entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
“Fico muito satisfeita por haver algo na minha essência que apele às pessoas e com a sua relação emocional tão forte com os Deolinda. Mesmo assim, conseguem estabelecer um vínculo afetivo comigo e apreciam a minha música”, diz-me Ana Bacalhau quando a questiono sobre a contínua adesão do público às diferentes fases da sua carreira. “Além da Curta Imaginação” (2021), o mais recente álbum da cantora lisboeta é o tema principal da nossa conversa, onde abordaremos igualmente o seu passado, a atividade presente e também o futuro.
O novo trabalho de Ana foi gravado entre Janeiro e Outubro de 2020 (antes da pandemia e depois do confinamento) num misto de intencionalidade na escolha dos músicas, mas também do que se viveu ao nível da interpretação. “Acho que, de alguma forma, a viagem que eu fiz e todos fizemos nesse período está refletida no espírito do disco”, conta. O álbum inclui duas canções da sua autoria (“Não É Nada” e “Que Me Interessa A Mim”), bem como canções de Jorge Cruz, Francisca Cortesão e Nuno Prata (que já haviam composto para o álbum de estreia de Ana Bacalhau, “Nome Próprio”, de 2017) e registra as estreias de Átoa, D´Alva, Tainá e Mafalda Veiga.
Os pontos altos do trabalho passam pelo pop irresistível de “Sou Como Sou” e pela humorada “Isso É Que Era Bom”, assim como a intensidade emocional de “Que Me Interessa A Mim” e a simplicidade desarmante de “Tudo de Bom”. Comparativamente com “Nome Próprio”, o novo disco tem uma temática mais diversificada que resultou de um processo apurado.”Escolhi um lote de canções que me pareceu ser mais completo, mostrando aquilo que eu queria dizer na altura. Achei que aqueles discursos correspondiam aos meus sentimentos nesse momento”, explica.
Recentemente, Ana Bacalhau participou num disco de tributo a Tozé Brito (um conhecido cantor, letrista, compositor e produtor português) interpretando “Canção da Alegria” com a cantora Mitó, numa experiência que lhe agradou bastante: “Adorei a música e gostei muito de cantar com a minha amiga Mitó. A voz dela, com aquela sensualidade de veludo chocolate, junto com a minha voz primaveril e de gaiata, resultou em algo deveras bonito. Adorei, igualmente, os arranjos e aquele sabor de folk anos 1970. Para além disso, foi uma honra participar numa homenagem ao Tozé Brito que tanto deu à música portuguesa em todas as suas vertentes”.
Sobre o seu futuro e o da música portuguesa, num contexto que ainda inspira muitos cuidados, a cantora lisboeta exibe uma posição determinada: “Estou a torcer para que a cultura não seja novamente parada. Foi muito difícil aguentar este embate e se paralisarmos outra vez ainda será pior. É muito importante que nos deixem trabalhar. A nossa atividade é como a dos médicos e enfermeiros. Eles curam o corpo e nós a alma (risos). Espero que os medicamentos funcionais venham rapidamente para o mercado e andemos para a frente. Sem música, cinema e literatura o que teria sido de nós quando estivemos em casa? Há muita energia criativa por aí. Sigamos com ela, porque isso salva-nos”.
Na parte final da conversa, recordo uma pergunta que lhe coloquei em Lisboa, durante o evento Talkfest de 2014, sobre uma reunião futura dos Deolinda, à qual Ana respondeu que seria diferente. “Nós sempre acompanhámos o nosso tempo e vivemos o que se estava a passar. Assim sendo, mantenho a opinião de que, se voltarmos, regressaremos no espírito do tempo em que nos encontrarmos. Até porque estaremos mais velhos, maduros e olharemos a vida de outra forma. Por isso, os Deolinda vão cantar esse momento, seguramente, e usando o seu próprio ADN”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Ana Bacalhau conversou com o Scream & Yell. Confira:
O título do seu novo disco, “Além da Curta Imaginação”, derivou do seu estado de espírito ou daquilo que as canções lhe transmitiam?
Sim, está relacionado com a canção “Tudo de Bom”, do Nuno Prata. Concretamente, o título do álbum corresponde à última frase dessa música e são, igualmente, as palavras derradeiras do disco. Acho que é um libelo bom, no sentido em que obriga a ultrapassarmos aquela imaginação do dia a dia, na qual planejamos imenso a nossa existência, a curto, médio e longo prazo. Pensamos que temos tudo sobre controle, mas é algo que dura pouco, porque esse pensamento não sobrevive aos desígnios da vida. Por vezes é a única forma de sobrevivermos a essa imaginação cruel, porque a realidade pode não ser muito simpática. Na prática, passa por criar novas coisas, universos e canções que, no meu caso, depois materializo neste mundo. Parece magia. Uma coisa não existe, a pessoa pensa nela e depois concretiza-a. Através desse processo torna o seu mundo mais fácil de habitar e muda a sua vida, na verdade. É a essa imaginação superior que eu procuro recorrer e digo que é a minha salvação. Até me questiono se a criação não nos salvará a todos.
O single “Sou Como Sou” retrata muito bem o seu lado extrovertido e o clipe tem um componente feminino muito vincado. Pode-me falar um pouco destes dois aspectos?
É uma música que, de fato, pela minha forma de interpretar e estar em palco, me assenta como uma luva. Os D’Alva (escreveram a canção) conhecem-me bem, já me viram cantando ao vivo muitas vezes e perceberam o meu discurso. Assumo-me como comunista no sentido em que procuro que todas as pessoas, independentemente do seu sexo biológico ou de qualquer característica física que tenham, possam ser livres, isto é, sejam quem são para exercerem a sua essência. Eles sabiam disto e ao longo dos tempos falei da relação que tenho com a minha imagem através do meu percurso. Sabendo de todos esses pormenores, eles entregaram-me aquela canção, num espírito positivo, mas falando de coisas sérias. Acho que também reflete um pouco a minha postura perante a vida, porque aborda assuntos complicados com um sorriso e numa base dançável. Para o clipe, numa canção que fala do escrutínio que os outros fazem da imagem das mulheres, achei que fazia sentido trazer várias mulheres para se exprimirem através da dança, exporem a sua natureza e mostrarem que não há um feminino, mas sim vários femininos.
Uma das novidades do álbum é a batida eletrônica que acompanha algumas faixas. A ideia foi sua ou de Luís “Twins” Pereira (produtor do disco)?
Foi uma ideia que surgiu depois de fazer em 2019 um dueto com o Diogo Piçarra (“O Erro Mais Bonito”). Apesar de não estar neste disco, essa canção é minha, mas foi importante compô-la para avançar com este álbum. É um pop e pensei em aproveitar o embalo desse tema para navegar em águas onde nunca tinha navegado. Nesse sentido, convidei o Diogo não só para cantar, mas também para produzir. Ele tirou-me da minha zona de conforto e eu adorei. Senti que o novo disco, em vez de ser uma continuação do álbum “Nome Próprio” (2017), fazia mais sentido dar seguimento ao single “O Erro Mais Bonito”, porque queria aprofundar esse som. Por isso decidi que queria elementos eletrônicos, sem abandonar os instrumentos. Procurei um produtor que pudesse trabalhar nesses dois mundos e cheguei ao “Twins”. Na minha cabeça, o disco era uma coisa e com a pandemia modificou-se. A lista de músicas segue a ordem com que gravámos, é cronológico. O começo do álbum é um pouco faustoso e carregado, mas depois vai-se despindo. Foi um trabalho que partiu de uma intenção e depois a minha viagem pessoal acabou por o influenciar.
A cantora e compositora paraense Tainá compôs duas canções do disco. Como surgiu esta parceria?
Eu conheci a Tainá musicalmente e pessoalmente ao mesmo tempo. Fiquei encantada com ela e a sua música. É nova, tem tanto conhecimento e é mesmo uma alma antiga. A forma como escreve e vê as coisas fascina-me, tal como canta o amor ou se exprime. Soube logo que a queria interpretar. Pedi-lhe algumas músicas que me pudessem servir, ela mandou-me algumas e escolhi duas canções. A “Ainda Te Amo” é uma música linda e “Encanto” representa uma forma bonita de confrontar uma relação madura com o seu inicio e as saudades da atração. Ela veio viver em Lisboa há pouco tempo e ainda não assistiu ao meu show. A Tainá sabe quem eu sou, mas não esteve presente nos tempos dos Deolinda. Acho que é importante trabalhar com autores mais novos, que não têm essa percepção e estão livres de me olharem da forma que quiserem. Isso também é muito interessante.
No show de apresentação do disco, a 12 Novembro, em Lisboa, no Cineteatro Capitólio, senti que você se superou como intérprete e entertainer. De onde lhe veio aquela força?
Quando entro no palco algo se liga e não sei bem explicar porquê. Sou assim e não ponho um travão nisso. Acho que o segredo é não ter medo desse momento. Deixo fluir os acontecimentos e sair a verdade do que estou a sentir, nessa fase. A minha postura, que tem resultado em palco, é ser sincera e honesta. Digo ao público que estou num determinado estado emocional e vou soltar qualquer coisa. No meu show faz mais sentido falar sobre mim e, para além das músicas, o público sabe que eu gosto disso e fico contente que também apreciem. A minha atuação no Capitólio provou o que eu já sabia, a cultura é muito necessária para o nosso bem-estar. Não só para os artistas, mas também para quem vai assistir ao espetáculo. As pessoas saem com muita vitalidade e há uma troca de energia que é fundamental para a vida delas e para o seu equilíbrio mental. Eu sou um pouco ‘goofy’ (risos) e adoro o humor. Isso é muito importante para mim. Normalmente, sigo humoristas e adoro a arte de fazer stand-up comedy. Portanto, em palco, abordo as coisas duma forma libertadora e se puder fazer sorrir as pessoas, melhor. Agrada-me a ideia de levar a tristeza a sorrir e acho que esse é o meu lado brasileiro (risos). Quando me chamam fadista eu discordo, porque o fado é uma coisa com ‘gravitas’ e peso. Também pode ser leve, mas há ali alguma seriedade. Eu faço o contrário. Pego no pesado, vou até ao fundo, obviamente, mas tento depois que essas coisas se evaporem ou se sublimem num sorriso final. Eu gosto de dar tudo no show para que as pessoas saiam satisfeitas.
Os Deolinda sempre foram muito bem recebidos no Brasil. Gostaria de saber o que recorda desses shows e se está nos seus planos voltar a atuar no Brasil?
Recordo esses espetáculos muito bem. No SESC Santana (São Paulo), no Festival de Inverno de Garanhuns (Pernambuco), que foi muito fixe (legal) e na Festa dos Santos Populares Portugueses, na Praça XV de Novembro (Rio de Janeiro). Todos esses shows foram intensos e incríveis. Fomos recebidos no Brasil de uma forma que é impossível esquecer. A vontade de voltar é enorme. São um público incrível e atento a tudo. Eles prestam atenção às músicas, às letras e à performance. Quando gostam grudam mesmo. Isso vale ouro. Eu queria muito voltar ao Brasil em nome próprio. Seria espetacular para entender como é que o público brasileiro leria o meu projeto solo em palco. Se os Deolinda regressarem de certeza que faremos shows no Brasil. Eu adoraria fazer uma parceria com a Clarice Falcão. A forma dela escrever e ver as coisas diz-me muito. Para além do Caetano Veloso e do Gilberto Gil, como é óbvio (risos). Relativamente à nova geração, também gosto d’O Terno.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.
Pedro Salgado, como sempre um excelente jornalista de um talento musical incrível, sabe colocar as palavras dentro de cada entrevista que faz. Parabéns pelo seu trabalho. Gosto muito de ler suas matérias.