Texto e fotos por Nelson Oliveira
Fotos também de Saulo Brandão / Afropunk
Quem mora em Salvador e gosta de música boa costuma aguardar a chegada de novembro com ansiedade. Afinal, o mês é um dos mais nobres no calendário cultural da capital baiana, por costumar ter festivais ao longo de seus dias e esquentar a programação que chega ao ápice durante o verão. Em 2021, o papel de aquecedor coube ao Afropunk Bahia.
Criado em 2005, em Nova York, o Afropunk circulou por países como Inglaterra, França e África do Sul até se preparar para desembarcar no Brasil em 2020. O festival chegou a dar um aperitivo com um trio elétrico que desfilou no circuito Barra-Ondina em dois dias do carnaval, levando aos foliões artistas como BaianaSystem, Mano Brown, BNegão, Vandal e Afrocidade, mas não pode ocorrer em seu formato original devido à pandemia de Covid-19. Um ano depois do previsto, com o avanço da vacinação e o aval das autoridades sanitárias, o evento em celebração à cultura negra pode acontecer pela primeira vez na cidade mais preta fora da África – e com a renda totalmente revertida ao projeto socioeducativo Quabales, tocado pelo percussionista Marivaldo dos Santos no Nordeste de Amaralina, bairro popular de Salvador.
Público / Foto de Saulo Brandão
Encerrando o Novembro Negro, o Afropunk Bahia teve dois dias de rodas de conversa com empreendedores negros de diferentes setores culturais e, no sábado, 27, deu vazão a sua parte mais performática, com material audiovisual, moda e shows produzidos por artistas negros – tudo transmitido pelo canal do festival pelo YouTube (ao final do texto você pode assistir a integra do festival!). O evento aconteceu num dos espaços mais novos da capital baiana, e que tende a ser um dos queridinhos para espetáculos de médio e grande porte daqui para frente. O Centro de Convenções Salvador foi inaugurado pouco antes de a pandemia virar o planeta de cabeça para baixo e só pode ser reaberto para apresentações dias atrás.
Longe do burburinho de bairros mais badalados, como Rio Vermelho, Barra, Pelourinho e Santo Antônio Além do Carmo, o complexo, localizado na Boca do Rio, foi ideal para a realização de um evento nas atuais condições sanitárias. Na espaçosa e moderna estrutura de um dos saguões do centro de convenções, a produção do Afropunk Bahia pode fazer filas bem organizadas para que os espectadores apresentassem a comprovação de que tinham o ciclo vacinal completo. Após a conferência, o visitante tinha acesso ao Espaço Marés, onde ocorreriam os shows.
No amplo pátio à beira-mar, os cerca de 3 mil presentes tiveram uma arena repleta de experiências. Além de dois bares, food trucks e cabines fotográficas, o black carpet chamava atenção: grifados ou com peças DIY, pretas, pretes e pretos, anônimos ou famosos, fizeram fila para mostrarem seus looks, seguindo as propostas estéticas incentivadas pelo movimento Afropunk.
Para quem queria ser mais discreto e apenas curtir a música, bastava se fixar nos dois palcos e na qualidade do som. Dando destaque a plantas, cestos de palha, vasos de argila e abajures, a cenografia redonda saltava aos olhos. O som também ecoava sem problemas desde as primeiras atrações do festival: videoclipes, curtas e outros produtos audiovisuais de dezenas de artistas e shows gravados dos baianos Giovani Cidreira e Jadsa, que lançaram os elogiados “Nebulosa Baby” e “Olho de Vidro” em 2021, foram exibidos pelos dois telões do espaço.
As apresentações ao vivo começaram pouco antes das 17h30, quando a cantora Larissa Luz, nas vestes de curadora e mestra de cerimônias do festival, anunciou a merecida homenagem do Afropunk a Letieres Leite, falecido no mês passado por insuficiência respiratória em decorrência da Covid-19. Aliás, a banda que serviu de base para quase todas as atrações que passaram pelo palco principal naquela noite poderia ser definida como um tributo ao maestro, pois era formada por diversos ex-parceiros – Enio Nogueira, guitarrista e programador responsável pela direção musical; Gabi Guedes e Alana Gabriela nas percussões; Tedy Santana na bateria; Fabrício Mota no baixo; Jaguar Andrade na guitarra; Marcelo Galter no teclado; Gleison Coelho e Normando Mendes nos sopros. Abrindo os trabalhos, eles tocaram “Floresta Azul”, composição de Letieres para a Orkestra Rumpilezz.
Em seguida, ao cair da noite, Tássia Reis (SP) entrou em cena com seu rap empoderado e foi animando o público numa crescente, que culminou na suingada “Ah Vá”, presente no álbum “Próspera” (2019). Depois de cerca de 20 minutos de show, a paulista convidou o Ilê Aiyê (BA), bloco afro mais velho do Brasil, para subir ao palco e cantou com Jiauncy, um dos vocalistas do grupo, a potente “Ilê de Luz”, antes de encerrar a sua participação e deixar o Ilê transformar a orla da Boca do Rio numa versão litorânea da Senzala do Barro Preto.
Com um repertório conhecido de cor e salteado pelo público, a Band’Aiyê preencheu o Espaço Marés com o peso de sua percussão e os graves das vozes de Jiauncy e Iana Marucha, além dos passos tão firmes quanto delicados de seus bailarinos. Sem dúvidas, o momento mais emocionante da apresentação se deu com “Negrume da Noite”, canção famosa por incluir parte da cantiga de Oxóssi no xirê.
O orixá é conhecido como o rei das matas, mas também rege a criação artística. Pelo simbolismo religioso, a performance soava como uma espécie de réquiem ao compositor de “Mundo Negro”, primeiro sucesso do Ilê. Naquele momento, o ritmista Paulinho Camafeu – afilhado do mestre Camafeu de Oxóssi, o que certamente não é coincidência – se encontrava internado, à beira da morte, por problemas cardíacos. O ícone do bloco, que também foi um dos criadores da axé music, viria a falecer dois dias depois do tributo no Aiyê.
No palco principal, as apresentações potentes continuaram. Mesmo acompanhada apenas de uma DJ e coberta somente por um top translúcido, uma calcinha cravejada de pedras e pinturas alusivas à Timbalada, Urias (MG) conseguiu segurar o seu show como se fosse uma veterana. A versatilidade em cena, trabalhando com a sensualidade (“Rasga” e “Peligrosa”) ou dando vazão a seu timbre inebriante, como em “Diaba” ou na irônica balada “Foi Mal”. O dueto com a performance política e estética inoculada por Vírus (BA) foi uma das escolhas acertadas da curadoria do Afropunk Bahia.
Após o furor provocado por Urias, Malía (RJ) comandou uma apresentação tecnicamente correta, trilhando um caminho pop aberto por cantoras como Iza. A carioca lidou bem com um problema na mesa de som e agradou com “Escuta”, “Flow” e uma releitura de “Zé do Caroço”, de autoria de Leci Brandão. Além disso, dividiu o palco com Margareth Menezes (BA), diva do afropop, em “Minha Diva, Minha Mãe”.
A baiana, a propósito, apostou num caminho diferente do habitual: ao invés de requentar os seus maiores sucessos, aproveitou a oportunidade conferida pelo festival internacional para cantar músicas de “Autêntica” (2019), seu álbum mais recente. Entre as mais conhecidas de seu repertório, Maga só deu uma palhinha de “Faraó, Divindade do Egito”, a pedido do público, e encerrou com a política “Alegria da Cidade”, canção de Lazzo Matumbi e do saudoso Jorge Portugal, gravada em seu álbum de estreia (“Margareth Menezes”, de 1988).
Infelizmente, o formato do festival não permitia shows mais longos. Mas, mesmo assim, Luedji Luna (BA), atração seguinte do palco principal, conseguiu encadear canções fortes, naquela que foi a melhor apresentação da noite. Em sua cidade natal, Luedji apresentou, pela primeira vez, parte do repertório do aclamado álbum “Bom Mesmo É Estar Debaixo d’Água” – segundo colocado da lista de discos do Scream & Yell de 2020. Iniciando com a sequência formada por “Chororô”, “Ain’t Got No”, “Erro” e a faixa-título do seu mais recente trabalho, a soteropolitana produziu o momento mais virtuoso do Afropunk Bahia.
Imbuída de um sentimento maternal metaforizado pelo roxo de Nanã em boa parte da iluminação de seu show, e tendo o respaldo do axé de seu filho, Ossanha, nas folhas e no verde do palco, Luedji convidou os “afilhados” do duo YOÙN (RJ), com quem gravou o single “Espelho”, deu um espaço para os jovens e, minutos depois, se despediu com “Banho de Folhas”, o seu maior hit – que versa justamente sobre os rituais religiosos afrobrasileiros.
Dessa forma, Luedji abriu caminho para uma das maiores entidades da música brasileira: Mano Brown (SP), vestido inteiramente de branco e munido também de uma corrente de prata e de óculos Juliet. Após iniciar sua apresentação com “Mil Faces de Um Homem Leal”, trazendo a figura do guerrilheiro baiano Carlos Marighella para a arena do Afropunk, Mano rapidamente convidou Duquesa (BA) para sua participação e a feirense, com sua voz delicada e suas love songs, como “Diz”, ofereceu uma antítese interessante ao gangsta rap e os temas políticos tão presentes no repertório de Brown e dos Racionais MC’s. Versos como os de “Negro Drama”, “Vida Loka” (partes 1 e 2) ou “Jesus Chorou”, que sempre provocam momentos catárticos quando são executadas. E, obviamente, foi assim também no Espaço Marés.
No palco alternativo, o duo Deekapz (SP) e a turma da Batekoo (criado na BA, mas expandido pelo país) receberam convidados e se revezaram nos intervalos dos shows principais. O coletivo de origem baiana, que propõe misturas entre ritmos como o pagode baiano e o funk carioca, além de promover a performance através da dança, animou com a liberdade de existir do incorporada e transmitida pelo Afrobapho (BA) e, principalmente, com Deize Tigrona (RJ) – vestida com estampa de oncinha, a debochada veterana da cena fluminense levantou a galera com sucessos como “Injeção”e “Sadomasoquista”. Nesse sentido, a morna participação de Tícia (BA), contudo, destoou das demais.
Com seu downtempo tropical e texturas interessantes nas batidas, os paulistas abriram espaço para a cantora Melly (BA) e a rapper Cronista do Morro (BA), que acabaram chamando mais atenção do público por conta de alguns hits locais, como a fusão entre R&B e pagodão de “Azul” e o drill nervoso de “Terror da Leste” e “Não Bata de Frente, Desgraça”. No fim de tudo, após o show de Mano Brown, ainda houve espaço para uma canja não prevista: enquanto os Deekapz discotecavam para quem não queria terminar a noite às 23h, Nêssa (BA) subiu ao palco e animou a plateia com o seu pagode baiano, encerrando de fato os trabalhos no Espaço Marés.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.