Mateus Aleluia entrega uma experiência sensorial atemporal em show intimista em São Paulo

texto e fotos por Rodilei Morais

Um dia após se apresentar ao vivo na edição 2021 do No Ar Coquetel Molotov, em Olinda, Mateus Aleluia trouxe seu rico repertório para São Paulo acompanhado no piano pelo maestro Ubiratan Marques, parceiro em diversos trabalhos e diretor, arranjador e regente da Orquestra Afrosinfônica. A performance foi realizada no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, e transmitida ao vivo nas plataformas digitais da rede. O único membro vivo do lendário grupo Os Tincoãs alternou entre clássicos de seu antigo trio e novidades do trabalho solo a que se dedica desde que retornou ao Brasil após duas décadas na Angola.

Apesar dos ingressos esgotados para a apresentação e a grandeza do teatro, a presença de apenas um violão, um atabaque e um piano sob baixa luz no palco já antecipavam uma performance intimista, o que logo veio a se confirmar. Mateus fez sua entrada acompanhado pelo maestro Bira e por um assistente que o auxiliou com as muletas que o ex-Tincoã vem utilizando para sua locomoção. A menção desta figura não é por acaso. Ele viria a ser um elemento muito importante mais tarde.

Se a entrada deu impressão de certa fragilidade do mestre, ele a eliminou no instante em que entoou as primeiras palavras de “Ogum Pa”. Seu timbre grave e marcante continua com a força e a excelência presente desde seu primeiro trabalho com Os Tincoãs. A música, que também abre seu primeiro trabalho solo após seu retorno ao Brasil, deu o tom do que seria toda a apresentação: uma suave viagem pela obra de Mateus Aleluia, sem amarras aos arranjos e letras originais, que se misturam com as histórias e filosofias do compositor. Tudo ocorre de maneira fluída e orgânica, um trabalho vivo e em evolução constante evidenciada pela parceria com Ubiratan.

Mateus já havia revisitado canções de seu trio no álbum “Cinco Sentidos” (2010), como foi o caso de “Lamento às Águas”, segunda música da noite. Em uma delicada transição entre a primeira que saudava o orixá guerreiro e esta que louva a Iemanjá, foi possível perceber um detalhe que daria um requinte a mais ao show. Para acompanhar uma obra permeada pelos elementos das religiões de matriz africana, a iluminação seguiu as cores representativas de cada orixá mencionado: neste caso, do azul escuro para o azul claro, posteriormente ela iria para o vermelho quando a música tocada citaria Iansã ou para o lilás quando a protagonista fosse Nanã.

A dupla seguiu visitando também o repertório de “Fogueira Doce” (2016), com temas como “Sonhos Cor de Crioula” e “Obatoto”. “Filho de Rei” foi a única representante do recente e aclamado “Olorum” (2020), terceiro disco mais votado no Melhores de 2020 Scream & Yell. Entre as canções, Mateus aproveitou para conversar com o público poucas vezes, mas comunicando muito em cada oportunidade. Em uma delas, destacou o programa Mesa Brasil, iniciativa de combate a fome criada pelo Sesc, enquanto seguia tocando e o maestro Ubiratan conduzia um inspirado improviso nos agudos do piano.

Ubiratan Marques, ou Bira, foi a companhia perfeita para a performance de Mateus. Responsável por uma obra que naturalmente se interseciona com a do parceiro de palco, seus arranjos no piano complementaram a voz e o violão do compositor. Estes três elementos se encaixaram e ecoaram de tal forma no teatro que era difícil crer que apenas duas pessoas estavam produzindo uma sonoridade tão complexa. Além disso, quando o piano descansava, eram nítidas a admiração e a felicidade no rosto de Bira por compartilhar daquele momento com Mateus, que por sua vez gesticulava e sorria em agradecimento ao parceiro no final de cada música.

O ponto mais alto do show ocorreu durante “Deixa a Gira Girar”, terceira canção d’Os Tincoãs executada. “Cordeiro de Nanã” já havia rendido lágrimas e arrepios, mas quando Mateus anunciou que precisava de seu atabaque e deixou de lado o violão por alguns instantes a canção se transformou. Enquanto fazia a gira girar, Mateus refletiu sobre o tempo das coisas, “Mais devagar, tá tudo muito rápido” ou “Rápido não, o mundo tá muito lento”. Por fim, agradeceu ao público e anunciou “Já me alimentei com o atabaque. Eu preciso desse alimento, eu preciso dessa sonoridade.”

O agradecimento de Mateus se completou com um discurso de otimismo frente as dificuldades enfrentadas neste momento no Brasil e no mundo. Ele próprio pediu para “Não vamos falar o nome da coisa, para que a coisa não ganhe força”, desta forma este texto também não falará, mas deixará a mensagem transmitida pelo músico: “Somos vencedores, acreditemos na vida, sempre.” O discurso foi emendado com uma fala sobre suas raízes em Cachoeira, município baiano em que nasceu, e concluiu-se com trechos de “Homem! O Animal Que Fala”. “Eu sou o cheiro da minha terra, minha gente, muito obrigado por me ouvir”. Neste momento Mateus torna o show uma experiência sensorial completa: o olfato do cheiro de sua terra, o paladar do alimento que foi o atabaque, o tato dos arrepios e a visão e a audição que desde o início foram impressionados pelos sons e luzes.

O show teria terminado por aí, o assistente de palco já vinha novamente com as muletas para a saída de Mateus, mas este emendou “Lágrimas do Sul”, de Milton Nascimento e ainda uma homenagem a Dorival Caymmi, com “Suíte dos Pescadores”. O assistente foi levado a lágrimas, como boa parte do público, que acabou ali representado e o sentimento transmitido era de que ninguém no recinto queria que o espetáculo acabasse.

Mateus por fim pediu para que o público continuasse a canção enquanto ele saísse. Ao deixar o palco sob o som de Caymmi, como pedira, o momento lembrou as palavras ditas sobre o tempo durante “Deixa a Gira Girar”. Talvez para Mateus seja confuso o tempo deste mundo porque ele, bem como o homenageado Dorival, já tenha se tornado atemporal: sua existência e sua obra são um ponto fixo e permanente na história da música brasileira.

A apresentação completa está disponível no canal do Sesc no YouTube (e também logo abaixo) e o setlist do show, com versões diferentes das apresentadas, foi organizado nesta playlist no Spotify.

– Rodilei Morais é jornalista e fotógrafo. Leia outros textos seus em https://medium.com/@rodilei

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.