e querermos viver. Essa sede de viver tem sido muito gratificante para mim.
Você anunciou para breve um terceiro álbum de inéditas. Já tem ideia do caminho musical que vai seguir?
Sim, perfeitamente. Os meus amigos dizem que tenho o coração na boca, ou seja, digo as coisas e só depois penso no que disse. Eu não devia ter dito isso, porque houve mais pessoas, do que eu pensava, a ouvir as minhas palavras. Para todos os efeitos esse era o disco planejado para sair a seguir ao “Depois Logo Se Vê”. Não sei quando sairá, mas é o álbum que eu, enquanto artista, quero fazer. É o trabalho que vai traduzir o que eu sinto há muitos anos e que me soa por dentro. Trata-se de uma questão de autenticidade, espelho e reflexo. Os meus discos e dos Capitães da Areia tiveram, sempre, alguém a definir a orientação estética e artística. Eu participei neles, é certo, mas houve uma pessoa a quem delegámos essa função. Para o meu terceiro trabalho solo, já há um código estético que eu tenho delineado e fechado. Não se trata de um conceito, embora ele exista, mas apresenta uma imagem nítida sobre como eu me vejo enquanto artista. Esse álbum será uma espécie de sala de estar para mim. Tenho a tendência de me sentir mais confortável com canções melancólicas, porque o ritmo frenético na voz não me dá propriamente conforto. Essa cadência poderá existir no instrumental, mas aquilo que eu canto no banho ou na rua são coisas calmas e serenas. Provavelmente será um disco mais escuro e mais bonito, talvez.
Numa entrevista antiga, Kurt Cobain disse que uma vez se fechou no quarto durante uma semana para tentar compor a canção perfeita. Imagina-se num cenário idêntico?
Eu fiz isso em 2014. Durante um fim-de-semana, estive fechado num quarto, apenas com uma garrafa de água. Tentei perceber o que sentia, imaginava ou escrevia estando numa situação desconfortável. Não sabia se era dia ou noite, porque estava num quarto sem janelas. É doentio, mas foi uma experiência que me fez imenso sentido na altura. Não havia nada mais envolvido a não ser a água e um caderno. Do ponto de vista prático não resultou em nada. No entanto, percebi que me bastava a mim para criar e recriar. À minha volta só estava o que eu escrevia ou rescrevia, paredes, uma cama e um banheiro. Recordo-me que nesse tempo a minha auto-estima era muito baixa, mas aprendi que enquanto confiar em mim e com trabalho vou ser capaz de me reinventar e de me surpreender.
Qual é a sua mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Se porventura mostrarem o meu disco atual e o próximo à Marisa Monte eu ficaria muito agradecido a todos. A canção brasileira e o Chico Buarque, sobretudo, do ponto de vista de autor, foi a minha grande descoberta este ano. Não escutei só as canções, li imenso sobre a sua vida e fiquei rendido. Mas, o dueto que eu gostaria mesmo de fazer era com a Marisa Monte.